CURSO DE FILOSOFIA PARA NÃO FILÓSOFOS
Aula 10
Paulo Ghiraldelli Jr
(Fonte: http://www.ghiraldelli.pro.br/aula_10.htm)
Santo Tomás de Aquino: do anti-nominalismo ao problema da fé versus razão
Se mil anos antes, Santo Agostinho platonizou o cristianismo (ou cristianizou Platão), o papel de Santo Tomás (1225-1270) foi o de aristotelizar o cristianismo ou, talvez mais apropriadamente dizendo, o de cristianizar Aristóteles.
Tomas de Aquino partiu de alguns pontos básicos do aristotelismo e os modificou. Uma tarefa difícil, pois Aristóteles acreditava em preceitos gregos da seguinte ordem: o mundo era eterno e não produto de criação; o Primeiro Motor, que poderia ser Deus, conhecia sua própria perfeição e era indiferente aos humanos de modo a nem saber da existência destes; a alma não era imortal, o objetivo da vida era a felicidade; o orgulho é uma virtude e a humilhação um vício, uma deterioração (para quem aceita ser humilhado).
Assim, é um erro dizer que Aristóteles tinha tudo para ser adotado pela Igreja. Ao contrário, seu ensino havia sido banido das Universidades medievais como, por exemplo, a de Paris. Mas Tomás de Aquino não se intimidou diante da tarefa e escreveu tanto quanto o próprio Aristóteles. Uma obra imensa e arquitetônica.
Seu trabalho passou pela contestação do nominalismo e desembocou na tentativa de resolver o problema de se fiamos em nossa fé ou se fiamos em nossa razão, um problema que poderia ser visto, em larga escala, como um problema de embate, após mil anos, entre a civilização filosófica grega e a civilização religiosa-judaico-cristã medieval.
Diante do nominalismo, Tomas de Aquino encontrou em Aristóteles o apego deste ao prestígio intelectual dos universais. A maneira como Aristóteles os tratou, fazendo-os descer à Terra, contra a solução platônica, interessou sobremaneira a Tomas de Aquino. Aristóteles escreveu que os universais (os conceitos, as classes, os gêneros etc.) de nossa linguagem não eram formas mentais, estados mentais, nem eram formas autônomas, mas estavam, sim, incorporados nos objetos particulares como uma espécie de "coisidade" dos objetos.
Os humanos, por sua vez, podem mentalmente abstrair semelhanças e diferenças nas coisas e criar assim os grupos, ou, mais sofisticamente falando, os conceitos. Assim, contra o idealismo de Platão, que dizia que as formas puras geram os objetos particulares, Aristóteles opôs seu realismo, dizendo que as formas estão nos objetos e são formuladas quando podemos falar em cadeira, mesa, gato, sem especificarmos qual cadeira, qual gato, qual mesa, sabendo que cada coisa que caiu sob a rubrica de dessas palavras guardava similaridades e diferenças entre si.
Tomás de Aquino apreciou isto, e sabia perfeitamente que Aristóteles insistiu nisso na medida em que ele não admitia que as essências poderiam existir separadas de substâncias individuais, que era o que Platão admitia, e que a separação é um ato humano, uma operação mental. Ou seja, qualquer um de nós, uma vez aristotélicos, pode colocar à parte a "felinidade" do felino, do gato, isto é, a "coisidade" da coisa, e saber que tal felinidade não existe e nem a coisidade existe enquanto elementos separados no mundo, mas apenas em nossa linguagem ou em nosso pensamento.
Tomas de Aquino aceitou a solução de Aristóteles, mas em momento algum veio enfatizar que tal "felinidade" seria um mero nome, algo da ordem da convenção, do dispensável diante do que era o particular, ou seja, este felino, este gato e não qualquer outro gato. Se desse este passo, estaria se aproximando do nominalismo. E ele usou Aristóteles exatamente em um sentido não nominalista, não convencionalista. Os conceitos, embora não encontráveis no mundo físico, empírico, e obtidos pele mente do homem, não seriam meros nomes, como queria o nominalismo.
Tendo este suporte metafísico de Aristóteles, Tomas de Aquino tentou então dar uma solução ao problema fé versus razão. Sua solução, hoje, nos parece extremamente artificial, mas se pudermos considerar o ambiente pré-iluminista, o qual não vivemos, podemos entender a divisão de Aquino. Ele considerou a existência de dois tipos de homens de letras, o filósofo e o teólogo. Enquanto o primeiro usaria apenas a razão, o segundo usaria a razão mas também aceitaria a autoridade da revelação. Mas ele não ficou nisso, ele criou um campo comum, ou seja, um campo no qual a revelação poderia ser posta sob a luz da razão, e este campo seria o da teologia natural.
Embora a teologia natural, para Tomas de Aquino, não pudesse dar conta de tudo, ele decidiu mais do que optar por ela, mas construí-la, tomando como ferramenta Aristóteles.