CURSO DE FILOSOFIA PARA NÃO FILÓSOFOS

 

Aula 12

Paulo Ghiraldelli Jr

(Fonte: http://www.ghiraldelli.pro.br/aula_12.htm)

 

 

A modernidade: Descartes e Locke

Entre Tomas de Aquino e o sistema do século XVII de Descartes-Locke, que se desenvolveu em forma de doutrina na Enciclopédia, houve todo o movimento do Renascimento. Um exame aprofundado e não meramente introdutório poderia dedicar capítulos e capítulos ao Renascimento, onde as idéias de "sujeito" e de "critério científico-empírico-racionais" se sobrepuseram, aos poucos, a outros modos de filosofar. Todavia, é com Descartes que se inaugura a modernidade pelo lado do que ficou conhecido como racionalismo, a filosofia típica do "continente", complementado por Locke, um dos primeiros representantes do empirismo, a filosofia típica do mundo anglo-saxão.

René Descartes, sujeito e humanismo

Como um típico filósofo moderno, Descartes partiu em busca de "como conhecemos a realidade?" indo investigar a certeza, o evidente, aquilo que, em suas palavras, era o "claro e distinto".

Descartes foi matemático e cientista. Como ele mesmo relatou em suas Meditações, a "uma altura da sua vida", acreditou que tudo que lhe foi ensinado nos seus anos de formação careciam de solidez. Convenceu-se então que era preciso abandonar tudo e começar um processo de busca do conhecimento verdadeiro. O filósofo francês partiu do que lhe parecia uma necessidade imperiosa de encontrar o que seriam as "bases sólidas do conhecimento".

Ele não queria ficar com o conhecimento das ciências que, afinal, poderiam ser falsos, mas queria chegar ao conhecimento básico sobre o qual poder-se-ia erigir todo o conhecimento verdadeiro. O que ele queria, segundo sua própria expressão, era um "ponto arquimediano" ¾ uma verdade indubitável ¾ para daí construir, dedutivamente, as ciências. Com isso em vista, Descartes iniciou suas "Meditações" pelo processo da dúvida metódica.

O que era a dúvida metódica? Era justamente o processo das meditações, onde Descartes foi estendendo a dúvida até os pontos em que ele não conseguia, à primeira vista, deixar de acreditar. Seu procedimento foi o seguinte.

Ele iniciou por um ponto razoável: tudo que ele sabia estava no seu pensamento, e que tudo que residia no seu pensamento havia vindo de duas fontes: ou veio de seus sentidos (observação empírica) ou lhe era inato (próprio à razão). Ele se propôs, então, em primeiro lugar, colocar em dúvidas os sentidos.

Todavia, em seguida, ele ponderou: os sentidos nem sempre são confiáveis, pois eles não raro nos enganam. Quantas vezes nós colocamos a mão na água achando que ela está fria e ela está menos fria do que vimos ou mesmo sentimos? Quantas vezes as imagens nos dão golpes? Quantas vezes, nos sonhos, achamos mesmo estar na vigília? Quantas vezes ... Fazendo essas perguntas ele iniciou seu projeto de colocar em dúvida tudo que havia em seu pensamento, exatamente partindo da desconfiança sobre os sentidos. Este foi seu caminho.

Nesse percurso, em segundo lugar, ele radicalizou a dúvida, fazendo-a direcionar-se ao que poderia não ter vindo dos sentido, ou seja, poderia ser o conhecimento inato, o que já está desde sempre na razão. Neste momento, ele foi barrado, a dúvida parecia não mais poder prosseguir: as verdades matemáticas lhe pareceram indubitáveis. Estas, disse ele, são independentes: que dois e dois são quatro é uma verdade mesmo quando estou dormindo, isto é, mesmo quando não estou pensando sobre isso.

Porém, isso deteve sua dúvida só por um breve momento. Ele procurou ser mais radical. Então, em seguida, ele reiniciou o processo de duvidar de tudo. Querendo ampliar a dúvida também para as verdades matemáticas, ele recorreu à seguinte estratégia. Passou a supor a presença do que chamou de Gênio Maligno ¾ uma entidade cujo trabalho incansável seria o de enganá-lo sobre todas as coisas. Tal entidade, (na estratégia cartesiana de radicalização da dúvida) teria a função de alimentar a hipótese que diz que o pensamento é um conjunto total de falsidades; inseridas nesse conjunto estariam até mesmo as verdades matemáticas, aquelas verdades que seriam independentes dos sentidos.

