O neoliberalismo
Melhem Adas
(Do livro: "Panorama geográfico do Brasil - contradições, impasses e desafios socioespaciais, Ed. Moderna, pág. 175-177, 1998)
a) Antecedentes: o liberalismo
Em suas aulas de História, você deve ter estudado o liberalismo, ou seja, a dou econômica defendida pela burguesia, principalmente nos séculos XVII e XVIII, que serviu de base ou de ideologia para as revoluções antiabsolutistas ocorridas na Europa, principalmente na Inglaterra e na França, e nos Estados Unidos. Apoiava-se nas teorias de pensadores Quesnay, John Stuart Mill, Adam Ricardo e Thomas Malthus. Entre seus princípios, destacam-se:
privada dos meios de produção.
Mas a evolução do capitalismo acirrou as contradições do sistema. A livre concorrência, princípio básico do liberalismo, foi negada pela formação de monopólios, oligopólios e outras práticas de poder econômico.
No século XX, as crise do capitalismo, como a Primeira Guerra Mundial, a queda da bolsa de Nova York (1929) e a Segunda Guerra Mundial, imprimiram novos rumos ao sistema. Passou-se a defender a intervenção do Estado na economia e a encarar os monopólios e oligopólios como acontecimentos naturais ou normais da própria evolução do capitalismo. Assim até praticamente a década de 1970, o dirigismo econômico, ou seja, a intervenção do Estado na vida econômica predominou tanto nos países desenvolvidos como nos subdesenvolvidos.
b) O neoliberalismo na teoria e na prática
O neoliberalismo surgiu como doutrina econômica sistematizada no final da década de 1930. Alguns economistas, como Walter Lippmann (norte-americano), A . Rustow (alemão) e Jacques-Rueuff (francês), publicaram obras divulgando as idéias neoliberais.
Os princípios defendidos por esses teóricos são basicamente os mesmos do liberalismo, diferindo apenas naquilo que a nova realidade do capitalismo impõe. A supressão da livre-concorrência, determinada pela formação dos monopólios, oligopólios, trustes etc., trouxe à baila a necessidade de intervenção do Estado na economia. Par os neoliberais, portanto, os mecanismos de mercado são capazes de organizar a vida econômica, política e social, desde que sob a ação disciplinadora do Estado.
Entretanto, na prática, o desenvolvimento da economia internacional, em que se inclui o processo de globalização em marcha, tem mostrado um neoliberalismo diferente. Observa-se, por exemplo, nos países desenvolvidos, e com desdobramentos em todo o mundo, um conjunto de procedimentos e idéias que norteiam o atual neoliberalismo, entre os quais podemos destacar:
a crença de que os imperativos de mercado são suficientes para promover o desenvolvimento econômico e social.
Observa-se, ainda, na prática do Estado neoliberal, uma redução dos gastos públicos em educação, saúde e habitação, enfim em seguridade social* .
c. Os mecanismos de mercado são suficientes para organizar a vida econômica, político e social?
- Ética e mecanismos de mercado -
Num artigo sobre ética (Marilena Chauí, "Ética e universidade", in Ciência Hoje, 1994, v. 17, n. 102, p. 39) a Profª Marilena de Souza Chauí aborda criticamente o neoliberalismo, entre outras razões porque este "diviniza" o mercado, considerando que somente ele é capaz de promover o desenvolvimento econômico, político e social.
0 raciocínio da autora se desenvolve da forma que se segue. Para ficar mais didático, vamos expô-lo numa seqüência de quadros.
Para os neoliberais do momento, os mecanismos de mercado são racionais, de modo que podem, por si mesmos, organizar a vida econômica, política e social. |
Isso significa descartar a ação do Estado como disciplinador da vida econômica, dando total liberdade à ação empresarial. consolidando, assim, a idéia de competição e competitividade. |
Num mercado em que dominam os trustes, cartéis, monopólios e oligopólios, a lei da oferta e da procura* sofre uma deformação, dando lugar a práticas como o dumping*, recurso último dos grandes grupos empresariais para arrasar com os médios e pequenos concorrentes, instituindo, por conseguinte, a violência econômica. |
Esse quadro de violência econômica, em que imperam a competição e a competitividade, é o espelho que molda a ação humana, destruindo toda possibilidade de ética na vida social e individual. |
As relações dos grandes grupos econômicos e financeiros com os governos são muitas vezes marcadas por conflitos. Quando estes últimos pretendem impor limites à atuação desenfreada do mercado, as empresas globalizadas ou as transnacionais ameaçam dispensar funcionários, não reinvestir seus capitais no país e até fechar suas portas e transferir-se para outro país ou espaço geográfico. Isso se aplica também às questões ecológicas.
