A Maré Neoliberal e A Crise do Estado de Bem-estar Social
O presente trabalho foi elaborado pelo
Professor de História Renato Guilherme Guadagnin Filho
(Fonte: http://leonciocorreia.com.br/professores/renato.htm)
Os governos de Margaret Thatcher, na Inglaterra, e Ronald Reagan, nos Estados Unidos, fenômenos que caracterizaram o panorama político dos anos 80, são expressivas manifestações políticas do chamado neoliberalismo. Mesmo políticos socialistas da Europa Ocidental apressaram-se, na década de 80, em usar expressões, tais como: "socialismo de livre mercado"(Michel Rocard), "socialismo supply side"(Felipe Gonzales), para caracterizar suas posições políticas. É inegável, portanto, que os anos 80 podem ser pertinentemente caracterizados como a "década da maré neoliberal".
A maré neoliberal, que na década de 80 espraiou-se por quase todo o mundo, é um fenômeno histórico complexo, mas não há dúvidas que um dos mais importantes fatores que a fizeram ganhar impulso, ainda nos anos 70, foi aquilo que alguns autores denominaram "Crise do Estado de Bem-estar Social". E é esta crise que nos proporemos, ainda que sucintamente, a mapear, pois, por meio desse mapeamento, poderemos entender melhor o SER do neoliberalismo,.
Mesmo antes, mas com mais intensidade após a "crise de 29" e, principalmente, após a segunda Guerra Mundial, ocorre, em diversos países, uma tentativa de se resgatar as utopias inauguradas pela Revolução Francesa. Nos países do bloco ocidental enfatizou-se, sobretudo, o ideal dos direitos humanos; nos países socialistas enfatizou-se o ideal da democracia econômica. Entretanto, uma reflexão conseqüente deve descobrir aquilo que subjaz a esses ideais acima mencionados.
E se assim o fizermos, perceberemos que subjacentemente presente a esses ideais jaz a "utopia da sociedade do trabalho" que, grosso modo, podemos traduzir corno sendo a crença de que o trabalho satisfatoriamente socializado e organizado traz a felicidade. Nesse contexto, o Estado aparece, aos poucos, tanto no Ocidente quanto nos países socialistas, como o elemento capaz de concretizar essa utopia. Assim, no que tange mais especificamente às democracias capitalistas desenvolvidas, o Estado Social surge como a solução política para as contradições sociais:
No período iniciado a partir da Segunda Guerra Mundial, o Estado Social serviu como a mais importante fórmula de paz para as democracias capitalistas desenvolvidas. Esta fórmula de paz consiste, de início, essencialmente na obrigação explícita do mecanismo estatal de proporcionar assistência e apoio aos cidadãos que caem em miséria ou sofrem riscos especiais característicos das sociedades de mercado. (OFFE, 1991, p. 113 ).
A partir da década de 70, entretanto, o Estado Social , antes visto com um estabilizador político- econômico que contribuía para regenerar as forças do crescimento econômico e preservar a economia da espiral descendente das recessões profundas (OFFE, 1991, p. 115), passa a objeto de dúvida , de crítica profunda e de conflito político , emergindo assim a hoje denominada "Crise da Sociedade de Bem-estar". Essa crise, contudo, embora, como dissemos acima, inicie-se na década de 70, ocorre em datas diferentes, dependendo do país a que nos estamos referindo . E isso ocorre, por sua vez, porque nem todos os países entram no contexto do Estado de Bem-estar ao mesmo tempo.
O choque do petróleo; a revolução micro- eletrônica ; a tendência à automação; as crises conjunturais de economias como as latino-americanas, italiana e outras; o rápido crescimento de países que, graças à desregulamentação e a saída do Estado da economia, passam a prosperar; a crise do socialismo; tudo isso forma como que o pano de fundo a partir do qual emerge iridescentemente a crise do Estado de Bem-estar. Além disso tudo, vale destacar como fator que contribui para uma maior desconfiança com relação ao desempenho do Estado Social as ambivalências, cada vez mais explícitas, dos instrumentos de controle da natureza e da sociedade:
As utopias clássicas traçaram as condições para uma vida digna do homem, para a felicidade socialmente organizada; as utopias sociais fundidas ao pensamento histórico despertam expectativas mais realistas. Elas apresentam a ciência, a técnica e o planejamento como instrumentos promissores e seguros para um verdadeiro controle de natureza e da sociedade. Contudo, precisamente essa expectativa foi abalada por evidências massivas.
A energia nuclear, a tecnologia de armamentos e o avanço no espaço , a pesquisa genética e a intervenção da biotecnologia no comportamento humano, a elaboração de informações, o processamento de dados e os novos meios de comunicação são técnicas de conseqüências intrinsecamente ambivalentes. E quanto mais complexos se tornam os sistemas necessitados de controle, tanto maiores as probabilidades de efeitos colaterais disfuncionais. Nós percebemos diariamente que as forças produtivas transformam-se em forças destrutivas e que a capacidade de planejamento transforma-se em potencial desagregador. (HABERMAS, 1987, p. 105 ).
