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A HISTÓRIA Meu encontro com Vanessa foi semana passada num ônibus, num desses dias que vou trabalhar sem carro, pois, voltando tarde, não teria vaga para o mesmo na rua. Vanessa sentou-se a meu lado e olhava pela janela tranqüilamente. Tinha uma mala no colo que,a uma freada brusca, espalhou papéis em baixo do banco. Abaixei para ajudá-la a catá-los e terminamos rindo com a cabeçada que dei. Vanessa acabou saltando no mesmo ponto que eu. (Achei uma coincidência maravilhosa). Andamos lado a lado por vários quarteirões. Ela falava muito mais do que eu (que nunca sei o que dizer, como todo mundo que me conhece, reconhece). Por fim, sentados num barzinho tomando Coca Cola. Qualquer outro casal, bem sei, estaria tomando chope, mas nós não bebemos e a Coca foi o mais refrescante que pensamos naquele calorão todo. Ela era jornalista, estava quase conseguindo um emprego num lugar estranho. Iria ser assistente de um homem, de um jornalista, que estava reconstituindo o caso daquela mulher de São Paulo que apareceu estatelada de uma altura enorme durante o apagão. Quem quase se estatelou fui eu. Contei para ela que não era possível, que eu andara investigando aquela história e não conseguira nada. Era uma coincidência monstruosa encontrar uma pessoa num Ônibus que ia trabalhar com um homem que estava perseguindo exatamente a mesma história. E quem era o Homem? Ela não sabia ainda, estava fazendo contato com um outro assistente dele, parece que o camarada não aparecia muito. Muito misterioso, tudo aquilo. Ela concordava. Era cinco anos mais nova do que eu, trinta e nove anos, portanto. Era uma intelectual “meio fracassada”, como se descrevia. Ri. – Eu também – respondi. Vanessa morava sozinha num pequeno e agradável apartamento na Tijuca. Não tinha filhos. Tinha dinheiro, mas não muito, aquele dinheiro que todo mundo que trabalha bastante te,. Dinheiro contado, mas que dava para “comprar alguns livros por mês”... Gostava de muitas coisas que eu gostava também. Ler e ir ao cinema, por exemplo. Líamos juntos e íamos ao cinema. Passamos a fazer isso sempre. Nada foi muito planejado, mas a verdade é que tínhamos prazer em ficar um com o outro. Um prazer enorme. Descobri um dia que ela tivera um filho e que este morrera em circunstancias estranhas. “Quais?” – perguntei, mas ela não gostava de falar sobre isso. Sempre me repetia que não queria falar sobre isso, que não agüentaria. Eu insistia: “Mas por quê? É importante que v. fale sobre isso, é importante que v. consiga falar e que eu entenda, que eu possa ouvir de v....” Nada a demoveu, de qualquer maneira. Comecei então a pesquisar sozinho. Aos poucos juntei algumas informações, como de se cidade ela era, de que bairro de que rua. E, também aos poucos , soube que ela fora tremendamente apaixonada por um homem, um alcoólatra, e que tiveram um filho. Investiguei mais, muito mais, e fracassei. No final, havia uma impressão, não comprovada, de que ele (ou ela) matara a criança acidentalmente, deixando-a a cair do colo. Pensei primeiro no pai, bêbado, com a criança no colo e deixando-a cair. Mas cheguei a um beco sem saída e acabei por não concluir nada. Não sabia de deveria comentar com Vanessa o que descobrira. Aliás, é bom que se diga, essa história de alcoólatra largar criança no chão causando-lhe a morte não é nenhuma novidade. Li um livro, Vernônia, se não me engano, onde a personagem fazia a mesma coisa e caía na mendicância depois. Essas coisas devem acontecer muito, não só na literatura, mas na vida real também. A verdade, enfim, é que acontecera a mesma coisa ou algo parecido com Vanessa. Falei com ela, que me disse claramente não desejar falar sobre o assunto. Não falaria e ponto final. Resolvi também não falar mais nada. Preciso, de alguém maneira, fazer uma conexão entre essa história e a de Manoel (M), que está sendo desenvolvida no papel. Mas acho que já sei. Manoel era o marido alcoólatra de Vanessa. Hoje ele não bebe mais nada. Tem uma vida completamente séria, voltado para as artes e a filantropia. Tem pequenos arroubos místicos, porém sem muita freqüência ou solidez. E o caminho desses nossos dois personagens talvez voltem a se cruzar e possivelmente eu venha a ser excluído o que seria muito triste. Gosto de estar nesse meio, nessa ambiência onde as coisas não se resolvem de fato. Na verdade é uma construção onde eu gostaria muito de não estar só, de poder contar com a ajuda do leitor. O leitor poderia (eu ficaria muito grato e sensibilizado) se o leitor escrevesse também e me ajudasse a compreender esse labirinto que proponho se, contudo, perceber ainda para onde ele se encaminha. Leio sobre o suicídio de Virgínia Woolf e fico ainda mais confuso. Porque aquela mulher se matou? Porque era doente, ok, isso eu entendo. Mas... por quê? Não encontrar o homem no espelho é pior do que a cegueira. O cego já viu ou tem a esperança de ver. O cego sonha. O cego sonha. O cego sonha sempre. O espelho não reflete? Como pode o espelho não refletir? Manoel não se refletiu. Olhou novamente. Aquilo não era possível. Olhou então novamente. O espelho era novo e bonito e ele não refletiu. Lembrou dos vampiros. Seria ele um vampiro ?!! E, pior, se ele não fosse um vampiro, seria um caso mais estranho do que ser, de fato, um vampiro! Nunca gostara de espelhos. Essa era a verdade. Os espelhos têm fama de uma fidelidade que não tem. O espelho mostra parte da coisa, parte do ser. Não reflete tudo. Não reflete o pensamento nem o sentimento. Se engana amiúde sobre as intenções. O espelho é uma mentira. M. sabe que o espelho é tudo isso. E tem muitos espelhos em sua casa. Espelhos de vários tamanhos, formatos e idades. É ambíguo que não goste deles. Quem