2004,Uma Odisséia Virtual

"Hoje, mais da metade da população da Terra vive em condições de miséria ou de miséria absoluta." 2001.
Na Terra Nova, a população foi drasticamente reduzida à metade. Houveram alguns critérios na eliminação dos seres humanos. Critérios estes amplamente discutidos num Conselho Universal composto por cem homens, considerados os mais capacitados a avaliar os interesses da Humanidade.
Esses homens, são escolhidos em todas as partes do mundo a partir de critérios básicos, como o profundo saber, a nobreza de caráter, espiritual, virtude (Arete – como diziam os Gregos na Antiguidade), condições econômicas (pois somente os ricos têm acesso ao saber), capacidade de avaliação de fatos aleatórios e firmeza na execução de ideais.
Não poderia ser de outra forma, já que esse reduzido grupo julgou e concluiu que três bilhões de pessoas (indistintamente velhos, adultos ou crianças) deveriam ser exterminados da face da Terá no período de um mês. E assim foi feito. Evidentemente que a oposição continuou existindo, fez o possível para que tal “limpeza” não fosse realizada. Aliás, é bom que se diga, no “Grupo dos Cem”, existe oposição, existem os “verdes”, os pacifistas. São entretanto em número desigual e invariavelmente vencidos pelo voto.
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Muita coisa já mudou. O continente africano, por exemplo, foi completamente extinto. Nada mais existe da África. Suas riquezas minerais são hoje extraídas lá, no fundo do oceano. Partes da América do Sul também foram completamente exterminadas, neste caso apenas o material humano, sendo as terras preservadas. Também povos do Norte. A China teve sua população reduzida a um terço do que era no famoso ano 2000, conhecido posteriormente como o Ano do Grande Ajuste. Rússia e  Brasil também foram reduzidos a um terço de sua população.
A intervenção para a eliminação de parte da raça foi viabilizada via Internet, sob a forma de vírus, mas com precisão cirúrgica. Os vírus foram programados para destruir máquinas e pessoas apenas que atendessem a um determinado tipo político, social e cultural. Um dos fatores de maior peso nessa avaliação foi a miséria. Procurou-se extinguir todos os miseráveis num primeiro momento. Depois os semimiseráveis, aqueles que não teriam mais condições de reabilitarem-se, de tornarem-se produtivos. Depois, o critério foi cultural. Os menos cultos, os menos inteligentes, os menos virtuosos. Outro critério foi o de eliminar primeiramente os envolvidos em crimes, primeiro os mais violentos, depois os infratores médios. Falou-se muito na época como “eliminar” criminosos sem tornar-se também um deles, como se discutiu ainda porque eliminar miseráveis já que os mesmos não eram responsáveis diretos por sua miséria, por sua incapacidade de produção, de ascensão social e cultural. Foi um ano inteiro de discussões e, infelizmente, muitos homens ricos, cultos e, portanto, não definidos como extermináveis, tiveram de assim o ser pois eram contrários à solução que chamavam de inumana, radical e mesmo “monstruosa”. E é verdade que mesmo aqueles que tomaram tais decisões a as executaram sofreram muito. Era um momento extremamente delicado. Eram as alternativas possíveis para a continuação da espécie, para a extinção da miséria e do sofrimento humano. Mas aquele momento, de qualquer forma, foi brutal, atroz.  

O Conselho Universal ou Grupo dos Cem trabalharam de várias formas, ora divindindo-se em pequenos subgrupos, ora cada participante pesquisando e pensando sozinhos. Aconteciam em seguida novas reuniões e o trabalho arrastava-se cuidadosamente. Hoje em dia já é comprovado que os participantes daquele primeiro grupo passou por tal agitação, tal estresse, que sessenta por cento deles morreu pouco depois da grande execução por doenças comuns a quem é submetido a uma descarga emocional e trabalho mental muito além da sua capacidade. Na época, a palavra que mais definia essas situações era “estresse”.