Enfim, o que acabou ocorrendo foi uma cada vez maior descrença nas possibilidades de se construir uma realidade futura melhor pela via do Estado Social:
Após a II Guerra Mundial, todos os partidos dirigentes alcançaram maioria, de forma mais ou menos acentuada, sob a insígnia dos objetivo, sócio-estatais. Entretanto, desde a metade dos anos 70 os limites do projeto do Estado Social ficam evidentes, sem que até agora uma alternativa clara seja reconhecível. Em razão disso, gostaria de precisar minha tese: a nova ininteligibilidade é própria de uma situação na qual um programa de Estado Social, que se nutre reiteradamente da utopia de uma sociedade do trabalho, perdeu a capacidade de abrir possibilidade futuras de uma vida coletivamente melhor e menos ameaçada. (HABERMAS, 1987, p. 106).
Aos poucos, cada vez com maior intensidade, levantavam-se aqui e ali vozes criticando o Estado de Bem-estar Social ( Welfare State ). Essas críticas levantam-se de todos os lados e não somente de um grupo ou tendência teórica. Do lado conservador, as críticas que emergem dizem respeito, principalmente, aos seguintes pontos: a ) O Estado Social inibe os investimentos, pois drena, através dos impostos, um montante excessivo de recursos financeiros; b ) sob o Estado Social, os sindicatos, procurando garantir a estabilidade no emprego, tendem a levar a um acomodamento dos trabalhadores, prejudicando, assim, seu desempenho e diminuindo sua produtividade; c ) O Estado Social leva a um "crescimento decrescente" que, por sua vez, vem, desgraçadamente, acompanhado de um "crescimento de expectativas"; d ) O Estado Social, possuindo uma legislação social onerosa, afugenta algumas grandes empresas que, por seu turno, deixam de se instalar, deixam de investir ou fogem para "espaços" mais acolhedores, onde a legislação social não é tão onerosa. A literatura conservadora fundamenta-se na tese de que a causa da crise não se baseia na relação capitalista do trabalho assalariado, mas sim nos dispositivos institucionais da democracia da massa.
A estrutura da reflexão conservadora acerca da crise apresenta-se sob a forma de um procedimento reflexivo comum à atividade médica . Primeiramente , procede - se o "diagnóstico" da crise . No que tange a esse tópico , o eixo da reflexão conservadora expressa que o excesso de expectativas e exigências por parte da sociedade concomitantemente à insuficiente capacidade de resposta adequada do Estado a essas expectativas e exigências leva à frustração , a qual , por sua vez , tende a aumentar ainda mais pela ação e promessas , na maioria das vezes inexeqüíveis e não cumpridas , das organizações partidárias.
Os sintomas de crise decorrem ainda, segundo a análise conservadora, do fato de que a diferença entre o volume de exigências e a capacidade de direção se converte em frustração. Isto faz com que, na relação entre organizações partidárias, por um lado, e seus eleitores e membros, por outro lado, se manifeste uma perda de confiança, que resulta do fato de que os partidos precisam quase que necessariamente frustrar aquelas expectativas por eles mesmos geradas e às quais devem sua ascensão ao governo. As promessas eleitorais não são cumpridas, enquanto os meios impopulares ( por exemplo da política salarial e fiscal ), aos quais o partido havia antes expressamente renunciado, precisam ser utilizados, apesar de tudo. (OFFE, 1984, p.239).
O "prognóstico", que deriva do diagnóstico anteriormente empreendido, configura-se como que na segunda fase da reflexão conservadora acerca da crise. Segundo esse, as decepções, as frustrações tendem a desaguar em duas vias: a) a polarização no interior do sistema partidário, levando àquilo que Claus Offe designa como uma re- ideologização e uma revalorização de princípios por parte das oposições, as quais tentam, por seu turno, propor programas alternativos com o objetivo de evitar uma disjunção entre expectativas e possibilidades de respostas a elas; b) uma polarização crescente entre o sistema partidário e os movimentos sociais não parlamentares. Essas polarizações, por sua vez, segundo a flexão conservadora, elevariam ainda mais a discrepância entre o nível das exigências e expectativas e a capacidade de desempenho do Estado, levando assim ao problema da ingovernabilidade.
Por fim, ao diagnóstico e ao prognóstico sucede a "terapia". Essa, dentro do âmbito da reflexão conservadora, divide-se em duas vias de solução: de um lado, tenta-se aliviar a sobrecarga do sistema quanto às exigências e expectativas; de outro, aumentar a capacidade de desempenho e direção do estado. A primeira via de resposta abriga os defensores do neoliberalismo e a segunda os social- democratas, principalmente.
