A farsa da colecta mínima (10-03-2001) Saldanha Sanches * «Sempre que se tenta fazer com que todos paguem alguma coisa o legislador vai sempre encalhar numa quantia que é irrisória para uns e exorbitante para outros. Pelas razões contidas no projecto de relatório da OCDE sobre a situação fiscal portuguesa: absoluta ignorância da administração fiscal sobre um enorme sector da economia portuguesa.» OS TRABALHADORES por conta própria misturam as suas contas bancárias pessoais e profissionais e não há intercomunicação entre os ficheiros da DGCI e da Segurança Social: os dois maiores pasmos da OCDE ao tratar da situação fiscal portuguesa. Além da situação do IVA e do grau de incumprimento na pequena empresa. Dos infortúnios do legislador fiscal quando quer reduzir a fraude não falou a OCDE. Mas as raízes do erro estão no desconhecimento do universo dos contribuintes. O legislador tem perante si situações muito diversas. Abel Lourenço é um profissional liberal - advogado, jornalista, informático, etc. - que ganhou no ano passado 18.000 contos. Vai poder deduzir - sem documentos - 35% das despesas que suportou. Menos IRS em 2001. Uma boa notícia. Bento Martins é professor e consegue um pequeno complemento de ordenado - 200, 300 contos por ano - com rendimentos pagos contra recibo verde: é melhor cessar as suas actividades porque se presume que ganhou, pelo menos, 469 contos. Foi uma péssima notícia, já desmentida. Carlos Nogueira é um próspero advogado: com a sua clientela situada na zona das pequenas empresas das pessoas singulares, no ano passado só declarou 1600 contos. Tanto lhe faz. Era um dos alvos da reforma: aquela imensa zona de profissionais e empresários que não declaram nada. Mas o legislador fiscal, repetindo o drama da colecta mínima, disparou contra eles e acertou em Bento Martins. Até mudar a interpretação da lei. A ironia da situação é que o colega de Bento Martins que dá imensas explicações continua muito descansado. É sempre assim: sempre que se tenta fazer com que todos paguem alguma coisa o legislador vai sempre encalhar numa quantia que é irrisória para uns e exorbitante para outros. Pelas razões contidas no projecto de relatório da OCDE sobre a situação fiscal portuguesa: absoluta ignorância da administração fiscal sobre um enorme sector da economia portuguesa. E por isso o legislador-reformador pode melhorar a relação com a administração dos contribuintes que estão dentro do sistema: o nosso Abel Lourenço presta serviços a empresas que lhe exigem o recibo verde. Ele vai ser dispensado de juntar facturas, a menos que opte pela contabilidade organizada e a administração fiscal vai ser dispensada de controlar os seus documentos. Mas quando tenta tributar os que estão fora do sistema está a tomar medidas cujos efeitos não controla: por ser incapaz de distinguir entre o professor que fez algumas conferências e ganhou 300 contos e o construtor civil que fez uns prédios e declarou essa mesma quantia. Infelizmente, as pressões do exterior não são solução bastante para o nosso problema: a OCDE sempre que analisa a situação fiscal, puxa-nos furiosamente as orelhas. Sem conseguir evitar que continuemos a portar-nos mal. O Tribunal das Comunidades vai desmantelando, pouco a pouco, as nossas originalidades tributárias: a tributação (das sociedades!) em imposto sucessório por avença ou o financiamento do sistema de justiça pelos emolumentos cobrados pelos notários ou pelos registos. Circunstâncias externas, pressões exteriores. Que não nos dispensam do trabalho de reconstrução interna que os constrangimentos externos exigem. Podem apenas tornar ponto assente que a discussão dos problemas fiscais portugueses que não passe pela análise e recepção de soluções já encontradas em outros países é uma farsa inútil. E que o espaço de inovação é cada vez mais pequeno. Levando em conta a percepção que os outros têm de nós. Se os investigadores da OCDE se espantam por não ser possível em Portugal articular os ficheiros da administração fiscal com os da Segurança Social é porque conseguem ver Portugal como expoente e paradigma do Estado de Direito. Como há quem o pense entre nós. E embora se costume dizer que o chauvinismo dos grandes países é perigoso e dos pequenos é apenas ridículo, não pode deixar de ser preocupante a preponderância dos preconceitos chauvinistas em grande parte do discurso jurídico português. Desde a discussão ridícula sobre a ratificação do tratado que cria o Tribunal Penal Internacional (com base nas lições que temos dado ao mundo em matéria de direito humanos!) até à protecção de dados pessoais no modelo português. Em ambos os casos encontramos um discurso em que a deliberada ignorância - a recusa em discutir a situação levando em conta a experiência externa - se junta a um inconsciente chauvinismo. Talvez por isso se deva concluir que o «orgulhosamente sós» não foi apenas um tropo de retórico de passado defunto, mas sim um traço permanente de um pequeno país periférico com dificuldades crónicas de adaptação ao mundo actual. *Fiscalista E-mail: ssanches@mail.telepac.pt