A intimidade financeira (24-02-2001) Saldanha Sanches* «Entre a violação discreta da lei e o risco do empréstimo a banca vai escolher, cada vez mais, o primeiro risco. Entre a possibilidade de ser processada por um qualquer burlão em nome da sua intimidade financeira, um conceito genialmente descoberto e desenvolvido pela jurisprudência luso-brasileira, e correr um risco de crédito excessivo, antes o risco do processo.» AS EXECUÇÕES de pequenas dívidas inundam os tribunais: para construir um dique contra a inundação deverá o legislador obrigar as empresas de serviços a serem mais cautelosas na concessão de crédito? A solução não pode estar aí: não há comércio sem crédito e quanto mais concorrência mais crédito. E como o sr. João Silva não é uma «bonus pater familia» vai ter um carro, instalar a TV cabo, usar um telemóvel, pedir empréstimos para viagens, tudo a crédito. Se não pagar isto ou aquilo não será um grande problema: com o estado a que chegaram os tribunais talvez nem venha a ser executado. Se o chegar a ser logo se vê. Com um bocado de sorte, mesmo que haja decisão, pode ser que não seja concretizada. Nos bons velhos tempos em que maior parte não tinha acesso a quase nada, o crédito era só para alguns e a informação circulava. E hoje é uma questão insolúvel? Claro que não. Se compararmos o debate a que hoje assistimos nos Estados Unidos sobre a privacidade financeira e o debate em Portugal e no Brasil sobre o acesso da administração às contas bancárias podemos perceber porquê. Nos Estado Unidos, deixar por pagar uma conta telefónica pode ser muito arriscado: se um qualquer cidadão é mau pagador, não pode, por exemplo, ter cartão de crédito. Uma agência de risco de crédito faz circular a informação. E por isso é melhor pensar duas vezes antes de deixar uma conta por pagar: se se quer ter acesso ao crédito. E por isso o que se está a discutir no Capitólio, contra a opinião da Reserva Federal que quer a transparência total, há a limitação do uso comercial da informação financeira: não do seu uso contra os que passam cheques sem cobertura ou não pagam o telefone. Mas do uso dos dados do cliente com um puro activo comercial: mesmo que isso possa ser considerado com uma condição de obtenção de uma economia mais eficiente (e por isso as empresas a defendem) é impopular junto dos eleitores. O único debate sério está aí: discutir o acesso da Administração fiscal às contas bancárias é uma questão luso-brasileira no pior sentido do termo. Um debate terceiromundista de sociedades que não querem perceber o mundo de hoje e os imperativos da sociedade da informação. E ao menos no Brasil a informação financeira circula: toda a gente tem acesso à informação bancária menos a Fazenda. Entre nós a situação é diferente: o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, com uma rasgada visão das necessidades da sociedade da informação e da nova economia, resolveu presentear este sector com um regime de sigilo mais adequado ao segredo de Estado. E por isso em princípio o banco A, quando concede crédito ao senhor X, não pode ser informado que o sr. X não pagou ao banco B e C. O sr. X foi investido nos direitos subjectivos de não pagar impostos (o que não incomoda a banca) e de burlar quem lhe concede crédito. E por isso entre a violação discreta da lei e o risco do empréstimo a banca vai escolher, cada vez mais, o primeiro risco. Entre a possibilidade de ser processada por um qualquer burlão em nome da sua intimidade financeira, um conceito genialmente descoberto e desenvolvido pela jurisprudência luso-brasileira, e correr um risco de crédito excessivo, antes o risco do processo. Apesar da presença, efectivamente ameaçadora, da Comissão de Protecção de Dados Pessoais, a intemerata guardiã dos dados pessoais do cidadão e do direito ao disparate jurídico: uma das suas obras-primas é a cuidadosa regulamentação dos dados pessoais dos leitores que podem ser conservados pelas bibliotecas e arquivos (Autorização de Isenção nº 2/99). Criando um prazo de conservação para os registos (destruição obrigatória no prazo de um ano) que impeça que possa saber-se quem frequentou nos últimos anos o Arquivo Nacional da Torre do Tombo ou de História Ultramarina. Umas discretas trocas de informações entre gestores bancários, nas barbas desta digníssima comissão e com violação da lei, resolve (mal) o problema da banca. Que se não sabe quem é o seu cliente tem de cobrar juros mais elevados para compensar o risco. Mas não resolve o problema da Telecel ou da Optimus: Que talvez devam encarar a possibilidade de só conceder crédito se o cliente aceitar hipotecar a sua casa. Se esta não tiver já uma hipoteca do banco. *Fiscalista ssanches@mail.telepac.pt