CURSO DE FILOSOFIA PARA NÃO FILÓSOFOS

 

Aula 9

Paulo Ghiraldelli Jr

(Fonte: http://www.ghiraldelli.pro.br/aula_9.htm)

 

 

Universalismo e Nominalismo

O período medieval produziu uma série de filósofos e as discussões são mais teológicas (onde o tema central é Deus) que propriamente filosóficas (onde a preocupação é, de um modo geral, a razão).

O cristianismo era uma doutrina popular e simples, mas uma vez associada a uma instituição que se tornou "a pátria de todos na falta de pátrias" (no período onde o Império Romano cede, dando espaço ao feudalismo) ela teve de responder às indagações das camadas mais intelectualizadas que ficaram recolhidas em mosteiros ou em cidades litorâneas, quando o auge do feudalismo.

Todavia, após mil anos de cristianismo, alguns temas que estiveram presentes desde o início, chegaram a ganhar um aperfeiçoamento sofisticado, como o tema "fé versus razão" e "universais versus nomes". O primeiro tema foi desenvolvido, entre outros, por Santo Tomás de Aquino, o segundo teve uma história mais tortuosa e, de certo modo, está presente na filosofia contemporânea e em muitos escritos atuais, de filósofos vivos (Richard Rorty, filósofo norte-americano atual se diz nominalista, mas é claro que de uma maneira própria).

O tema que lida com a questão "universais versus nomes" teve seu desenvolvimento característico com o nominalismo de William de Okhan (1280-1349). Todavia, o fio do novelo nos conduz para muito tempo antes.

O problema "universais versus nomes" surgiu quando os filósofos, quase dois mil anos antes do incrível desenvolvimento da filosofia da linguagem nos dias atuais, começaram a se voltar para o problema da referência. Isto é, em uma linguagem, as palavras possuem uma referência, ou seja, uma situação ou coisa ou comportamento é algo para a qual elas, as palavras, apontam, de modo que as palavras e sentenças ganham significado. A razão disso começou a intrigar os filósofos.

Santo Agostinho lidou com o problema. Ele partiu da idéia de que Deus vê sua própria criação como desligada de qualquer passado ou futuro, ela seria um momento eterno. Sendo assim, a experiência dos humanos é diferente do que seria a experiência de Deus. Por sua vez, admitindo que a linguagem representa a realidade, então teríamos de aceitar que a "palavra de Deus" não poderia ser da mesma ordem ou espécie que a palavra dos mortais, pois a linguagem dos mortais está associada ao passado-presente-futuro.

Agostinho tomou a linguagem humana como sendo uma forma menos perfeita da linguagem de Deus. E, aqui, se levarmos a sério a influência das leituras dos textos de Platão sobre Agostinho, podemos dizer que ele deveria ter pensado, nesta formulação, que a linguagem tem a ver com a representação do mundo sensível, portanto, o que é não-real, embora existente (lembre-se que o que é real tem realidade e o que é existente tem existência, o que, como deve-se atentar, não é a mesma coisa). O que é não-real, está mais abaixo na escala ontológica. Essa definição de linguagem de Agostinho foi um primeiro passo para o entendimento do problema "universais versus nomes". O problema, mesmo, de maneira estrita, ganhou sua formulação através de Porfírio (232-304). A idéia foi a de procurar a referência, e ver o que ela tinha a ver com a ontologia.

Por exemplo, o debate se deu em torno de situações do seguinte tipo, se dizemos que "este coelho é branco", qual o papel de "coelho" e de "branco"? "Branco" nomeia tudo que cai sob a rubrica de objeto branco e "coelho" nomeia tudo que cai sob a rubrica de um tipo específico de roedor? "Coelho" e "branco" possuem existência real ou artificial?

O nominalismo de William de Okham (1280-1349) defendeu que somente o particular é real e, assim, as palavras que denotam algo para além do particular são meros nomes. Os nominalistas, então, advertiram que a linguagem, na qual há uma variadade incontável de nomes, cria diferenças e similaridades que são afeitas somente a ela própria, linguagem, ou ao pensamento do falante.

Um pensador chamado William de Okham

William de Okham veio do sul da Inglaterra. Foi franciscano e estudou teologia em Oxford. Ele criou uma epistemologia especial, empirista, quase que sensitivista. Para ele, o conhecimento que não fosse o saber revelado viria de uma única fonte: a observação particular e sensória de eventos e objetos particulares, de um modo direto. William aboliu portanto a metafísica como fonte de conhecimento.

Ele ficou famoso nos nossos dias pela expressão "navalha de Okham", que nada mais é que a expressão da seguinte idéia: não há de se aceitar múltiplas entidades sem que seja necessário. Isto foi incorporado à ciência, de modo que muitos homens de ciência trabalham com ele ainda hoje, ou, mais hoje do que nunca. Os homens de ciência, em geral, olham para os fenômenos e dizem que ele pode ser melhor explicado com poucos elementos do que com muitos; ou ainda: se temos uma teoria complexa, com muitos elementos, e uma teoria simples, com poucos elementos, é mais razoável dar mais chances para a teoria simples.

Ora, isso levou os nominalistas a colocarem fichas, depois de tantos séculos, na bem assentada idéia de causalidade de Aristóteles. Este, como se sabe, previu tipos de causalidade. Confiando no simples, Ockam reduziu a "causa eficiente" de Aristóteles como a única causa necessária, e assim é que a ciência passou a atuar, já bem mais tarde.

Essa simplicidade também se espraiou de modo radical para sua teoria do real, sua articulação entre mundo e linguagem, ou seja, sua ontologia e epistemologia. Os individuais, e somente os individuais eram reais, e os universais eram características próprias da linguagem. O conceito não teria status que não o de ser apenas linguagem. Poderíamos falar dos universais e, pragmaticamente usá-los, assim, não nos impediria de falar sobre "roedores que apreciam cenouras", "plantas", "vegetais" etc., mas no mundo empírico não existem vegetais, ou plantas ou roedores comedores de cenoura, porque o mundo empírico não possue noções e conceitos, que são universais.

Outro elemento quase-contemporâneo em Ockham é sua noção de que os eventos no mundo são todos contingentes. Mas tal pressuposto, nele, é de ordem teológica. Ou seja, Deus seria onisciente mas também inescrutável, então, tudo que ocorre no mundo natural tem de ser contingente porque, sendo Deus o que é, quem nos garantirá que com sua capacidade Ele não venha a intervir no mundo quebrando qualquer cadeia causal, mesmo as mais sólidas.