A bomba (10-02-2001) Saldanha Sanches* Sem ter os poderes necessários para reduzir a fraude fiscal (tão ostensiva quanto a corrupção e muitas vezes em ligação directa com esta), a máquina administrativa tem mostrado uma crescente eficácia em relação aos que não podem escapar. A GARANTIA prestada no processo fiscal para suspender a execução caduca um ano após a reclamação e dois anos depois da impugnação; se o processo não estiver já julgado em 1ª instância. A nova regra está no art. 193º-A do Código do Procedimento e do Processo Tributário e é uma espécie de mensagem cifrada: reclamação, impugnação, execução, garantia, caducidade. Significado: com esta Administração Fiscal e esta nova regra, o Estado, dentro de dois ou três anos, não vai poder continuar a cobrar impostos. No sistema actual, a Administração não se sente obrigada a dar satisfações aos contribuintes quando estes discordam desta ou daquela decisão. Até pode ser que os oiça, dada a nova garantia da audição prévia que foi muito útil para complicar ainda mais as coisas. Mas na firme disposição de não lhes ligar. Em numerosos casos a reclamação entra, fica sem resposta e, seis meses depois, há um indeferimento tácito, sem que a Administração se digne informar sobre as suas razões. A arma que fazia este atraso reverter contra o reclamante ou impugnante era a caução que tinha de ser prestada: o chamado princípio «solve et repete», exigindo a caução ou o pagamento antes do litígio. Uma caução que criava um custo, ano após ano, enquanto o processo se arrastava pelos tribunais. Num regime que seria aceitável se não houvesse atrasos patológicos. Com o novo regime caduca a garantia e caduca o indeferimento tácito: se a Administração Fiscal não responde à reclamação, o problema é seu. A caução vai caducar e, por isso, o reclamante não tem de ter pressa. E toda a gente vai perceber que com esta Administração Fiscal a nova norma pode criar um paraíso de litigantes e seus advogados. E uma florescente indústria de retardamento das dívidas fiscais, que irá criar uma subespecialização em direito processual fiscal. Uma vez que é notório que uma Administração que não consegue saber se o Benfica está a entregar os impostos retidos (talvez por ter depositado uma excessiva confiança na conhecida honorabilidade do sr. Vale e Azevedo, que ninguém supunha capaz de uma coisa destas) ou que diz publicamente que, por enquanto, não pode tributar as mais-valias não funciona com esta lei. Ou, mais rigorosamente: não pode continuar a fingir que funciona. Porque, se responde à pressa às reclamações, vai enviar ainda mais processos para os tribunais. E já está a enviar muito mais do que deveria, quer pela via de um número excessivo de reversões contra gerentes quer pela recusa em resolver bagatelas. Se enviar ainda mais, com processos mal instruídos e decisões absurdas, então são os dois anos da 1ª instância que vão funcionar a favor do contribuinte. E por isso vamos ter a muito curto prazo (os impostos têm de ser cobrados) um imperativo inadiável de reforma. O que tem tornado a limpeza adiável é que, no meio de uma desordem generalizada, as receitas continuam a subir. Ninguém percebe muito bem porquê: os grandes e pequenos escândalos, um grau de corrupção cada vez mais ostensivo, mostram que é preciso mudar tudo. Mas sem ter os poderes que seriam necessários para reduzir a fraude fiscal (tão ostensiva quanto a corrupção e muitas vezes em ligação directa com esta), a máquina administrativa tem mostrado uma crescente eficácia em relação aos que não podem escapar. Cerca de metade dos empresários que pagaram a colecta mínima sentem-se tão seguros da sua impunidade que pedem a devolução daquilo que, segundo afirmam, pagaram em excesso ao Estado. Ao mesmo tempo, os que acham que querem fazê-los pagar o que eles não devem vão esperando pela resposta às suas reclamações ou às suas impugnações. E é precisamente aqui que os imperativos da cobrança vão fazer com que tudo tenha de mudar na zona da Administração Fiscal. No seu modo de funcionar e na sua cultura. Pode ser chocante que um Estado que não consegue produzir bens públicos com a Justiça, a Educação ou a Saúde (o retrato que o dr. Manuel Antunes faz da Saúde é o do estado do Estado em geral) se veja provavelmente obrigado a começar por si. A necessidade aguça o engenho e as receitas têm de ser cobradas. Mas ao menos que se crie uma qualquer zona de excelência que possa servir de exemplo às restantes: um sector público com gente motivada e bem paga, com dedicação exclusiva e com algum orgulho no que faz. Como já esteve quase a suceder nessa zona. *Fiscalista E-mail: ssanches@mail.telepac.pt