Para se aliviar as sobrecargas do sistema quanto às exigências e expectativas, três procedimentos que transcendem os limites do Estado Social para o mercado; controlar as exigências em seu lugar de origem por meio de instituições de controle social; instalação de mecanismos de filtragem para decidir acerca das exigências válidas. Já para se elevar a capacidade de desempenho e direção do Estado são indicadas, de um lado, uma estratégia administrativa, visando a ampliação do horizonte de percepção e ação do governo; de outro, uma busca de consenso social como via para se ampliar sua capacidade de direção. Acerca da reflexão conservadora, embora muitas críticas possam e devam ser feitas a ela, é inegável o grau bastante elevado de validade de que goza.
Diz Claus Offe: Os dois componentes da diagnose abrangem, a meu ver, de maneira justa e completa, os problemas de funcionamento com os quais o Estado intervencionista e de bem-estar capitalista se defronta hoje em dia. A prognose parece confirmar-se pela riqueza dos sintomas, que caracterizam o desenvolvimento do sistema partidário e o movimento social desse Estado, especialmente na República Federal da Alemanha. E as cinco alternativas terapêuticas parecem também abranger de forma mais ou menos completa as estratégias de saneamento que hoje em dia são pratica das nos sistemas políticos da Europa do Noroeste. (OFFE, 1984, p. 245).
Também do lado da esquerda as críticas ao Estado de Bem-estar Social têm sido freqüentes e bastante presentes. No que tange às críticas da esquerda, essas podem ser resumidas nos seguintes tópicos: a) o Estado de Bem-estar Social acaba não atendendo de forma conseqüente às reivindicações trabalhadoras, pois acaba não solucionando as causas dos problemas vividos pelos trabalhadores, como quando, por exemplo, ao invés de solucionar o desemprego, cria o salário desemprego; b ) uma outra característica do Estado de Bem-estar Social criticada pela esquerda diz respeito a seu caráter repressivo, pois, cada vez mais, torna-se claro que a burocracia do estado Social, geralmente ineficaz e ineficiente, ao executar políticas sociais, exerce, concomitantemente, uma função de controle social; c) outra das críticas concerne à distribuição de riqueza, a qual, por sua vez, jamais se dá verticalmente, mas só horizontalmente, o que quer dizer que as políticas sociais oscilam de acordo com o crescimento ou não da economia, não se toca, portanto, na questão da distribuição vertical, ou seja, só quando quem tem mais ganha mais quem tem menos ganha mais, entretanto, quando aqueles ganham menos, eles, contudo, não se tornam, por isso, mais pobres; d) por fim, também se critica o Estado de Bem-estar Social por ele gerar, na classe operária, uma concepção falsa quanto aos problemas sociais, fazendo-a dirigir-se, no caso de uma pendência, não aos patrões, mas ao Estado, burocratizando, dessa forma, as demandas sociais.
As críticas ao Estado Social vindas do lado da esquerda e do lado conservador parecem ter, no fundo, um ponto importante em comum, a crença de que, como diz Habermas, o mundo da vida só pode ser suficientemente desatrelado desses subsistemas e protegido contra invasões sistêmicas se Estado e economia se recompuserem em uma relação equânime e reciprocamente se estabilizarem. (HABERMAS, 1987, p 111). Procura-se, portanto, no fundo, um equilíbrio ótimo, busca-se um sistema que combine o melhor da ação orientada pelo mercado e da ação socialmente motivada. (BLACKBURN, 1992, p. 265).
Além dessa busca de equilíbrio, entretanto, vozes dissidentes também se fazem ouvir. E essas buscam, além do equilíbrio, o fortalecimento da autonomia do mundo da vida a partir da exigência de que a dinâmica interna de subsistemas governados pelo poder e pelo dinheiro seja quebrada ou pelo menos contida por formas de organização mais próximas da base e autogestionárias. (HABERMAS, 1987, p li1). Os dados que decidirão o futuro do Estado Social parecem ainda estar rolando, mas não parece haver dúvidas que sua crise, embora restrita apenas a alguns países ( países em que ele se fez presente ), foi importantíssima para o avanço, na década de 80, da maré neoliberal pelo mundo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- OFFE, Claus. Problemas estruturais do estado capitalista. 1 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
- OFFE, Claus. Trabalho e sociedade: Problemas estruturais e perspectivas da sociedade do trabalho. 1 ed. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1991.
- HABERMAS, Jürgen. A nova intransparência. Cadernos CEBRAP. São Paulo, setembro de 1987. Nº. 18, p - 103/ 114.
- BLACKBURN, Robin. Depois da queda: O fracasso do comunismo e o futuro do socialismo. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.