Um setor informal  a viver de informais e vice-versa, uma mão lavando a outra e as duas lavando os pés. Cerca de 50 mil pessoas,  contados os familiares, dependem diretamente dessa atividade no Recife

ENTREVISTA COM UM EX-CAMELÔ DO RECIFE

Camelô briga para sobreviver 

 

Nota colaborou na edição desta página o sr. Isaldo Barbosa,  ex-camelô no Recife.

 

     

 

       

 

       Nos últimos 50 anos, o comércio ambulante invadiu o centro do Recife em face do sumiço de muitas fábricas e do aumento do desemprego.  

       Em 1994, a prefeitura inaugurou o Camelódromo com 1500 boxes e 2500 m2 de área coberta. Ficou pronto também, em 1996, o Shopping Popular Santa Rita (o “Shopping das Flores”),  com 1200 boxes numa área descoberta de 15.000 m2. Nesses dois locais puderam ser abrigados uns 2700 camelôs. 

       O Recife tem hoje em torno de oito mil ambulantes, dos quais seis mil são cadastrados na prefeitura. Cerca de cinco mil estão espalhados no centro expandido da cidade, nos subúrbios e feiras livres. Muitos se fazem presentes também em festejos na capital, em  feiras e  festas no interior

       Os camelôs que estão nas ruas travam com a fiscalização municipal dura luta para ocupar áreas a eles proibidas. A ação oficial pode está correta em face da lei, mas, do ponto de vista deles, é opressora porque barra seu sustento.

       Há algum tempo, surgiram no Recife, à noite, pequenas barracas para venda de bebidas e tira-gosto em locais públicos. Os consumidores são os que não têm renda bastante para ir a bares convencionais. Esses camelôs noturnos se somam aos já existentes. 

       Biu Camelô nasceu numa família de camelôs. Seus parentes são camelôs. Há algum tempo, ele deixou esse ofício e foi ser vigia de um prédio no Recife. Tem hoje 40 anos. Ganha um pouco mais de um salário-mínimo. Trabalha 12 horas (das 18 às 6) e folga 36. Folga não, tem outro emprego de dia para dobrar o ganho e poder sobreviver com a mulher e os três filhos. Dá duro como garçom das 7 às 17. Ainda arranja tempo para estudar. Cursa o primeiro ano de Direito em escola gratuita. Vai a aula à noite se não está de vigia. Dorme uma noite e outra não. Quando o corpo não agüenta mais, tira rápidos cochilos na aula ou como vigia. Folga mesmo só no domingo quando não está de vigia. Leva, assim,

uma vida severina. É ele que se vai ouvir na entrevista abaixo, onde narra o mundo do camelô que convive, em relação mútua, com o da pobreza.  

  • Quando você foi ser camelô, Biu?

  • Tinha 15 anos e fiquei lá 12 anos. Depois, fui ser vigia onde estou até hoje.

  • Por que você foi ser camelô?

  • Herança de família. Não tinha outra coisa pra fazer. Tinha de trabalhar pra viver.

  • Você trabalhava no Camelódromo?

  •  Não. Nesse tempo não havia. Trabalhei na rua. Passei por muitas ruas do Recife: Duque de Caxias, Direita, Livramento, Nova, Imperatriz, Aurora, União, Saudade, Palma, Ponte da Boa Vista, Matias de Albuquerque, Larga do Rosário, Dantas Barreto, Pracinha, Hospício etc. Perdi até a conta.

  • Você tinha uma barraca?

  • No começo, não. O capital era pequeno. Eu vendia na mão, no grito.

  • Que é isso?

  •  Na mão porque vendia as mercadorias num pequeno tabuleiro pendurado no pescoço. No grito porque se gritava para vender:Dez envelopes por um real”! “Cinco canetas por um real”!, “Cinco pilhas por um real”! como grita hoje o camelô.  E vai por aí.

  • Tudo era por um preço único, um real, como no exemplo? Por quê?

  • Para facilitar e não perder tempo com troco de moeda, que o lucro era pequeno. Era preciso vender muito. Depois, tinha de se ter cuidado, pois a qualquer hora, era preciso sair às carreiras para fugir do fiscal. Tinha freguês que nem dizia o que queria. Vinha com o dinheiro na mão e tirava a mercadoria. Tudo custava um cruzeiro ou um cruzado (não me lembro) . Tinha as coisas certas para se vender no grito. Nem toda ela prestava pra isso.

  • Depois você melhorou?

  • Foi. Passei para um tabuleiro. O capital aumentou.

  • O que é tabuleiro?

  • Era um tablado montado em tripé. Em cima ficavam as mercadorias. Quando era preciso, o camelô botava o tabuleiro e o tripé na cabeça, com uma lona amarrada em cima para cobrir e segurar as mercadorias, e saía por aí.

  • Para quê?

  • Para procurar um ponto melhor ou para fugir da fiscalização.

  • Como era a vida do camelô na rua?

