Tragédia Alca-vallo



Se você quer saber o que vai acontecer se o Brasil aderir à Alca(Área de Livre Comércio das Américas), a resposta, infelizmente, é muito fácil: olhe para a Argentina. O país está à deriva, após dez anos de aplicação rigorosa das receitas do FMI. Em 1991, Domingo Cavallo, então ministro da Economia do presidente Carlos Menem, criou a Lei de Conversibilidade, que "estabilizou" a economia, atrelando o valor do peso ao dólar. Para sustentar a moeda estável, a Argentina teve de atrair dólares.

Já conhecemos o filme: o governo privatizou aceleradamente as estatais, pagou juros exorbitantes por capitais especulativos e estimulou a instalação de transnacionais no país, além de permitir a livre importação de bens e serviços, sob pressão dos bancos e corporações. Resultado: a recessão (encolhimento da economia) já dura três anos sucessivos, o desemprego atinge a maior parte da classe média e o mesmo Cavallo, agora "superministro" do presidente Fernando de la Rúa, acaba de concluir uma renegociação com o FMI que torna a Argentina inadimplente, e prepara a desvalorização do peso. Anuncia-se uma catástrofe de grandes proporções.

No primeiro trimestre de 2001, a queda do PIB foi de 2,1 por cento em ralação ao mesmo período do ano 2000. O desemprego, na faixa dos 20 por cento da população economicamente ativa, cresce sem cessar: as demissões, em maio, subiram 5,9 por cento em relação a abril. Em 8 de junho, os trabalhadores realizaram a quinta greve geral desde a posse do presidente Fernando de la Rúa, em dezembro de 1999, paralisando 90 por cento do país. Houve vários choques com a polícia, que se desdobraram nas semanas seguintes.

Na província de Salta, ao norte, os desempregados bloquearam a estrada nacional 34, para exigir trabalho e comida, e tentaram tomar a refinaria de petróleo Refinor, na cidade de General Mosconi. Foram dispersados, no dia 19, após uma batalha campal com mais de seiscentos agentes da Gendarmería Nacional, polícia especializada na vigilância de fronteiras e repressão de manifestações. Um tiroteio, que durou várias horas, deixou dois mortos e 36 feridos (dos quais, 24 policiais).


País arruinado

É óbvio que, dado esse quadro de recessão, desemprego e caos social, a Argentina não tem como pagar a dívida externa (que soma mais de 200 bilhões de dólares, para um PIB que não atinge os 280 bilhões!), mesmo se privatizar o pouco que ainda resta de suas estatais. Para ganhar tempo e afastar o "fantasma da moratória", no início de junho Cavallo anunciou um acordo com o FMI para estender os prazos de pagamento de 30 bilhões de dólares da dívida. O acordo consistiu numa "megatroca" (swap, em economês) de títulos que venceriam nos próximos meses por outros títulos, com vencimento em 2008 e anos seguintes. Só que, para isso, Cavallo aceitou pagar taxas escorchantes de juros (de até 16 por cento ao ano).

É uma bomba atômica de efeito retardado. Mesmo os analistas favoráveis ao governo calculam que, para pagar tais taxas, será necessário que a economia cresça 6 por cento ao ano. Não há "milagre" que faça uma economia saltar subitamente de uma recessão profunda para um crescimento desse porte. O analista Walter Molano, BCP Securities, considerou que a megatroca "arruinará a Argentina a médio e longo prazos".

A pretexto de "estimular a exportação" como meio de captar dólares, Cavallo anunciou, em 19 de junho, uma manobra para desvalorizar o peso, sem dar nome aos bois. Agora, o peso tem um duplo valor: dentro do país a moeda ainda vale 1 dólar: fora do país, o seu valor é menor. Assim, o produto argentino para exportação fica mais barato. Na prática, isso significa que o exportador argentino vai receber do governo mais de 1 peso por dólar vendido, enquanto o importador vai pagar mais de 1 peso por dólar comprado.

Para calcular a taxa para mais (ou para menos), Cavallo criou um sistema intitulado Conversibilidade Econômica Ampliada. Funciona da seguinte forma: o valor do peso passa a refletir a média dos valores do dólar e do euro (moeda européia). Atualmente, a taxa é de 8 por cento (isto é, 1 "peso para exportação" vale 1,08 peso "doméstico"). Esse sistema permite a oscilação do valor do peso, quebrando o "engessamento" em relação ao dólar decretado pelo próprio Cavallo, em 1991.


Tragédia anunciada

Em termos puramente econômicos, o impacto dessa medida é quase nulo. As exportações representam apenas 9 por cento do PIB da Argentina, e os principais produtos exportados pelo país são commodities (trigo, carne, ração animal, soja), que dependem mais dos preços no mercado internacional do que da taxa de câmbio. O significado do pacote cambial é muito mais político: ele prepara o terreno para a desvalorização do "peso doméstico". O governo não tem mais como sustentar a paridade. Não tem mais como garantir a troca de cada peso que o argentino tem no bolso por 1 dólar americano.