vai à casa de M. ( e muito poucos vão) jura que ele é fascinado pelo espelho. Eu diria que ele é fascinado pelo reflexo. Pelo reflexo de. Pelos muitos reflexos a que somos submetidos. E a palavra “reflexo” tem para ele muitos outros significados. O reflexo é verdadeiro. O espelho não. O reflexo sempre vem de forma justa, ainda que nem sempre clara. O reflexo existe. Refletimos e recebemos reflexos que devem ser muito bem avaliados. Manoel é atento observador dos reflexos que lhe voltam e, através deles, reafirma ou altera atitudes, decisões e tudo o mais. Reflexos claros. Reflexos que não podem mentir. Podem enganar aos menos perspicazes, mas não mentir como fazem os espelhos. M. caminha algumas horas pela rua. Leva um espelho embaixo do braço. Um espelho leve e não muito grande. Depois de algum tempo começa a chover, o que não o faz diminuir a caminhada. Pára. Olha-se no espelho. Anoitece. Mira-se no espelho entre gotas de chuva. Gotas em seu rosto e gotas no espelho. Lembra de Vanessa que está em outro lugar. Deveria encontrá-la, mas está distante. Muito. Precisa de uma pessoa, F., para uni-los. Descobre, como por encanto, que sua vida está nas mãos de F. e F. parece implacável. Parece maligno. Não tem certeza, mas é muito provável que sim. Telefona para F.: “Olá” “Diga, Manoel” “”preciso encontrar Vanessa” “Impossível” Já esperava por uma resposta assim de F. Todos dizem que ele é assim. “Não é impossível. V. tem poder sobre nossas vidas. Pode fazer com que nos encontremos. Você detém a pena, você pode unir a história dos dois. O que perderia? Nada. O que ganha não promovendo o nosso encontro? Nada também. Lembre-se, F. , você nada ganha impedindo o encontro. Silêncio na linha. “Pelo contrário” – continua Manoel – “Vanessa poderia brigar comigo, eu poderia matá-la. Muitas coisas poderiam acontecer se você nos unisse. Afinal, você não poderá levar tudo isso, da forma em que está, muito adiante. A questão dos espelhos, por exemplo, já foi exaurida.” Continua o silêncio. Manoel sabe que F. está do outro lado, que está ouvindo, que está avaliando. “Eu e Vanessa poderíamos dar mais argumentos a você, facilitar o seu processo criativo. Quanto tempo mais v. conseguiria desenvolver a narrativa dessa maneira, em separado?” F. suspirou. “Volte para casa e me ligue novamente” Ok, alguma coisa mudara. Manoel correu para casa. Usou o ônibus para não perder muito tempo. Entrou, molhado, no banheiro. Tirou a camisa, vestiu um roupão, secou a cabeça. Ligou. “Pronto, F., já estou em casa” “Eu sei” “E agora? O que resolveu sobre eu e Vanessa?” “nada. Não quero resolver nada por enquanto. De qualquer maneira, olhe o espelho grande, o oval, da sala.” M. pensou um pouco. Quais seriam os planos do outro? Deveria tocar no assunto de que não estava se vendo, não estava refletindo nos espelhos ou F. já saberia? Tinha que saber, afinal... “Não vou olhar. V. bem sabe que não estou me vendo nos espelhos, que estou muito preocupado com isso. Ou sou um vampiro ou pior do que este já que também não reflito mas não tenho poderes nem bebo sangue, nem sou forte, nem poderoso” F. sorriu “Eu sei” “Então, por que manda eu olhar? Bem sabe o que vai acontecer. Melhor seria se me explicasse essa história do espelho.” F. respondeu pacientemente “Não vou explicar nada. Não quero. Não tenho que te explicar nada. Estou apenas tentando ajudar. Vá até o espelho que indiquei na sala. Apenas vá e olhe.” M. irritou-se mas nada respondeu. Despediu-se. Desligou o telefone. Foi até a cozinha e tomou dois copos grandes de Coca Cola. Sentia sede, uma estranha e grande sede. Ir até a sala... Olhar um espelho e não se ver.... Não... Melhor seria não olhar mais nenhum espelho. Era um problema que podia ser adiado. Deveria contar com a Boa vontade de F. para resolver aquilo e, claramente, não era o momento oportuno. Sabia muito bem que Vanessa existia, sabia que ela tinha um passado misterioso, que era uma pessoa misteriosa, talvez mesmo uma assassina.... Era muito importante encontrá-la. F., aquele filho da puta, podia facilitar as coisas e não o fazia. Recebera ele, Manoel, uma carta naquela manhã: “Caro Sr. M. Sei que está aí, nesse outro lugar. Sei também que coisas estranhas estão acontecendo em sua vida, coisas que não consegue muito bem explicar. Saiba que estou em outro ponto, mas sei de sua existência. Sei do Sr. Por intermédio de F. que é, por sinal, quem me dita essa carta. Ele pensa em nos unir, mas tem muitas dúvidas. Tem um projeto muito estranho (acho até assustador). Quer que vivamos dessa forma, por enquanto, distantes. Reconhece que sabemos um do outro, sabe que estamos com problemas e sabe que nos ajudaríamos um ao outro, juntos. Mas ele não quer fazer nada a esse respeito. Vou tentar novamente conversar com ele a esse respeito, mas acho que o sr. Também deveria tentar (e muito!). Não me parece uma pessoa má, apesar de tudo. F. às vezes parece mais perdido do que nós mesmos. O poder que ele tem, o poder de decisão termina por ser limitado e limitador e isso o angustia. Ele é frágil. Muito. Não é fraco, mas é frágil. Tenho ainda o problema com a mulher suicida de São Paulo (aquela que se matou – ou dizem – durante o apagão desse ano) e ainda problemas com as investigações sobre meu passado (que, afinal, não fui eu quem criou!). Por tudo isso, creio que devemos nos encontrar. Nesse mesmo envelope, mando um cartão azul claro contendo o telefone de F. para que o sr. Faça o contato. Voltarei a escrever. Vanessa” Aquela carta o deixara mais do que curioso. Não conseguia pensar em outra coisa. Como fazer? F. se negara! Mas tinham coisas muito mal explicadas. Como Vanessa conseguira seu endereço? Por que não preenchera o remetente? E que história era aquela de dizer que a carta estava sendo ditada por F. ? Esse F. era louco, não restava dúvida. Ou louco era ele, pobre Manoel, que sequer refletia nos espelhos (ou assim pensava?)