Sempre existiram guerras, desde o primeiro ser vivo sobre a face da Terra, a exterminação sempre aconteceu. O que causou maior desconforto em 2000 foi a forma de extermínio, a necessidade de exterminar sem as razões aparentemente “justas” das, até então, guerra tradicionais. Não se matou em nome de um deus ou por necessidade de delimitar uma fronteira, muito menos por ideais políticos e etc. Tratou-se na verdade de um ato político, mas onde não haviam lados opostos como se entendia até então. Da forma como teve de ser efetuado o trabalho, parecia tanto aos que estudavam, planejavam e executavam, quanto aos que se opunham a ação que era um genocídio, um assassinato de massas praticado por lunáticos, anormais. Muitos intelectuais e a imprensa mundiais foram contra.
Toda a ação foi praticada de forma singular, incompreensível para quem não estivesse com a visão do todo, do novo mapa geopolítico que se redesenhava. Sem numeras vezes grupos destruíam todo um grupo e logo depois, ainda achando-se “salvos”, era destruído por outro e esse por um terceiro. Ninguém sabia de onde vinha o inimigo, nenhum grupo sabia se era executor ou executável.
Todos os organismos formados para a preservação da paz, todos os tratados e organizações foram desfeitos com muitos dos seus líderes ou participantes sendo executados. Tratava-se da implantação de uma nova ordem social mundial e esse conceito era aceito por poucos e compreendido em essência por um grupo ainda menor.


A complexidade para a realização da Grande Mudança foi maior e mais difícil do que se poderia imaginar há alguns anos atrás porque naquela época a definição dos mundos paralelos existia, mas não era ainda bem entendida (e muitas vezes nem percebida pelos habitantes do planeta)
Como se sabe, poucos anos após o firmamento da Internet, esta assumiu seu papel de Universo Virtual Completo, um universo espelhado no mundo dos homens, com suas características, porém com um poder maior. Havia um poder virtual (como ainda existe) maior do que o dos próprios homens que o geriam e isso não era percebido. O conceito dos deuses estarem aqui, trabalhando em teclados não estava estabelecido. Ainda se pensava em divindades puramente espirituais. Ainda se achava que o espiritual era uma coisa distante, etérea e o virtual uma coisa “nossa”, sob nosso domínio. Esse engano, essa falta de percepção se por um lado acelerou, por outro facilitou a execução do grande plano. Este foi viabilizado pelos programas independentes que abasteciam o Grupo dos Cem com informações drásticas, ainda que verdadeiras. À época não se sabia que nove componentes do primeiro Grupo dos Cem era virtual, eram programas e não seres humanos como eram compreendidos naquele momento. Um dos componentes era virtual com características “espirituais”, ou seja, não pertencia ao mundo virtual conhecido, tornando o Grupo mais heterogeneo, mas causando alguma confusão quanto a sua autenticidade, veracidade e poder. Um dos elementos era desconhecido, era o que se entendia por alma dos humanos e desconhecido em todos os sistemas virtuais aplicados. Tinha, entretanto, tal clareza da situação e suas afirmativas eram tão coerentes, (talvez das mais coerentes) que não existiu motivo para não considerá-lo  importante membro do grupo. É bom esclarecer que depois do movimento esse participante desapareceu não deixando qualquer rastro, qualquer pista e jamais deu sinais de sua existência. Alguns doutores acreditam que ele era fruto de determinados fluídos cerebrais do grupo, atuando ali inconscientemente dos Cem, sem o aval consciente destes. Explicou-se na época algo mais ou menos como sendo um inconsciente coletivo daqueles que estavam trabalhando na ação e mesmo resquício dos que não estavam trabalhando, até mesmo dos que eram contra ou simplesmente vítimas inocentes. Era o inconsciente de todos , meio materializado, meio “virtualizado materialmente” que se assumia para dar voz aos que não tinham possibilidade de expressão. Foi uma das explicações que justificou que fosse aceito no Grupo.