No entanto, a hipotética existência do Gênio Maligno lhe deu a saída do impasse e, por conseguinte, a primeira verdade indubitável: se o Gênio de fato existir, para que ele me engane, disse Descartes, é necessário que eu, enquanto estou sendo enganado, me mantenha pensando, e disso tenho certeza. Penso, logo sou ¾ eis a primeira verdade (a segunda verdade é: sou uma coisa pensante). Nada mais nada menos que uma evidência de ordem intelectual, uma espécie de ... intuição racional.

O interessante dessa primeira verdade é que ela trouxe, para Descartes, algo inesperado: ela era, também, o critério básico de verdade: a certeza que ela fornece pode servir de critério para outras verdades. Todas as vezes que pensássemos ou falássemos e tivéssemos a "sensação interna" de estar diante de uma certeza da ordem do "penso logo sou", estaríamos diante de uma certeza, de uma verdade clara e distinta no estilo da "primeira verdade".

Assim, o itinerário das Meditações encontrou a verdade e seu critério básico, o sentimento de certeza, e, com isso, ligando a verdade à certeza colocou a primeira na dependência desta instância chamada pensamento subjetivo, o cogito cartesiano. Neste caso, o saber, e as ciências como saber verdadeiro, passaram, para Descartes, a estar assentadas no eu, isto é, assentadas em um sujeito que se caracteriza por possuir um núcleo não contingente e que, portanto, está para além das vicissitudes da história: o cogito.

Deve-se perceber aqui que esse itinerário filosófico de busca da verdade forneceu, como um subproduto, uma noção de subjetividade enquanto instância filosófica. Descartes, na leitura feita por Heidegger no século XX, articulou tal instância ao homem, circunscrevendo laços entre o que ficou conhecido como a doutrina do humanismo e a doutrina da filosofia moderna ou filosofia do sujeito. Tais laços deram muitos frutos. Tornaram-se o "modo de pensar" das classes letradas modernas.

Como Descartes alimentou a doutrina do humanismo?

Entendendo que "a alma não está alojada no corpo como um piloto em seu navio", Descartes viu o homem vivente, empírico, como uma mistura entre corpo e alma. É por ser esta mistura, disse Descartes, que o homem está imerso no erro: o fato da alma estar fundida ao corpo, coloca o homem na dependência dos sentidos, da imaginação, turvando a sua razão e impedindo-o de colocar-se como puro sujeito, como pura res cogitans. As Meditações seriam, então, como caminho filosófico e pedagógico, uma espécie de ascese, para a chegada no podium onde o prêmio é a conquista da verdade na medida em que o homem, se completar esse caminho, eleva-se à condição de puro sujeito do conhecimento, o puro sujeito epistemológico.

A epistemologia de Locke

John Locke (1632-1704) foi, de certa forma, o primeiro inimigo do racionalismo continental. Os Enciclopedistas, como Voltaire, Diderot e outros que escreveram a famosa Enciclopédia no século XVIII não viram as coisas deste modo, e incorporaram nos quadros do saber científico uma versão que permitia fundir ambos. Todavia, nos séculos XIX e principalmente nos século XX, a filosofia do continente assumiu de vez uma característica de defesa do racionalismo, e, depois, da metafísica, enquanto que a filosofia anglo-americana se tornou o baluarte do empiricismo, no campo ético a proposta do utilitarismo e, depois, na seqüência, tal filosofia alimentou a filosofia analítica, ou seja, uma filosofia que viu no objeto empírico a linguagem – desta versão nasceram os "empiristas lógicos" e, depois, no decorrer do século XX, com Quine, os empiristas que se mantiveram no campo da filosofia analítica mas que passaram a rebater as teses dos empiristas lógicos, adotando teses pragmatistas ¾ as de Peirce, James e Dewey no começo do século. Mas sem dúvida, nada disso teria sido possível sem Locke.