A própria prática da competição e da competitividade encerra em si relações de poder. A desigualdade de poder que se verifica entre as empresas, grupos e indivíduos está presente também nas relações que se estabelecem entre eles. Utiliza-se a força econômica, financeira e política para afastar ou mesmo aniquilar concorrentes, para dominar mercados, para controlar as matérias-primas e sua distribuição, bem como o comércio e o próprio Estado. Ao se caracterizarem pelo uso da violência, as relações econômicas ficam despojadas de ética.
Na sociedade de consumo, as relações sociais são pautadas em valores econômicos. Mede-se o indivíduo pelos bens que possui, por sua capacidade de consumir. Os valores sociais e políticos andam a reboque dos econômicos, caracterizados, portanto, igualmente pela ausência de ética. A corrupção, o clientelismo, o paternalismo, o mandonismo* local e regional etc. são práticas comuns nas administrações municipais, estaduais e federais, às quais subjazem a falta de espírito público, a indiferença à miséria, bem como a ausência de espírito associativo em nossa formação histórico-cultural. E o Estado, nisso tudo, é apenas um instrumento a serviço dos interesses políticos e econômicos dos grandes grupos empresariais.
O mesmo ocorre com o sistema de valores da sociedade. A dignidade, o caráter e a própria ética que deveriam ocupar o centro das relações sociais, políticas e econômicas, foram superados por valores produzidos pela sociedade de consumo, em que o "ter" se sobrepõe ao "ser" e a aparência(o aspecto material) ofuscou a essência do ser humano (os aspectos moral intelectual e espiritual).
Concluímos, portanto, que os mecanismos de mercado não são, por si só, capazes de organizar a vida social, política e econômica, pois não geram solidariedade, e sim conflitos e antagonismos. O Estado e o mercado não devem ser vistos como opostos, mas sim como complementares. ]ambos têm uma função social a cumprir e, para que isso aconteça, é preciso que o Estado, visto aqui como o conjunto das forças políticas do país, seja o organismo regulador e disciplinador do mercado, para que os interesses da minoria privilegiada não se sobreponham aos da imensa maioria da população.
As críticas ao estatismo* somente se justificam quando se observam a incompetência administrativa nas empresas estatais, o empreguismo *, os altos salários e benefícios pagos, o mau uso do bem público, a corrupção administrativa etc. E se a situação é essa, o que se requer é uma reversão do quadro. É preciso tornar o Estado menos oneroso, mais eficiente e mais competente para cumprir sua função social, inclusive a de protetor ddas economias nacionais, mesmo num mundo globalizado; aparar os excessos nos gastos e nas nomeações de funcionários; impor a ética na gestão do patrimônio público; acabar com o desperdício e a corrupção etc.
O desenvolvimento econômico do Japão e dos Tigres Asiáticos (Coréia do Sul, Taiwan, Cingapura) não se deveu ao afastamento do Estado mas, ao contrário, à sua forte presença e participação na economia. Nesses países, as funções do Estado-promotor (do desenvolvimento, de políticas industriais, agrícolas etc.) e do Estado-regulador foram reafirmadas. O firme dirigismo estatal nem sempre está relacionado à propriedade e à gestão de empresas estatais, mas o Estado é onipresente na vida econômica. Embora o neoliberalismo tenha batido de frente em suas fronteiras, a orientação econômica governamental desses países continuou sendo antiliberal e o dirigismo estatal na economia de mercado continuou os eu curso, promovendo seu desenvolvimento (veja o quadro abaixo)
Coréia do Sul: uma economia com forte presença do Estado A coréia do Sul possui hoje grande capacidade competitiva no mercado mundial e elevado avanço tecnológico. Na década de 60 seu desenvolvimento industrial era incipente, encontrando-se aquém do brasileiro. Entre outros fatores, o incentivo estatal às exportações obrigou os grupos privados nacionais a procurarem maior eficácia na produção, buscando a competitividade internacional e evitando sua estagnação tecnológica. O Estado escolheu certos setores dinâmicos da economia, como o microeletrônico e o automobilístico, e deu imenso apoio ao seu desenvolvimento. A educação em todos os níveis foi incentivada, com investimento considerável em centros de pesquisa científica e tecnológica, formando uma força de trabalho de alta qualificação profissional. Paralelamente o estado adotou mecanismos de proteção para seu mercado interno. O Estado, portanto, está muito presente na vida econômica da Coréia do Sul, um dos países que mais crescem no mundo. |
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ANEXO: DICIONÁRIO DO AUTOR