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Seu nome era A. Logo após a eliminação dos povos, do continente e de outros acertos, ele propôs que o mundo se mantivesse com um único governo e que esse governo deveria estar envolvida na Grande Transformação, ou seja, propôs que o Grupo dos Cem governasse o Novo Mundo. Numa das assembléias, para justificar o governo único, disse:
- Como sabemos, todo Estado é uma sociedade, a esperança de um bem, seu princípio, assim como de toda associação, pois todas as ações dos homens têm por fim aquilo que consideram um bem. Todas as sociedades, portanto, têm como meta alguma vantagem, e aquela que é a principal e contém em si todas as outras se propõe à maior vantagem possível. Chamamo-la Estado ou sociedade política.
- Com isso – interpelou outro dos participantes, o senhor quer dizer exatamente o contrário do que se propõe. Fala do Estado, como um Estado, permitindo outro. Cada Estado deve então ter seu governante.
- E é a verdade. Cada Estado deverá ter seu Governante, mas todos seguirão regras expressas, regras indiscutíveis pois o planeta é a sociedade, a Terra deve ter uma só característica.- tornou ele.
Um terceiro membro interferiu.
- Concordo. Temos que tomar todo o cuidado, colocar em prática o plano por inteiro, caso contrário em pouco tempo o caos retornará. O controle da natalidade, por exemplo, já está sendo aplicado. Os casais já entenderam que podem ter apenas dois filhos cada e o sêmem é, antes da inseminação, avaliado em laboratório, tendo sua formular final várias alterações no DNA para que a raça continue perfeita. O contato homem mulher, portanto, mantêm-se apenas para estruturar o Estado de forma familiar, para que os parceiros tenham prazer, para que o modus vivendi humano não seja alterado muito rapidamente, para que haja tempo de adaptação, mas nenhum homem mais nascerá sem interferência especializada em laboratório. O casal é um ente político apenas. Não é necessário para a reprodução.
Consultando um terminal, outro membro levantou-se.
- Senhores. Acabo de receber a confirmação pela Rede que o pensamento que o Conselheiro A. discursou, é um pensamento de Aristóteles, descrito no Livro A POLÍTICA. Senhor, o senhor representa Aristóteles? – perguntou olhando o ancião.
Todos olharam em direção àquele que era o menos compreendido, que não se tinha noção do que era exatamente. Ele, entretanto, não se perturbou:
- Sim. Neste momento represento Aristóteles e lamento que o senhor tenha levado quase um minuto e meio para identificar uma frase, um fragmento de pensamento tão conhecido, de tal sábio. Citei-o por achar conveniente, não precisei, como o senhor, consultar a Rede. Creio que devemos cuidar mais de nossa cultura para que tenhamos condições, acima de tudo morais, de conduzir o povo desse novo mundo.
- Não concordo, meu senhor – rebateu o que consultara o terminal. – Não precisaremos repetir frases feitas, frases de 3.500 anos atrás ainda que elas sejam de grande sabedoria. Os pensamentos estão armazenados e seu conceito de cultura é equivocado. Tenho mais o que estudar, o que pensar do que ficar decorando filósofos.
A maioria do grupo concordou. Não precisavam ter conceitos prontos. Deveriam disponibilizar seu cérebro para novas elaborações. A discussão parou naquele momento e os membros se separaram para o descanso previsto, mas cada um deles saiu pensando como A. transmitira um conceito inteiro tão antigo. Era uma entidade, no sentido religiosos (das religiões menores), aquele homem velho. 
Continuaram pensando se esse mundo novo ainda admitiria tal tipo, meio homem meio espírito, que ali se colocara. Como discutir com o desconhecido? Ele, afinal tinha um centésimo de poder sobre toda a humanidade e sobre toda a face da Terra e, pior, discutia as novas formas de reprodução, matéria que já havia sido aprovada em várias plenárias. Ele substituía um homem que morrera, mas que em vida fora radicalmente contra o controle absoluto, em laboratório sobre a reprodução da espécie.