? Tomou mais uma Coca Cola. Resolveu ir ler na sala. Pegou um livro, sentou-se numa poltrona e leu um pouco. Uma hora talvez. De repente, se deu conta de que o espelho grande, ovalado, estava à sua frente, na parede bem frontal. Não podia se olhar (ou tentar) porque estava sentado e o espelho, pendurado, bem mais alto. Levantar? Olhar? Não. Pra quê? Tentou continuar, sem sucesso, a leitura. Não conseguia mais se concentrar ( e não era para menos!) Levantar e olhar no espelho.... Por que não resolver isso de uma vez por todas? O telefone, assustando-o, tocou. Esticou o braço e atendeu “ E então? Olhou-se?” perguntou F. do outro lado. “Não. Já disse que não me vejo em espelhos, isso está me dando nos nervos e quero me acalmar. A troco de que insistiria numa coisa que só está me fazendo mal? E você? Por que deseja que eu sofra? Eu só quero encontrar Vanessa.” O telefone continuou mudo, mas M. sabia que F. estava do outro lado: “Recebi hoje pela manhã a carta que v. ditou para ela. A carta que você queria que eu recebesse para ficar desesperado. O que v. quer afinal de contas?” F. desligou e M. chorou. ................................................. Manoel levantou e, sem olhar para o bendito espelho, seguiu para o outro lado as sala. A caixa de couro comprada na feira hippie até hoje não tivera nenhuma utilidade. Ele era campeão de comprar coisas inúteis (desde pequeno). Na verdade, não se sentia muito culpado, não tinha realmente o que colocar ali dentro. Abriu a caixa. Em seu interior viu alguns papéis amassados, um pouco amarelados e, ao separá-los, viu que eram bilhetes, papéis dispersos. “ A mulher não se matou. Ela foi assassinada. Na verdade ela pertencia uma uma seita de culto ao demônio numa cidade do interior. Estava em S. Paulo há muito pouco tempo - mais ou menos seis meses – e seja o que for, veio da cidadezinha acabar com ela por aqui. A força era tão malígnica que conseguiu provocar um apagão no Brasil quase todos, por horas apenas para dar cabo daquela sacerdotisa que agora negava seu deus, o Diabo. E com o Diabo não se pode falhar. Da mesma forma que ele não falha conosco. Por isso ela foi eliminada. E todos os que tentarem fugir ou negar aquilo a que se propuseram, terão o mesmo destino.” Esse era o texto de um dos papéis. M. ficou estarrecido. Aquilo não podia ser verdade. Tinha alguma coisa a ver.... Claro, Vanessa falara numa mulher morta em São Paulo na sua carta. E quem colocara aqueles bilhetes em suas caixa. O que ele tinha a ver com Vanessa se nem a conhecia? Algo não estava explicado. E só uma pessoa poderia Ter a resposta para todas essas coisas: F. Ele não falava, não se mostrava, não facilitava nada. Era preciso, então, encontrar um meio de pressioná-lo. Como podem acontecer coisas desse gênero? Quer história é essa de Diabo? Caramba! A coisa estava começando a tomar proporções desagradáveis. O quê F. e V. estavam fazendo? Estariam ambos de acordo naquilo tudo? Ligou novamente: “Alô.” “Diga, Manoel” “Quero saber porque anda colocando bilhetinhos nas minhas coisas... Que históra é essa de mulher assassinada, de seita e tudo o mais? O que eu tenho com essas coisas? O que você está pretendendo? Vanessa está com você nisso tudo?” “Manoel, são muitas perguntas. V. foi até o espelho?” “Claro que não. Já disse que não quero saber de espelhos, não quero pensar agora nessa coisa toda de refletir ou não refletir... Estou preocupado com vampiros e me aparece essa história de seitas, de cultos ao Diabo, de assassinato.... o que v. está pretendendo?” “Não estou pretendendo nada. As coisas estão acontecendo. Tudo está acontecendo o tempo todo, v. sabe. Não há porque se desesperar.” Manoel sentou-se ainda com o bilhete na mão. “A vida não é assim tão cheia de mistérios e segredos. Tudo se conversa, se fala, se explica. O que v. está pretendendo, criar o quê?” “Nada. Participo dessa vida, da mesma vida que v.” “Vanessa diz que v. tem poderes” “Parcos. Nada de tão grandioso como v. pensa. Tenho algum poder como todos têm algum poder, certo?” Ele estava ganhando tempo e Manoel sabia disso muito bem. “Por que colocou o bilhete falando do Diabo, na minha casa?” “Porque é importante que v. entre nessa história. Existe realmente uma seita. Existem várias aliás. Essa foi para São Paulo e virá para o Rio. V. se envolverá com ela.” Manoel levantou. “O quê?! Eu o quê? Escuta aqui, cara, eu não vou me envolver com coisa nenhuma, não sei nem se tudo isso é possível, se é verdade, se estou sonhando, se estou delirando....” F. riu “ V. sabe que não é delírio nenhum, que tudo está acontecendo e v. está no meio de tudo. E mais, vai participar muito de vários acontecimentos.” “Que acontecimentos?” “Todos os que estão por vir” Manoel caminhava pela casa, longe daquele espelho “E o que está por vir?” “Vamos nos encontrar” sentenciou F. “Ok, é bom mesmo que nos encontramos. V. poderia aproveitar e levar Vanessa. Preciso estar com ela." F. não respondeu. Disse apenas o endereço do restaurante que deveriam encontrar-se dentro de duas horas, às 23,50, portanto. Vanessa viveu em 18.. Ano estranho esse. Na época, falava-se em muitas novidades. Os intelectuais escreviam febrilmente. Vanessa, como todos, era tuberculosa e, dizia-se, bruxa. Era casada com o médico Manoel. Dr. Manoel Marzagão. “O que você guarda nessa caixa, Vanessa?” “Já te falei, Manoel, não é nada de importante. São poemas, bobagens, coisas de mulher....” “O que v. faz não são bobagens, minha querida” Falou e calou. Seus olhos ficaram parados. A mulher não reparou (?). M. trancou-se na biblioteca. “O que vamos fazer” - ele