O modelo filipino (27-01-2001) Saldanha Sanches* Só administrações fiscais muito sofisticadas conseguem conceber modelos de atracção de massa cinzenta como as «holdings» holandesas. O oposto da Madeira. E só uma Administração Fiscal muito eficiente e com vastos poderes pode ter um IRC como o da Irlanda. Se o imposto pessoal de rendimento tiver uma distribuição eficiente, se o IVA render muito mais por se conseguir evitar as fugas na pequena empresa, se acabarem as empresas com prejuízos crónicos, a taxa do IRC poderá descer muito mais. PORTUGAL deveria adoptar o modelo fiscal irlandês para se tornar economicamente competitivo: é um caminho possível, mas longo. Passa pelas Filipinas. Quando o presidente da Administração Geral Tributária admite a possibilidade de privatizar as vendas dos prédios executados, está a seguir uma linha de pensamento muito praticada pelos técnicos do Fundo Monetário Internacional quando propõem remédios para máquinas administrativas apodrecidas: a privatização de alguns dos seus segmentos. E no caso português isso não depende do que achamos sobre as funções do Estado, sobre um a entusiasmo maior ou menor com a retórica liberal, sobre o papel do Estado na sociedade: é uma questão mais comezinha, conjuntural. A desagregação/apodrecimento da máquina administrativa que atingiu o ponto de não retorno. A passagem de competências para o sector privado não pode atingir a auditoria fiscal e nenhum ministro ou secretário de Estado se pode sentir confortável se não contar com um corpo de altos funcionários capazes, por exemplo, de, em ligação com elementos exteriores, conceber uma reforma. Pode não ser possível: por exemplo, para a actual reforma o «outsorcing» era a única solução possível; mas tem sérios inconvenientes.O que pode ser passado com vantagem para o Estado são as múltiplas tarefas administrativas de mera aplicação da lei: como os pagamentos do IVA que podem ser geridos pela banca. Servindo não apenas de veículo para os pagamentos mas controlando também os aspectos formais - e apenas formais - de cumprimento da lei. Essa devolução, que livraria o Estado português de tarefas que ele faz mal, não poderia impedir que o Benfica de Vale Azevedo resolvesse entregar uns milhões a menos e obter o atestado de que nada devia ao fisco. A última tragicomédia da Administração Fiscal. Mas poderia impedir que os moradores de Telheiras recebessem liquidações erradas da contribuição autárquica apenas porque os sistemas informáticos da Administração Fiscal não conseguem funcionar bem. No caso das vendas de prédios o argumento é ainda mais forte: o chefe de repartição de finanças, cuja vocação empresarial é bem conhecida, tem como tarefa vender os prédios executados. Têm poderes tão latos que o que constitui motivo de espanto é que não haja mais corrupção: e vão oscilar permanentemente entre o cumprimento rigoroso dos trâmites burocráticos que tudo paralisa e o uso dos seus vastos poderes para vender ao desbarato, a um certo tipo de compradores. Sem um nível elevado de eficiência pública não há modelo irlandês que funcione. Só administrações fiscais muito sofisticadas conseguem conceber modelos de atracção de massa cinzenta e quadros qualificados como as «holdings» holandesas. O oposto da Madeira. E só uma Administração Fiscal muito eficiente e com vastos poderes pode ter um IRC como o da Irlanda. Se o imposto pessoal de rendimento tiver uma distribuição eficiente, se o IVA render muito mais do que rende por se conseguir evitar as fugas na pequena empresa, se acabarem as empresas com prejuízos crónicos, a taxa do IRC poderá descer muito mais. O IRC é apenas um imposto por conta: melhor distribuição do IRS pode levar a um sistema mais justo, mais eficiente e mais atractivo para o investimento externo. A atracção do investimento externo não pode, contudo, passar apenas pela baixa dos impostos: as ilhas Seychelles tentavam (já desistiram) atrair clientes para o seu paraíso fiscal garantindo que com um investimento acima de 15 milhões de dólares não haveria, em caso algum, fornecimentos de informações. Era o seu modo de concorrer com paraísos fiscais que inspiram mais confiança. O Estado português oferece excelentes condições às multinacionais que cá investem e depois a Administração Fiscal rodeia-as de exigências mesquinhas por motivos fúteis que são uma permanente fonte de irritação. E isso acontece porque na relação fisco/contribuinte, tal como na relação administração/empresa, vemos, ano após ano, crescer o abismo entre um sector privado europeizado, com quadros com a sofisticação normal nas grandes empresas modernas e uma administração mal paga a nível superior, desmotivada e ineficiente. Basta considerar o segmento fiscal: enquanto o sector privado cresce ano após ano, com os grandes escritórios a seguir o exemplo das empresas de auditoria e a criar departamentos fiscais, a administração lá vai andando. A interacção torna-se difícil pela excessiva disparidade nos níveis de formação, pela incapacidade da Administração Fiscal para acompanhar os mecanismos da abertura da economia: cada vez mais as empresas são grupos de sociedades com múltiplas relações com o exterior, têm estruturas e relações complexas que constituem verdadeiros desafios ao legislador fiscal. Enquanto no segmento baixo a Administração Fiscal perde porque não consegue informatizar-se e cruzar a informação, nas grandes empresas deixa de reagir quando devia ou reage indevidamente porque não entende aquele mundo. Que nem quer perceber: comprova-o o desinteresse que houve nos últimos anos à volta do Centro de Estudos Fiscais a estrutura da DGCI que tinha como função, mal ou bem, reflectir sobre os problemas a médio prazo e fazer a ligação com a universidade. É por isso longo o caminho para a Irlanda: onde ninguém se preocupa com o segredo bancário. *Fiscalista E-mail: ssanches@mail.telepac.pt