Esse, foi derrotado por absoluta unanimidade. Apenas ele, contra os 99 achava que a vida deveria continuar se dando de forma natural. Não compreendera que o conceito de natural estava alterado. Como podia concordar com o extermínio de mais de três bilhões de seres humanos e falar em reprodução natural, entendendo esse termo de forma arcaica?
É preciso enfatizar que durante as negociações do Grupo dos Cem para decidir sobre o extermínio, além de pesquisa abundante, houve muitas sessões para discussão e que neste período muitos de seus membros morreram. Ao contrário do que possa parecer, nem todos os que morreram eram contra o grande extermínio, eliminando-se assim uma impressão tola e estreita de que “todos aqueles que votassem contra” seriam eles próprios exterminados. Morreram de doenças consideradas na época naturais: oito de enfarte fulminante, quatro de parada cárdio-respiratória, sete suicidaram-se com tiro na têmpora, três foram assassinados, dois atropelados, três de coma alcoólica, nove por ingestão excessiva de tranqüilizantes. Todas as mortes ocorreram no prazo de um mês, tempo gasto para a decisão ser tomada e serem criados todos os decretos que regulariam as formas de execução e as regras que vigorariam para o Novo Mundo.Os cientistas do grupo acharam o número de baixas bastante razoável para a importância da matéria tratada e, obviamente, o nível de pressão que cada membro do grupo sofreu.

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Vale citar algumas personalidades que participaram do Grupo dos Cem (e que não morreram durante a ação propriamente dita):
O Papa Marcos I
O Dalai Lama
Dezoito Generais
Seis Presidentes da Republica
Uma Rainha
Três Príncipes
Quatorze Filósofos
Um Líder Sindical
Sete engenheiros programadores (setor de informática)
Quatro Biólogos
Quatro Economistas
Três Primeiros Ministros
Três Psiquiatras
Três Físicos
Três Sociólogos
Dois Antropólogos
Dois Banqueiros
Dois Grandes Empresários

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O Papa levantou-se:
- Irmãos, senhores: Fui convidado a pertencer a este Conselho e aceitei pela importância nas decisões a serem tomadas, decisões que influem em todos nós seres humanos, e mesmo em nosso Planeta. Deus Nosso Senhor e seu Filho que esteve entre nós para nos salvar, com certeza, sofre num momento como esse. Com toda a certeza, não era o que Ele queria para seus filhos. Desde o Pecado Original que o Mundo e os homens vêm tomando atitudes... atitudes que os desvirtuam cada vez mais do caminho... A Igreja, com seus erros e acertos vem procurando recolocar o rebanho na trilha da paz, do Reino do Senhor. Todavia, foi, na grande maioria das vezes , criticada, acusada e principalmente desconsiderada. Os homens, assim como fizeram com Cristo Nosso Senhor, não deram ouvidos à sua Igreja e agora chegamos ao ponto em que chegamos. Não há mais ordem, nem respeito, nem virtude, nem caridade entre nossos irmãos. Tornaram-se um grupo de bestas feras que se matam, se estupram, se corrompem... Chamam então o Papa e o convidam para fazer parte de um grupo que vai “reorganizar o mundo”. Quem sou eu para reorganizar esse mundo se nem Jesus Cristo... – Fraquejou e continuou – Entretanto, como herdeiro do trono de Pedro e representante deste na Terra tenho que me posicionar. Sangra o meu coração ao votar a favor da formulação encontrada por este grupo heterogêneo, formado por pessoas preparadas, por sábios, por personalidades que, com certeza, vasculharam todas as possibilidades a seu alcance antes de chegar a este veredicto trágico... O que posso dizer?.... Ser contra? Vejo a decisão de afundaram o Continente de onde sou filho, a África... Ironia do destino ou vontade do Pai? Eu, o primeiro Para negro, votar pela exclusão de meu continente e meu povo.... Alguns aqui, em momentos de mais tensão, falaram em racismo... Não. Os negros, o povo negro, honrado e sofredor desde a primeira hora está espalhado pelo mundo. Na África existiam também os brancos. Segundo a Ciência, foi na África que se originou o homem como ele é hoje... Mas o que fazem meus irmãos por lá? Não aceitam ajuda externa, vivem em estado bárbaro, venerando demônios e matando-se em guerras sem fim... Não querem produzir, não querem evoluir, costuram os órgãos sexuais de suas parceiras, praticam canibalismo.... Que posso eu fazer, Senhor Meu Deus...? – Parou e  soluçou baixinho.