ouviu sem ver quem falava. “Não sei, mas temos que cuidar dela antes que descubra tudo. “Vamos matá-la de uma vez” “Ainda não. É importante deixá-la cumprir a sua missão. Ela vai terminar o trabalho para nós” Manoel esforçava-se para ouvir e compreender. A vozes, na verdade, eram sussurradas, quase inaudíveis. Manoel tentava descobrir de onde elas vinham. Muitas vezes, a impressão é que pessoas estavam atrás das estantes, atrás dos livros... Quem andaria por ali? E a quem pretendiam matar? Manoel ficou quieto. Não suportava mais. Preparou mais um calmante (o quinto daquele dia) e tomou. Estava ficando com sono, mas tinha medo de dormir. Manoel já se consultara com vários médicos, colegas, e todos diziam que ele estava neurastênico. Um dos médicos, Técio, achava que algo mais estava acontecendo. “Manoel, esses médicos estão vendo a coisa toda de uma maneira muito simplista. O que v. tem não é completamente claro ainda. “ “Eu sei, Técio, mas tenho que ouvir meus colegas. E além do mais, além do mais, os remédios me dão um pouco de bem estar.” “Manoel, tome os remédios, mas não podemos nos contentar só com esse diagnóstico. V. está sendo testemunha de alguma coisa maior, cósmica. Manoel se assustou. “Você é um médico, Técio, não um bruxo” “Sou, sou um médico, mas antes sou um homem. Não quero aceitar qualquer coisa só porque a ciência caminha vagarosamente. Estamos muito atrasados, meu amigo. Muitas coisas acontecem e não percebemos, fora as que não sabemos explicar” Manoel não tinha certeza. Era verdade que as coisas não estavam claras, mas as doenças dos nervos nunca eram claras. Eram doenças da alma! .......... “Meu marido não está bem, Técio” “Eu sei, Vanessa. Eu sei. Nem ele mesmo tem noção do que pode estar acontecendo. Tem medo de fugir, de faltar à ciência, teme a metafísica.” “E o que podemos fazer?” “Ele está atravessando um momento delicado e sua maneira de ser acaba atrapalhando.” “Mas o que poderia ser feito, Técio?” O médico levantou-se. Virou para a parede e tomou mais um pouco de conhaque. “Metafísica. Quero ajudar procurando a solução por outros caminhos. Pelo que se chama de ‘ocultismo’”. Ela levantou os olhos “Ocultismo? Bruxaria?” “Você sabe muito bem” Vanessa virou-se. Não sabia se devia continuar com aquele assunto. “Eu não sei de nada, Dr. Técio” - disse, irritada. Ficaram em silêncio por um tempo. “Vanessa” - ele começou - “Há muito tempo observo você. Eu e um grupo de estudiosos sabemos que você é uma iniciada, entende?” Ela fitou-o apenas. “Vanessa, não é somente você. Existe muita, muita gente trabalhando com o sobrenatural. Os homens de seu lado, as mulheres de outro. Mas nós sabemos o que vocês fazem como vocês sabem o que nós fazemos. Não estou criticando. Entendo mesmo que este seja o caminho” Ela estava ali, parada, olhando-o ..................................................... No ano de 16.. aconteceu uma grande caça às bruxas. Elas evocavam o demônio, eram suas servas. V. Era uma bruxa conhecida, caçada. Poderosa, a mais poderosa, escapava sempre da Igreja. De fato tinha muito tempo pela frente. Embora fosse assustador, aquele encontro tinha mesmo que acontecer, não poderia deixar de ir. Era importante tentar extrair alguma coisa daquele homem. Afinal, aparentemente, só ele podia dar as respostas, ajudar. Tinha de estar informado. Abriu novamente a caixa e leu mais um bilhete. “O que vem acontecendo ano após ano, século após século terminará no dia em que o homem líder chegar. Esse homem pode parar tudo, pode acabar com o reinado do anjo caído. Não teremos mais que nos submeter às suas vontades, nem a de nenhum deus vassalos. A Humanidade não está condenada eternamente. Bastará que o Grande Homem chegue e acabe com tudo. A luta será grande, terrível, o mundo tremerá, mas existe ainda uma possibilidade de existir justiça e uma esperança de que o bem triunfe sobre o mal. Nostradamus não sabia, não tinha conhecimento de que esse homem existiria, de que os céus se rebelariam e não aceitariam, passivamente, os desígnios desse que nos aprisiona desde o início dos tempos”. O que era aquilo? Quem aprisionava quem? Manoel começou a pensar que a coisa toda talvez não fosse um delírio nem uma questão simples, fácil de resolver. Possivelmente estaria envolvido em tramas ancestrais e talvez ele.... Não, não poderia ser.... Ele não poderia Ter qualquer poder. Sabia que não o possuía. Ele era um homem simples. Não estava refletindo nos espelhos, é verdade, mas isso não podia ser tomado como o sinal de que era uma espécie de “Salvador”. De qualquer forma alguma coisa estava para acontecer. E Vanessa estaria envolvida. Talvez o texto não estivesse claro. Talvez ela fosse a peça chave... Não adiantava especular por muito tempo. T., com certeza, era a chave para tudo aquilo. ...... Os cavalos estavam soltos num espaço grande porem cercado. Os homens conversavam em volta da fogueira. Quando o grito de criança varou a noite os animais silenciaram, os pássaros voaram e os homens calaram. “O que foi isso?” perguntou o primeiro “Um animal” “Não. Foi um grito humano. Parecia...” o homem estava lívido “Parecia uma criança!” Ficaram parados. “É melhor darmos uma olhada por aí” “Não sei” interpôs outro “Pode ser muito perigoso. Aqui, pelo menos, estamos protegidos” “Protegidos de quê, homem? Não temos nenhuma proteção aqui. Dois ficam e dois vão, juntos, fazer uma busca” O homem era o líder, evidentemente. Dois deles pegaram as armas. “Vamos por aí” ................................ Ao contrário do que Manoel esperava, não se tratava de um restaurante normal. Era muito mais uma espelunca, num subúrbio paupérrimo, quase na beira da estrada. O ambiente era aquele, clássico, tão mostrados em filmes americanos (ou mexicanos?) Era um bar grande, com mesas e cadeiras de madeira vagabunda e velha. Num canto, uma vitrola automática, quebrada pelo visto, e das coisas mais cafonas que Manoel já vira. Algumas mesas estavam ocupadas, a maioria por homens. As poucas mulheres eram velhas, feias e dacadentes. Confirmando o endereço, Manoel entrou, escolheu uma mesa de canto, escondida e sentou. Pediu vinho e pão. Faltavam cinco minutos para a hora marcada. O homem atrás do balcão era enorme. Deveria pesar 150 kg., no mínimo, seu rosto e braços (cabeludos) estavam molhados de um suor gorduroso, a barba estava por fazer e o pano com que limpava o balcão e matava moscas esmagando-as era o mesmo com que enxugava a testa. Os homens que estavam ali pareciam seres perdidos no mundo, já sem nenhuma esperança em nada. Bebiam. Olhavam para pontos indistintos. Nada esperavam. Manoel pensava nisso, em nada esperar, na falta de perspectiva daqueles homens (que eram todos os homens), quando sentiu a presença a seu lado. Ia levantar-se rápido, mas a mão (forte) em seu ombro impediu-o. O homem, de enorme barba, que cobria-lhe o peito, óculos com lentes fundo de garrafa esverdeadas e poucos fios de cabelos (sujos) sentou-se a sua frente. “Como vai, Manoel?” “T...” “Preciso dar alguns recados a você...” “T., eu não quer recados, eu quero que v. me explique essa história toda”. O outro olhou-o impassível. Manoel perdia a paciência. “Não posso perder mais tempo, preciso de uma explicação. As coisas não podem continuar assim, mistérios absurdos.” O homem continuava olhando-o “Não sou T., Manoel” “Que palhaçada é essa?! – espantou-se M. – É claro que você é T. Nós marcamos um encontro aqui, a essa hora. “Eu sei, eu sei, tenha paciência meu amigo. Embora tenhamos a mesma letra inicial no nome, me chamo Técio, sou médico e estou aqui a pedido de T., que não pôde vir”. Manoel, que pulara da cadeira, sentou-se vagarosamente, incrédulo. Técio tinha o ar cansado “Está tudo quase resolvido, meu caro. Trago-lhe uma carta de Vanessa” “Você conhece Vanessa?” O homem passou a mão nos olhos por baixo dos pesados óculos. Estava claramente exausto. “Vanessa é minha mulher” “Manoel, Volto a escrever na tentativa de esclarecer um pouco todas essas coisas. Venho de muito longe, de tempos imemoriais e nem tudo poderia ser explicado à contento agora. Meu marido serve de portador desta carta. Converse um pouco com ele, mas tenha cuidado. Voltei a fazer contato com T. pedindo para que ele promovesse um encontro entre eu e você, mas ele não concordou. Me disse que tinha marcado um encontro ele com você e que eu não poderia ir. Falou com Técio, meu marido, e orientou que ele fizesse esse primeiro contato. Posso afirmar-lhe que meu marido relutou, sabedor que você queria muito estar com o verdadeiro T. Não foi bem sucedido e acabou tendo que ir. Descobri mais alguns detalhes sobre a mulher assassinada e a seita de adoradores do demônio. T. pode realmente ser a chave de tudo. Não há nada que possamos fazer para obrigá-lo a ajudar, temos que pedir e contar com sua boa vontade (?). Fique você sabendo que, entre outras coisas, T. é um estudioso de mitos e de teatro. Ele é um homem que acumulou grande saber e esse saber permite que ele domine a história. Pelo menos a história que tratamos aqui. É importante v. ficar informado que o caso da mulher morta durante o apagão foi realmente assassinato e não suicídio como muitos querem fazer parecer. Não se deixe iludir. De qualquer maneira eu e v. teremos de nos encontrar. Somente juntos poremos um ponto final em tudo isso. Meu marido, que está à sua frente, detém uma parte (?pequena) das informações mas pensa que possui todas. Cuidado para discernir o que é verdade de sua imaginação (fértil) Vanessa” M. dobrou o papel e guardou-o no bolso do paletó. Técio continuava à sua frente, atento a leitura. “Muito bem. Aí está. Missão cumprida. Você leu a carta de minha mulher, mas é pena que ela não saiba de tudo. Manoel ficou pensando em quem estaria dizendo a verdade, se é que existia alguma verdade naquilo tudo. “Dr. Técio” começou M. “Você sabe de coisas que os outros não sabem? Que a sua mulher desconhece? E qual a sua ligação com T.?” “Sei de muitas coisas, meu amigo, muitas coisas importantes. Quanto a T. é uma grande pessoa, um intelectual, um erudito. Homem de gostos refinados e- cá entre nós – muitos poderes. Poderes sobrenaturais, eu diria.” “ E quais as suas ligações com T:?” repetiu. Ele pensou um pouco. Parecia estar longe, há muito tempo atrás. “...T. afastou a malignidade que rondou a família. Afastou a escravidão a que estávamos submetidos. Eu tenho uma grande dívida com ele...” “Por que, Dr. Técio?” “As vozes, meu caro. As vozes que me perseguiam por trás das bibliotecas e quase me levaram a uma situação difícil, de doença. Eu não entendia quase nada do que as vozes diziam, mas elas estavam sempre lá, conspirando todo o tempo contra mim. Em raros momentos eu percebia o que eles tramavam para poder reagir. Em outras situações, a maioria, tramavam tudo na minha frente, sem vergonha, sem consideração... Riam amiúde das coisas que planejavam e, por não entender, eu terminava sempre envolvido em planos macabros (deles).” Manoel esforçava-se para compreender. Aquele homem falava de coisas importantes, ainda que sem nenhum nexo. Talvez fosse louco, mas de qualquer maneira conheceria muitos mistérios, muitas tramas secretas que perpassavam todos esses fatos. “E de quem eram essas vozes, Dr. Técio?” “Eu nunca consegui saber de todo. São muitas e estão sempre nas bibliotecas. Conspiram contra tudo e todos. Eu e minha família quase sucumbimos a esses seres malígnos.” “E como T. ajudou?” “Como disse, Manoel, T. é um homem muito poderoso. De grande saber. Ele entrou em contato