A intimidade dos árbitros (12-01-2001) Saldanha Sanches * Tal como os pilotos da barra, que acusados de corrupção, proclamavam no Tribunal que sempre tinha sido assim (e talvez por isso tenham sido absolvidos), os árbitros de futebol poderiam invocar um velho e inveterado costume. OS JUÍZES - do futebol - são neste momento o grupo social que dirige a luta pelo direito à intimidade: ameaçando com uma greve no caso de terem de entregar as suas declarações de património e rendimento. Dentro do ambiente geral que se vive no país a sua luta é justíssima: afinal de contas porque hão-de ser os juízes do futebol, e apenas os juízes do futebol, os obrigados à transparência? Não se conhecem tantos casos de enriquecimento súbito e inexplicável de pequenos e médios funcionários, de políticos e de autarcas ou mesmo de alguns magistrados? Não se encontram por todo o lado sinais exteriores de riqueza que saltam à vista sem que se possa detectar a menor reacção? Afinal se a sociedade portuguesa - ou uma parte significativa dela - mergulha nas alegrias dos enriquecimentos estranhos, porque hão-de ser apenas os árbitros a verem prejudicados os seus pequenos ou grandes tráficos por uma incómoda necessidade de declaração? A razão, como sempre, é a defesa da intimidade. Faça-se justiça à delicadeza dos sentimentos e à apurada sensibilidade desta classe profissional. Não é exactamente aquela intimidade (privacy) cujos limites são há muito discutidos pela doutrina constitucional norte-americana; ou pelo Supreme Court que autonomizou um valor que não tinha sido considerado na redacção originária da Constituição. Nem aquela intimidade que encontramos salvaguardada nos países de Estado de Direito consolidado. É mais o direito à intimidade concebido como um velho couto para a ladroagem. E que vemos tão bem formulado em algumas declarações ribombantes de certos juristas brasileiros. Como afirmava um deles, que os árbitros portugueses poderiam consultar certamente com proveito mútuo, «o sigilo bancário é um direito subjectivo de personalidade e, como tal, absoluto, indisponível, irrenunciável, imprescritível». Não podendo ser considerados como Estados regidos pelo direito os países onde sofre certas limitações. A OCDE, que defende a sua limitação para limitar a lavagem do dinheiro e a fraude fiscal, que tome nota. Por isso os árbitros portugueses, tal como os pilotos da barra que, acusados de corrupção, proclamavam no Tribunal que sempre tinha sido assim (e talvez por isso tenham sido absolvidos), poderiam invocar um velho e inveterado costume. O velhíssimo costume dos cheques antes e depois dos jogos, dos pagamentos em espécie da mais variada natureza, os carros oferecidos para premiar arbitragens. Tudo sobre a superior direcção de dirigentes desportivos que agora os querem obrigar a ser transparentes. E só a eles. Com uma lei que tem base em quê? Na má reputação da classe que contrastaria com a imaculada reputação dos dirigentes? Como os senhores Vale Azevedo, Valentim Loureiro ou Gilberto Madaíl? Aqui o argumento da desigualdade - que os senhores árbitros usam com uma subtileza de elefante - torna-se muito forte. Os árbitros até estão dispostos a acatar a lei. Em especial porque também lhes prometerem que as declarações ficarão em envelopes lacrados. Desde que ela seja alargada aos dirigentes. O Governo interessado em moralizar o futebol - poderia preocupar-se com questões mais interessantes - dirige a sua atenção sobre os árbitros. Mas apenas sobre os árbitros? No momento em que o Estado vai despejar mais alguns milhões de contos sobre os clubes de futebol a pretexto do Euro-2004? Tornando os dirigentes de futebol nos mandatários financeiros do Estado - com poderes ilimitados - para a realização de obras ditas de interesse público. Ao menos a corrupção dos árbitros não implica desperdício de dinheiros públicos. E se os dirigentes desportivos tivessem um mínimo de pudor deveria ser objecto de uma auto-regulação interna e não de regulação pública. Além de subsidiar, o Estado tem também de policiar e de regulamentar. Preocupando-se com os árbitros e fazendo vista grossa ao restante, vamos ter a moralização da arbitragem - se a medida servir para alguma coisa - e o regabofe nas obras. A menos que esta justa luta dos árbitros possa consagrar o princípio do direito geral à corrupção: ainda que esta, infelizmente, reaja mal à democratização. Se assim não fosse seria maior o crescimento do nosso produto nacional. Quanto mais vasta se torna maior é o custo colectivo e menor o ganho individual. * Fiscalista ssanches@mail.telepac.pt