O Grupo dos Cem observou-o silenciosamente.
Levantou-se o Primeiro Psiquiatra:
- Vossa Santidade... Senhores: Antes de tudo, devo dizer que discordo, com o devido respeito, de Sua Santidade. Não creio que a Igreja tenha feito tudo o que esteve a seu alcance para que o mundo chegasse a tamanho caos. Não vi a divisão de riquezas nem mesmo a tentativa, muito ao contrário. Vi o estímulo ao empobrecimento com o discurso que “dos pobres será o reino dos Céus...”, sem falar das incontáveis “Guerras Santas” ou a monstruosa “Santa Inquisição”. Há bem pouco tempo vi o Papa ao lado de Hitler... Mais próximo ainda vi a Igreja repudiar os gays e, pior, proibir o uso de preservativos mesmo diante da peste da AIDS. Portanto, acho, ao contrário de Sua Santidade, que a Igreja ajudou e muito a que o mundo chegasse aonde chegou. – O Grupo se agitou, iniciou-se um burburinho contido, a custo, pelo Presidente da sessão. Continuou o Primeiro Psiquiatra -  Bem sei, senhores que não me cabe julgar Sua Santidade ou qualquer dos senhores por votar pelo genocídio, pela extinção pura e simples de três bilhões e meio de seres humanos, bem como a destruição de terras. Cabe muito mais a um homem que abraçou minha profissão alertar para os perigos a que todos nós ficaremos expostos, não pelo julgamento posterior, mas por nossas próprias cabeças, cabe-me alertar que nem todos, ou poucos, conseguiremos ultrapassar essa fase sem profundos danos à nossa capacidade posterior de raciocinar dentro de alguns “parâmetros de normalidade”. Eu não sairei desta sala como quem autoriza a internação de um louco, ou mesmo, quem sugere uma lobotomia num paciente. Se estes casos já trazem consigo uma determinada (embora, às vezes no momento, imperceptível) carga de estresse, imagino os danos irreversíveis em nossos cérebros pela atitude que, ainda que obrigados, estamos tomando. Não temos estrutura mental, formação ou  status cultural para agirmos sem um pesadíssimo ônus em nossa capacidade de viver razoavelmente bem depois destes dias. Acredito mesmo, e já conversei com meus colegas – disse olhando para os outros Psiquiatras – que destruir a metade da Terra equivalerá no mínimo, a uma fissura no interior de nossa “psyché”. Estamos condenando aos outros e a nós mesmos, ainda que não exista outra alternativa. – Sentou-se e ninguém disse nada.
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Setembro de 2002
Marcos a Danuza se conheceram numa Reunião de ufólogos.  Vinham seguindo caminhos diferentes, grupos diferentes, sempre estudando a possibilidade de vida fora da Terra. Marcos C. é um estudioso. Médico-Psiquiatra, Biólogo e Filósofo conheceu o Dr. Miranz num seminário espírita.