com as vozes, conseguiu descobri-las e obrigá-las a dar paz a mim e a minha família, que só me falassem de coisas compreensíveis... Aliás, Manoel, Vanessa ajudou muito. Vanessa foi aliada de T. para me ajudar, ela também é uma mulher muito forte.” “Não estou compreendendo, Dr. Técio. O que Vanessa tem, de fato, com essa história toda? O que ela fez junto com T.?” O homem não respondeu. Ficou parado, olhando através de Manoel. Estava já muito longe daquele lugar... “Dr....” Manoel tentou mais um pouco, sem sucesso. O homem não disse mais nada. Seu olhar, perdido no tempo e no espaço. Não estava adormecido nem morto. Olhava um ponto fixo, deveria ver alguma coisa, alguma coisa que só ele via... “Não importa nominar quem nos aprisiona desde o início dos tempos. O que importa é que consigamos escapar. O mundo precisa ser salvo antes que a outra dimensão prevaleça. A outra dimensão já é forte, já tem vida própria. Basta que encontremos as pistas, descubramos os segredos e refaçamos todo o processo.” Manoel guardou na caixa de couro este terceiro bilhete. Curiosamente o papel estava no chão, colocado por baixo da porta na sua ausência, enquanto fora ao encontro de T. Fracassado encontro. ................................................ Não podendo mais suportar a pressão ela simplesmente resolveu tomar uma atitude que resolvesse, de vez, para sempre toda a sua angústia. Saiu. Entrou na casa de armas que procurara antes nas Páginas Amarelas. Comprou o revólver. Bonito. Cromado. Sim, sim, uma embalagem com dez balas. Não, basta uma embalagem. Vanessa colocou os embrulhos na bolsa grande. Saiu, apressada. Não teria graça nenhuma agora a polícia querer saber que história ela aquela de revólver e munição. »»»»»»»»»»»»»»»»»»»»»»»»»»»» Fico me perguntando o que Vanessa pretende fazer. Matar Técio? Mas como se nem o encontra? Matar Manoel? Para quê? Talvez se suicidar seja a opção mais lógica. A pressão que nossa Vanessa vem sofrendo deve estar sendo forte demais. Ela, sensível, não poderia mais agüentar por muito tempo. E, por outro lado, os tempos da história estão desconexos. Não existe nenhuma lógica. Para ela que não sabe que todos estão sendo escritos, manipulados, deve ser muito duro suportar. Possivelmente Vanessa dará um tiro em si mesma. Mas seria muito mais “literário” se ela aparecesse morta, no chão, como a mulher do início da história, o fato real, da mulher que apareceu estatelada na calçada, morta, morte ocorrida durante o apagão de setembro. Enfim... «««««««««««««««««««««««««««««««««««««««««««««««« “Vanessa, Tive um pesadelo horrível esta noite. Sonhei que me encontrava com Técio, mas não o Técio procurado e sim um outro, que falava coisas estranhas, que participava de nossa vida, de nossa história de forma completamente diferente do que esperávamos. Ele era Técio também, mas não a pessoa que, supomos, nos controla, ou controla alguma coisa que não sabemos bem o que é. Foi daqueles pesadelos horríveis porque parecem absolutamente reais, apesar de, claramente, não terem pé nem cabeça. Só a confusão de papéis e fatos me leva a crer tratar-se de um sonho mau e não de realidade delirante. O verdadeiro Técio insiste em não aparecer da mesma forma que eu continuo não me refletindo em nenhum espelho. Isso, confesso, é exasperante. Não acredito que seja nenhuma ação sobrenatural, sou um homem moderno. Alguma coisa está acontecendo, talvez estejam me ministrando alguma droga alucinógena sem que eu saiba. A explicação deve ser simples e não estou tendo clareza para “enxergar”. De qualquer forma, acho que não há mais o que protelar, temos que dar prosseguimento ao nosso (teu) plano. Nada mais teremos a perder, muito pelo contrário. Vamos pegar esse psicopata de qualquer maneira, mais cedo ou mais tarde. Cuidado! Não faça nenhuma besteira! Manoel” Vanessa terminou de ler a carta, segurando as folhas com a mão esquerda. O revólver já estava na outra mão. Era hora de continuar, de acabar com tudo. Não dava mais para segurar aquela situação. «««««««««««««««««««««««««««««««««««««««««««««« Em alguns momentos eu também me confundo com esse monte de gente com nomes iguais, atravessando situações parecidas, mas não iguais. Parecem mesmo fazerem todos parte de um mesmo que cabeças que nem eu mais consigo controlar. Existe muito de verdade em tudo o que está sendo narrado. Aliás, a grande maioria é verdade, aconteceu e está acontecendo, mas as pessoas em volta se recusam a participar, a ajudar a resolver. Talvez por ter intitulado “A História”, todo mundo pense que é um conto, sei lá, interminado. ««««««««««««««««««««««««««««««««««««« A vizinha olhou assustada para o marido. “Um tiro” disse “Nada, são bombas, o jogo começa já já” responde o homem sentado em frente à velha TV. «««««««««««««««««««««««««««««««««««««««« Os três carros da polícia, o alvoroço de curiosos e o movimento no prédio, mostraram vinte minutos depois que a vizinha tinha razão. Fora um tiro. «««««««««««««««««««««««««««««««««««««««« * O Dr. Franz não sabia duas coisas: sua verdadeira nacionalidade (resquícios de uma confusão nas viagens constantes, como também freqüentes os namorados de sua mãe e o que estava acontecendo na tela à sua frente. Em muitos momentos ele estava digitando o texto. Em outros o texto aparecia, digitado aparentemente por outra pessoa, como num chat. Detalhe curioso: ele não estava conectado à Internet nem a nada. Da mesma forma que o personagem não entendia porquê não se refletia nos espelhos, ele não compreendia porque trechos do texto eram digitados à sua frente, assim, “num passe de mágica virtual”, se “se” pode falar de algo assim. Definitivamente ele não compreendia e não hesitou em telefonar (com medo de se conectar a Internet) para Z., profundo