  • Dura porque tinha a guerra com a fiscalização. No começo, os fiscais atuavam só. Depois, veio a ajuda da Polícia Militar. Aí o negócio ficou preto para os camelôs que, de armas, tinham só as mãos e as pedras da rua.  Era briga mesmo. Eu mesmo já joguei muitas pedras nos fiscais e soldados. Quando não dava tempo a fugir. prendiam a mercadoria para levar pra o depósito. Aí pra tirar tinha de pagar. Era ruim também em dia de chuva. A gente tinha de cobrir o tabuleiro com uma lona. O freguês, que já era pouco nesses dias, quando passava não via nada, e o apurado era lona.

  •  O que vocês vendiam mesmo?

  • Panelas de cozinha, faca, garfo, colher de pau, espremedor de alho, pedra para amolar, abridor de lata, ralinho para pia, peças para fogão, sola para torneira, graxa pra sapato, escovas, agulhas de crochê, matador de mosca, desentupidor de fogão, pilhas, miudezas em geral, calçados, roupas relógios, bijuterias, pregos, parafusos e mais coisas,. quase tudo. Tinha mercadoria que só se podia comprar a camelô?

  •  O quê?

  • O que era fabricado pelo próprio camelô em casa ou no trabalho mesmo. O que ele fabricava, não sendo legalizado, não podia vender às lojas. Essa situação continua ainda hoje.

  • Os camelôs eram solidários entre si (um camelô ajudava outro)?

  • Sim. Como eram! Como ajudavam! Se um camelô quebrava, os outros se reuniam e davam mercadoria a ele para montar seu tabuleiro e pagar com o apurado. Nas horas mais difíceis, era maior a união. Havia até um código que corria rápido pelas ruas para avisar a presença dos opressores, para que todos pudessem correr em tempo. Ainda hoje é assim.

  • E a propaganda dos camelôs?

  • Era feita pelos “marreteiros” que anunciavam aos fregueses as mercadorias, ganhando a diferença quando vendiam por preço maior que o do camelô. Havia um código em letras para informar-se do preço com o vendedor. Eles  não eram camelôs nem nada tinham e viviam apenas dos trocados obtidos. Aproximavam os fregueses dos camelôs, com os convites em voz alta.

  • Eram um tipo de corretor?

  • Isso mesmo! Quando você chegar perto de um camelô e notar alguém a dizer em voz alta:Diga, freguês”! “Preço bom é aqui”! “Pode vir, amigo”! “Que deseja”? ou coisa parecida, pode apostar que é um marreteiro.

  • Cada camelô tinha seu marreteiro?

  • Não. Ele podia levar a qualquer camelô, de acordo com o que o freguês queria.comprar.

  • Quanto ganhava um marreteiro? Ele sonhava em ser camelô um dia?

  • Em dinheiro de hoje, dez a vinte reais por dia. Sonhar, ele podia sonhar em ter sua guia, mas era um sonho muito longe porque faltava capital. O que ele ganhava dava mal pra ele viver. Agora, podia ser que alguém  desse crédito a ele pra ele ganhar pelo apurado. Aí ele podia ficar com sua guia. Isso podia ser com qualquer pessoa.

  • Que é guia?

  • É o negócio do camelô, seu meio de vida

  • A quem o camelô comprava?

  • Comprava a pequenas fábricas de fundo de quintal, que, sem ser legalizadas, não podiam vender às lojas. Comprava também às lojas que vendiam em grosso, em dúzias. Hoje essas lojas sumiram quase todas.

  • Quem comprava ao camelô?

  • Em geral, o povo pobre que, sem carteira assinada ou qualquer legalização, não podia comprar a prestação nas lojas, e que, com grana pouca, buscava preço menor no camelô.

  • Como os comerciantes viam os camelôs?

  • Alguns não gostavam. Outros eram de nosso lado e achavam até que a gente ajudava a eles. Nossos maiores inimigos eram os homens da carrocinha.

  • Por que carrocinha?

  • O camelô conduzia suas mercadorias em carrocinhas. Pois os fiscais, aonde o carro deles não chegava, usavam as carrocinhas para levar as mercadorias do camelô para o depósito. Era o carro dos camelôs usado contra eles mesmos.

  • As mercadorias eram recuperadas?

  • Eram, mas havia furtos. O camelô levava pau outra vez.

  • Os camelôs pagavam algum imposto, alguma taxa?

  • Não.

  • Nem toco aos fiscais?

  • Ah! Os fiscais recebiam trocados pra proteger a gente. Eles sabiam da luta da gente porque também eram pobres. Viam e deixavam passar, muitas vezes.

  • Como assim se eram opressores pra vocês?

  • Eles cumpriam ordens de chefes seus, mas até diziam baixinho á gente, quando podiam: “preparem-se porque vem aí uma batida hoje à tarde”. Eram amigos. Careciam  aumentar seu ganho magro. Ganhavam para ser opressores de camelôs, mas, pobres como os ambulantes, sabiam de seu aperto. Faziam o papel de carrascos, mas eram vítimas também. Quem sofria mais nessas horas eram os “siris”, camelos novatos, que ainda não tinham tido conversa com os fiscais. Os siris, sem saber antes das batidas, ficavam doidos nesses momentos.