- Senhores – disse Miranz no início de sua palestra – Proponho a questão pensada já por todos, mas ainda não colocada em nossos índex religiosos ou científicos: após a morte, quando é decidido que a alma retorne à Terra para dar cumprimento à sua missão, pode essa reencarnação dar-se em período anterior ao vivido na último vinda. Pode o espírito que viveu em 1998, reencarnar em 1024? O espírito, a alma, desencarnada, está num plano superior, acompanhando o Planeta Terra de longe, do etéreo, do não-mundo. Entendemos que esse mesmo espírito segue um círculo evolutivo de encarnações para seu crescimento, para sua purificação e para isso vem à Terra várias, inúmeras vezes. Isso está claro. Entretanto, do etéreo, desse lugar luz (ou sombra) ele tem, à luz dos vivos, “poderes” já que sai e volta ao nosso Planeta, à vida. A sua espacialidade é irrestrita já que freqüenta a prostituição, a violência, os hospitais, as doenças e também o etéreo, a imortalidade da alma, a possível proximidade de Deus. Esse mesmo espírito não pode evoluir no sentido amplo voltando no tempo? Depois de ser um magnata, um milionário perdulário em 1990, não pode ser um campônio humilde e leproso em 1200, na Idade Média?
A senhora De Angelis, Historiadora, com teses
de Doutorado sobre Homero, Teóloga, freqüentadora de seitas religiosas no interior da África, líder de um grande centro espírita no Brasil e consultora de Magia na Suíça tomou a palavra, firme, apesar de seus 76 anos.
- Professor. Sua questão é impactante porém nada tem de nova. Já estudamos essa questão em vários fóruns, não só aqui como em outros países e mesmo no espaço, no etéreo. Na União Soviética mesmo, em plena época de Guerra Fria, fizemos várias experiências nesse sentido, bem como em Uganda quando chegamos a sacrificar crianças predestinadas (e abençoadas) para que tentassem voltar em outras épocas. Aparentemente sua provocação quer dissociar tempo e espaço, quer mudar o rumo natural da evolução ditado por Deus. Mas o tempo está definitivamente preso ao espaço não só para os homens como para suas almas, como não poderia deixar de ser. Sua questão tem muito mais a característica do polemista que a do intelectual – sorriu – e isso faz parte de sua simpática personalidade, bem como de alto grau de erudição. Mas nesse caso, caro Dr., não existe mais a possibilidade de polêmica. Existe uma espiral evolutiva em todo o Universo, material e imaterial. Estamos sempre andando para frente, nunca o contrário. Nossos cientistas podem perfeitamente encontrar formar mecânicas, físicas, máquinas do tempo que permitam um retorno a épocas passadas, mas será apenas uma experiência científica muito possivelmente de pequeno valor, ou de valor apenas para alguns acertos históricos. Quando se fala de purificação, de evolução espiritual, estamos tratando de algo muito maior, que transcende os desejos dos cientistas e da Humanidade em geral. Deus não joga dados, como se diz, nem brinca, acrescento eu. O espírito sempre reencarna em época posterior a sua última estada na Terra para que possa justamente dar continuidade a esta evolução dos seres que não poderia, obviamente, andar para frente e para trás em qualquer tempo, material ou espiritual.
Marcos C. pensou em interferir mas voltou a atrás e continuou apenas como ouvinte. Aquela questão não era primordial. Iria falar no aumento exponencial da população na Terra e da fecundidade das almas que teriam de se reproduzir para atender a demanda terrestre, mas sabia que De Angelis teria opinião formada e como transitava, apenas elas, entre os mundos, sua palavra ali seria incontestada.
                                           Esperou o término do seminário. Saiu para distrair-se um pouco. Acendeu um cigarro. Chovia de leve. Caminhou dois quarteirões distraído em identificar as câmeras instaladas em postes, marquises de prédios, portas de lojas e igrejas. As câmeras eram viradas para lados diferentes, como setas que indicassem mil caminhos diferentes. Todas eram recobertas por capa de aço na cor chumbo.