conhecedor de informática e a única pessoa, a seu ver que poderia ter algum tipo de explicação para tudo aquilo. Afinal, é bom que se diga esse fato já vinha acontecendo há muitos meses. Ele, jornalista, começara apenas escrevendo matérias sobre a mulher que aparecera morta em frente a seu prédio durante o apagão que assolou o Brasil em setembro de 99. Escreveu duas matérias apenas. Matérias publicadas em jornais. À partir da terceira, esse estranho fato começou a acontecer, cada vez com maior freqüência e ele não mais publicou, curioso e amedrontado que estava. Mais curioso, para dizer a verdade. *Ele tinha agora outras preocupações. Corria atrás do que acontecia, se desenrolava na tela do computador. O Dr. Franz, chamado assim por ser médico psiquiatra além de jornalista, tinha agora um medo maior: Percebendo que os fatos eram desconexos e que estava mais do que claro que ocorriam em várias dimensões diferentes, em vários espaços temporais e físicos distintos, não seria ele apenas mais um desses reflexos, não seria ele, apenas mais uma dessas dimensões, não estaria ainda sendo manipulado por outra (ou outras) pessoas. Por que não? Por que, considerando-se o filme Matrix que assistira a pouco, não seria ele, peça de um game, de um programa qualquer para computadores? Não poderia ser. Ele era um médico, um psiquiatra, que já tardiamente encantou-se com o jornalismo e recomeçou sua carreira e acabou (sabe-se Deus como!) acumulando as duas. Era uma pessoa sensata, tranqüila, um intelectual, um leitor e escritor voraz, um homem com certa projeção social e na mídia justamente pela clareza de seus escritos, de suas entrevistas, de suas palestras. Definitivamente, era uma pessoa de verdade! Tinha três filhos (de casamentos diferentes) e nunca tivera nenhum distúrbio psíquico. Hoje vivia sozinho numa casa bastante confortável, ainda que sem luxo excessivo e conseguia dar conforto ainda a seus dependentes (seus filhos o adoravam e suas ex-mulheres, no mínimo, o respeitavam). Era, portanto, um ser humano, verdadeiro. O problema estava naquele bendito computador. Levantou-se e bebeu (muita) água. Eram quatro horas da manhã, a hora que mais gostava de escrever. Minto: mais gostava antes desses fatos estranhos estarem acontecendo. Na verdade agora ficava ali quase tomando conta do computador, alerta ao que se desenrolava no que seria sua terceira matéria sobre o caso. Claro que já haviam perguntado no jornal porque não escrevera mais sobre o fato, porque deixara a “coisa” morrer assim. Dera desculpas (não muito convincentes, achava), mas estava escrevendo sobre outras coisas para o matutino e ninguém sabia do que estava acontecendo com aquela matéria que estava virando, um livro, um conto (Diabos!), sabe-se lá o quê. Talvez fosse interessante ler alguma coisa sobre outras dimensões (ou seria melhor a mais cabível, sobre alucinações?) *Antes, olhou novamente a carta em sua de sua mesa: “Caro Dr. Franz Infelizmente (ou não?) só agora consigo saber seu nome, saber para quem trabalho. Confesso que foi (e é) interessante, por que não dizer “eletrizante” ser contratada por um homem misteriosos, que sequer sei quem é para pesquisar a morte em condições muito estranhas? Não poderia perder essa oportunidade. Devo, entretanto, fazer-lhe uma confissão: aceitei o trabalho muito mais como possível inspiração para projeto literário do que pela pesquisa em si. Sou afinal, uma escritora e não uma detetive particular. De qualquer forma, em nenhum momento pude imaginar que as coisas fossem enveredar por esse caminho e o que era uma simples investigação rotineira, jornalística e intelectual, terminasse num caso sem precedentes, numa história sem pé nem cabeça, sem início nem fim, com tantas épocas, tantos personagens de nomes iguais. Confesso ainda que estou agora completamente perdida. Recebi uma carta em papel rosa e envelope vermelho dizendo quem era o senhor, seu interesse na morte da moça. Por isso escrevo. E agora? Em que ponto estamos, afinal? Parece que minha vida não é só essa, mistura-se com muitas outras, como se estivesse refletida em mil espelhos e o tempo estivesse sendo controlado por alguém, como se eu fosse uma marionete, um personagem? Como pode tudo isso estar acontecendo. Por acaso, o misterioso T. é o senhor? Caso seja, por favor acabe logo com esse mistério e conte-me toda a verdade. Às vezes tenho vontade de parar a pesquisa e continuar por conta própria, agora apenas o trabalho literário. Entretanto, estou com muita pena de Manoel. O que fazer a respeito dele. Como pode um homem não se ver refletido? O que o senhor tem a ver com isso? É uma criação sua que, de alguma maneira, tornou-se realidade em nossas vidas? Espero que esteja compreendendo e sensibilizando-se com a toda a situação criada e, sendo por ela responsável, livre a todos deste pesadelo. No rodapé está meu e.mail e meu endereço, o hotel em que estou hospedada. Aguardo seu pronunciamento brevemente, como condiz a um ser digno. Grata, Vanessa” *************** Franz leu e releu a correspondência. Tudo verdade. Mandara contratar Vanessa. Mas como explicar agora que não era mais o responsável pelos rumos que os fatos estavam tomando. Como convence-la? Pior: será que esses fatos estavam realmente acontecendo na vida real ou apenas em sua cabeça? Não, impossível. Ele realmente contratara Vanesa. Tudo o que ela dizia acontecera e a correspondência estava, ali, em suas mãos. Não havia nada de errado em sua vida, nada de sobrenatural. A menos... ******************************************** A menos que ele fosse o F. (Franz!!! Óbvio!!) que Vanessa citara numa carta para Manoel. Muito bem. Ele poderia estar surtando, delirando completamente e, no surto, poderia muito bem Ter escrito toda a