  • Você arranjou alguma coisa como camelô?

  • Meu primeiro barraco. Até que se ganhava mais ou menos e dava pra viver, mas um emprego certo era o sonho de todos porque tinha segurança.

  • Por que você deixou de ser camelô?

  • Para fugir da guerra e ficar num lugar mais manso, mesmo com ganho menor.

  • Se você fosse começar tudo outra vez, você voltaria a ser camelô?

  • Não.

  • Alguma coisa engraçada ou curiosa no mundo do camelô?

  • Muitas vezes, a gente ia pra o interior. Levava as mercadorias numa bagagem ou no tabuleiro mesmo. Lá, em festas e feiras, a gente se divertia muito com as mocinhas, em geral matutas. Eram comuns gritos assim:

  • Olha aí moça bonita um brinco pra aumentar sua beleza! Veja como você fica mais bonita com esse brinco! Olhe no espelho! Tire esse brinco feio e fique com esse lindo! Vejam vocês (para as amigas dela) como a Alice ficou mais bonita com esse brinco!

  • O apelo funcionava e muitos brincos, anéis, colares, pulseiras etc. eram vendidos à mocinha e a suas amigas. Era divertido e bom porque dava lucro!

  • O Camelódromo valeu?

  • Claro. No começo foi muito discutido. Hoje a gente sabe que valeu a pena. É o shopping dos pobres. O medo de dizer que comprou no camelô é muito menor hoje que no passado. Aliás, os camelôs vendem também coisas boas, tudo por preços mais baixos, principalmente na área de eletrônicos e importados.

  • E o Shopping das Flores?

  • É um Camelódromo descoberto.

  • O camelô hoje vende mais que no seu tempo?

  • Não. No meu tempo vendia mais. O que botasse vendia. Agora tem camelô que passa o dia na lona. Hoje, o sortimento pode ser muito maior, com eletrônicos, importados, bugigangas, novidades, mas o movimento caiu.

  • Por que caiu?

  • As lojas tiraram fregueses dos camelôs, facilitando as compras a prazo. No meu tempo, pra tirar um cartão de crédito, tinha de ganhar de três salários pra cima. Hoje já tem quem tire até com um salário. A venda a prazo atraiu muita gente. Mas quem não é legalizado e não pode comprar a prazo, vai parar no camelô. Depois, o número de camelôs aumentou muito com o desemprego. Ora, se caiu o número de compradores e cresceu o de vendedores, os negócios só podiam cair.

  • Quem compra aos camelôs e de quem eles compram hoje?

  • Como eu já disse, quem compra aos camelôs é o povo mais pobre que não pode comprar a prazo nas lojas, ou que, com dinheiro pouco, procura preço mais baixo. Os camelôs continuam a fabricar muitas de suas mercadorias ou a comprar a fábricas de fundo de quintal que não podem vender às lojas. Compram também a firmas clandestinas montadas para vender a eles. 

  • Qual o problema maior do camelô hoje?

  • A queda no movimento

  • Não seria melhor para os camelôs fugir da informalidade, legalizar-se?

  • Podia ser. Mas o pouco que ele tem só dá, muitas vezes, para começar ou manter o negócio. Se for gastar com impostos, vai ficar liso e louco. Depois, se legalizar, não vai ter preço pra concorrer com os outros, e vai quebrar.

  • Ainda tem marreteiro hoje?

  • Hoje é que tem.

  • E os camelôs nas ruas?

  • Esses estão na guerra. A prefeitura pode ter razão em querer uma cidade limpa e bonita, mas os camelôs têm razão também em querer viver. O povo pobre, sem emprego ou meio certo de vida, vai ser camelô, se não quiser roubar ou morrer de fome. Os camelôs crescem porque cresce, cada dia, o desemprego. A guerra, pois, continua. Ninguém sabe quando ela vai acabar ou se vai acabar um dia.

  • Camelô é só de dia ou tem à noite também?

  • Não. Tem camelô em festa, que trabalha mais à noite. Mas hoje o Recife está cheio de camelôs noturnos. São as barraquinhas com mesas e cadeiras pelas ruas da cidade, que vendem bebidas e churrascos no espeto. A freguesia é o povo mais pobre que trabalha durante o dia e que não pode ir a bares com preços mais altos. Esse é um novo tipo de comércio ambulante na cidade. Precisa de certo capital: freezer, mesas, cadeiras etc. Agora, parece que, mais o tempo fica ruim, mais o povo come e bebe. Os doutores é que sabem explicar melhor isso.

  • Você acha que sempre vai existir camelô?

  •  Claro. Enquanto existir pobreza, vai haver camelô.


Centro expandidoárea que vai do Marco Zero (no Recife antigo) à avenida Agamenon Magalhães (do Derby ao Tacaruna).  

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Atualizada em 27/05/2004

Fonte: Prefeitura do Recife e entrevista com ex-camelô.