A população, após tantos protestos começava a se conformar com o novo modelo de segurança com visualização a distância. Apesar de todas as discussões sobre privacidade, direitos, etc, prevalecera a realidade mostrada pela Rede que, após dois meses de auto pesquisa e troca de protocolos, indicara esse sistema como o único viável para atender a demanda e o anseio da própria sociedade. A Rede encontrava soluções com margens de falha mínimas e os juízes aceitavam todos os relatórios e os transformavam em leis. A discussão de serem controlados pela inteligência da Internet, autônoma, sem qualquer interferência humana, continuava ainda acontecendo em seminários e programas de TVWEB, mas os teóricos favoráveis sempre alegavam que fora o próprio homem que fornecera aos computadores as informações necessárias para que a Rede pensasse  sozinha. Os programas rodavam independentes de qualquer vontade e, abastecida de toda a informação e todo o saber, a Rede avaliava os “problemas”, julgava e criava as soluções pertinentes. Existia um consenso mundial, ainda que virtual, que atuava em todos os campos da sociedade onde o homem sozinho falhava. Pequenos grupos ainda resistiam, com o purismo de que “não poderíamos ser comandados por uma virtualidade, por deliberações de programas de informática”, mas esta tese era facilmente rebatida. O que era afinal, o livre arbítrio do homem? Uma decisão tomada pela virtualidade do seu pensamento, através da ação de seu cérebro (finito). A Rede dispunha do saber e da informação de qualquer cérebro ou melhor, do que qualquer grupo de um bilhão de cérebros. Assim, ela estava insuperavelmente mais capacitada a deliberar sobre qualquer assunto, qualquer ação de cidadania.
Marcos C. não conseguira ainda formular uma tese concreta sobre tudo isso. Ora, achava que era um absurdo ser comandado pela virtualidade instalada, ora reconhecia que ela era de fato soberana. Nunca conseguira, por exemplo, encontrar uma solução mais apropriada que a da REDE. As vezes chegava perto, mas numa análise detalhada, considerando o bem estar de toda a sociedade mundial, todas as diferenças, peculiaridades, acabava derrotado pelo conceito concreto emitido pela Rede. Esta concluíra, portanto que, a exemplo de um filme futurista de 1999, as cidades, as ruas e as casas deveriam ser vigiadas por câmeras e quem geria todas essas imagens e dispara as ações pertinentes a cada uma delas era a própria Rede.Não havia um poder constituído nem uma visão caso a caso. Para cada infração ou atitude inconveniente para a sociedade, a Rede tomava as providências cabíveis automaticamente. Os casos em que iam a julgamento eram poucos e os Juízes deliberavam ouvindo a parte desconte e a Rede. Esta, evidentemente, sempre provava estar correta. A vantagem deste conceito social é que a Rede tomava decisões e emitia pareceres levando em conta todas as possibilidades, toda a História, todas as Leis, toda a Filosofia e Estatística acumulada em milhares de anos pelo homem. Hoje, a Rede, pensava sozinha, fazia combinações e deliberava. Mais: criava, ela própria, conceitos altamente filosóficos. E o homem filósofo ao defender suas teses (sempre aceitas), incorporava-as a Rede e vice versa numa simbiose infinita e irrevogável e incontestável.
Marcos C. entrou no prédio dos Seminários Avançados de Ufologia. Dentro do elevador, após identificar-se, foi comunicado pela Tela, de qual grupo e sala deveria comparecer. Não era uma abstração. As sondas espaciais já haviam provado à Rede que existiam várias formas de vida fora da Terra. Os seminários aconteciam exatamente para que os homens debatessem os conceitos éticos a serem adotados na hora do encontro com os extra terrestres. Todas  as discussões eram coordenadas pela Rede e, ao mesmo tempo, armazenas por ela que terminava por ser participante e criadora também de conceitos.