trama. Mas... A trama, de alguma forma, ganhara vida, não estava circunscrita às páginas de um livro ou ao computador. As coisas estavam acontecendo. O fato de existir uma mulher que aparecera morta era uma verdade, ninguém tinha dúvidas. Determinadas coisas eram claras. Parou. E se nada, absolutamente nada , tivesse nexo, estivesse de fato acontecendo. Que mundo, então seria esse? Poderia não estar acontecendo nada, absolutamente? Tudo ser fruto de seu pensamento delirante? E QUEM ESTÁ LENDO ESSE TEXTO? É UM DELIRANTE TAMBÉM, OU QUEM ESTÁ lendo não existe, como, de fato, nada existe. Tudo se passa no porão do cérebro de Franz? Pelo menos em tese, não poderia ser. Imaginemos que dez pessoas leiam esse texto? As dez serão delirantes? Ou delirante é o número dez, a possibilidade de? Não era essa a linha de raciocínio correta. Tinha que partir de um ponto, de uma premissa, caso contrário todas as portas, todas as possibilidades estariam abertas e ficaria rodando eternamente atrás de si mesmo e não chegaria a ponto algum (nem ninguém que estivesse seguindo a narrativa – se é que é possível que esta pessoa exista ou mesmo a narrativa.) Não. Menos loucura. Cair na real. **************************************************** Voltemos, portanto, ao homem que ajuda a jovem a recolher seus papéis no ônibus. Quem é esse homem, Franz? - Sou eu, ele responde. - Mas sendo v., porque mais tarde é tratado na terceira pessoa? - Para confundir a seita verdadeira de adoradores do demônio que estava atrás de quem perseguia a verdade no caso da mulher encontrada morta. - Franz, você está em que época. - Na atual - E qual é a época atual? Que ano? - Por que? - Porque você fala em mil e seiscentos, mil e oitocentos... qual é a época verdadeira? - Não existe época verdadeira – ele me olha com atenção – todas as épocas são verdadeiras, todas as épocas existem, estão ali. Cada uma – sorri – na sua época. O problema do homem é que ele não tem clareza de calendário, ou seja, o calendário veio para confundir porque quer situar v. num determinado tempo n o espaço. Só que esse tempo não é claro quando visto de fora, de fora da terra por exemplo. O que é passado ou futuro? Nada, mera convenção. Aí v. começa a correr atrás do tempo , a tentar provar que não é possível estar antes nem depois porque v. está aqui. Esquece, entretanto, que o estar aqui já é passado e que o que conta é apenas a quantidade de aqui-passados por que atuamos. A cada segundo (outra loucura) temos um aqui-passado. - Não estou entendendo muito. - Veja o caso da alma. Fala de reencarnação. Mas a reencarnação é para frente ou para trás? Heim? Eu morro hoje no ano 2000 e reencarno em mil seiscentos e quarenta? Não? Por que não? - E o que isso... - Espera eu terminar. Por isso coloquei a mim mesmo na terceira pessoa, porque é necessário estarmos sempre jogando nuvens de fumaça para confundir quem nos persegue no tempo esta é a questão. As pessoas se perseguem no tempo e não tem idéia disso, pensam que estão se perseguindo apenas no espaço. Ora, pura bobagem. Por isso, várias vezes nossa Vanessa estava em mil e seiscentos e mil e oitocentos. Seria ela uma reencarnação de si mesma? Nem eu sei. Talvez sim, talvez não. Se não conseguimos admitir que o homem se persegue no tempo então, sim, ela era uma reencarnação de si mesma. Se entendermos que podemos andar no tempo, porque o tempo está apenas dentro do nosso cérebro, ele é “relativo” ao nosso pensamento, então não, ela não era reencarnação e sim ela mesma correndo por tempos diferentes. * - E o que v. acha? - Acho que somos nós mesmos, dentro das engrenagens do nosso cérebro e aquilo que ele produz, etéreo, que chamo alma. Não acho que sejamos reencarnações de nós mesmos e sim reencarnações cerebrais. - Como assim? - Da maneira mais simples: o tempo está em nosso cérebro. O universo e o tempo é o nosso cérebro. Portanto toda a vida, todo o cosmos acontece ali dentro. Isso embora pareça extremamente materialista tem um simbolismo mágico muito forte, muito sobrenatural. Porque admitir que todo o mistério está no cérebro é tão sobrenatural quanto o tráfego de almas indo e vindo em tempos indistintos no tempo e nos espaço sem se saber para onde. A diferença é que sabemos onde tudo isso ocorre: em nosso cérebro. Ele, esse órgão aparentemente físico, talvez seja cósmico, talvez englobe todos os mundos, todos os tempos todos os demônios e deuses. - Isso é o fim dA HISTÓRIA? - Pode ser. Por que não? O que mais eu poderia tentar explicar? - V. fala como se fosse um universo de espelhos, como já disse, onde uma coisa reflete a outra, indefinidamente. - E é isso. Só que esta possibilidade também é cerebral. ................................................ Quatro anos se passaram. Continuo internado nessa Unidade de Recuperação na aprazível Jacarepaguá. Os médicos até me dariam alta, mas eu não quero. Sinto-me melhor e mais seguro aqui. Também não teria mesmo para onde ir, minha família se esfacelou (ou eu acabei com ela?) Continuo buscando dentro de mim todas as explicações necessárias e não as encontro. Escrevi dezenas de cadernos com pensamentos sobre tudo isso para ver se me compreendo ou se alguém compreende ninguém. Nem o padre, nem os médicos. Nem mesmo os outros internos que me acham “estranho”. Sei que de tudo isso, uma coisa é inegável: a mulher morreu, saiu nos jornais, a repórter me confirmou. A família, entretanto, mesmo com o caso disponibilizado no cyberespaço, não se manifestou. Todo mundo que leu gostou mas não entendeu. Achei mais seguro ficar por aqui tentando encontrar as respostas em paz. O médico que cuida de mim se chama Manoel, o enfermeiro, Técio e a diretora da clínica, Vanessa. ..................................................... |