Só que a desvalorização será um desastre de grandes proporções: 90 por cento da dívida pública e 70 por cento da dívida privada na Argentina são corrigidas pelo dólar. Isso significa que cada ponto percentual de desvalorização do peso significará um aumento equivalente na dívida já impagável do país. E mais: os preços dos produtos importados, que inundaram a economia argentina nos anos 90, continuarão a ser calculados em dólar, só que os salários serão pagos em peso.

Outras duas "saídas" encontradas por Cavallo para "reativar a economia" foram o corte de impostos da classe média e a redução de 5 por cento dos gastos públicos neste ano (o equivalente a 4 bilhões de dólares). Cavallo procura ampliar a base social de sustentação do governo, prometendo "salvar" os setores da classe média que ainda funcionam. Para compensar a queda na arrecadação, promove cortes sociais. Mas já há muito pouco para cortar ou vender: além das empresas estatais, 80 por cento do sistema de previdência social já foi privatizado. Só os juros da dívida, 12 bilhões anuais, equivalem a 150 por cento do orçamento destinado à educação (no Brasil, também conhecemos o filme: no ano 2000, os gastos com saúde totalizaram 17,69 bilhões de reais, com educação 7,59 bilhões e, com os juros, a ninharia de 84,4 bilhões).

Não por acaso, em março, os professores universitários foram a ponta-de-lança das manifestações contra o governo, incluindo um plano de ocupação de prédios nas províncias de Buenos Aires, Córdoba e Santa Fé. Lutavam contra um anunciado corte de 900 milhões de dólares no orçamento para a educação. O país foi levado à completa paralisação, no dia 21 daquele mês, provocando a queda do banqueiro Ricardo López Murphy, que tinha acabado de assumir a pasta da Economia.


Falência moral

O desastre econômico tem, como contrapartida, a falência moral do país. A prisão do ex-presidente Carlos Menem, no dia 7 de junho, acusado de chefiar uma organização mafiosa que realizou o contrabando de 6.575 toneladas de armas para o Equador e a Croácia, entre 1991 e 1995, foi só a ponta do iceberg. De fato, nos anos 90 floresceram a corrupção, a sonegação, a festa com o dinheiro público.

Apenas no ano 2000, a evasão fiscal atingiu os 30 bilhões de dólares em meio a denúncia de esquemas de "lavagem de dinheiro" com a participação de funcionários do Banco Central (nada, portanto que qualquer brasileiro não conheça muito bem). A corrupção é estimulada pela mentalidade neoliberal, que separa radicalmente a moral da política, enaltece o lucro e a produtividade como ideais máximos e abomina o controle social e público sobre as atividades das corporações privadas.

Triste situação de um grande país, que no final do século 19 tinha uma malha ferroviária maior do que a da Inglaterra e cujos trabalhadores estavam entre os mais bem pagos do mundo; de uma sociedade de sólidas tradições culturais (em 1993, Buenos Aires tinha mais livrarias do que o Brasil inteiro); e de uma justificada confiança em sua própria capacidade de realização econômica e política. O seu atual definhamento, sob o jugo da recolonização imperialista, pode, hoje, servir de alerta ao Brasil. É preciso que a nação, mobilizada, resista à implantação da Alca, em aliança com aqueles que fazem greve geral na Argentina e com todos os que lutam, do México à Patagônia.




Um golpe de Estado que a mídia "não viu"

A ascensão de Domingo Cavallo ao posto de "superministro", em 20 de março, foi um claro golpe de Estado na Argentina. Só Carolina - quer dizer, a "mídia grande" - não viu.

Ministro da Economia de Carlos Menem, entre 1991 e 1996, Cavallo foi o arquiteto do modelo eocnômico que produziu o presente caos. Caiu, em 1996, sob o impacto de amplas mobilizações populares contra sua política econômica. Foi derrotado, como candidato, nas eleições de 1999 e 2000. Agora, manda e desmanda na economia, com poderes maiores do que os presidenciais, com a total conivência (ou subserviência) de Fernando de la Rúa. Ele pode, em algumas circunstâncias, atuar como executivo e legislativo, por exemplo, ao decidir algumas intervenções no sistema tributário. Pode também terceirizar serviços e alterar leis trabalhistas, previdenciárias e de assistência social. Só que, para maior escândalo da consciência democrática, De la Rúa foi eleito com uma campanha que tinha como centro, precisamente, a crítica ao modelo implantado por Cavallo.

Cavallo "subiu", precisamente, por ser homem de confiança do FMI e do sistema financeiro mundial, muito mais do que o seu breve antecessor, o banqueiro López Murphy, portador de um escasso prestígio nacional. Cavallo é o equivalente argentino de um Pedro Malan (que foi do Banco Mundial e tem como "padrinho" Marcílio Marques Moreira, homem do grupo Moreira Salles no Brasil e atualmente no Merril Lynch, banco de investimentos de Wall Street) ou de um Armínio Fraga (gerente do megainvestidor George Soros e pupilo de John Taylor, subsecretário do Tesouro Americano para Assuntos Internacionais do presidente George Bush júnior).

Não é difícil entender as razões que levaram a "mídia grande" a silenciar sobre o golpe na Argentina. Os patrões são os mesmos, aqui e lá.

José Arbex Jr. é jornalista.

In Caros Amigos, número 52, julho de 2001