O neoliberalismo em debate

FRANCISCO JOSÉ SOARES TEIXEIRA

Do livro: "Neoliberalismo e reestruturação produtiva – as novas determinações do mundo do trabalho" – Francisco J. S. Teixeira e Manfredo Araújo de Oliveira (organizadores), Cortez Editora, São Paulo, 1996, pp. 195-252

1. Introdução

O neoliberalismo nasceu logo depois da Segunda Grande Guerra mundial, nos principais países do mundo do capitalismo maduro. Nasceu como uma reação teórica e política ao modelo de desenvolvimento centrado na intervenção do Estado. que passou a se constituir, desde então, na principal força estruturadora do processo de acumulação de capital e de desenvolvimento social.1 Considerando essa intervenção como a principal crise do sistema capitalista de produção, os neoliberais passaram a atacar qualquer limitação dos mecanismos de mercado por parte do Estado, denunciando tal limitação como uma ameaça letal à liberdade econômica e política.2

É nesse sentido que os neoliberais vão retomar a tese clássica de que o mercado é a única instituição capaz de coordenar racionalmente quaisquer problemas sociais, sejam eles de natureza puramente econômica ou política. Daí a preocupação básica da teoria neoliberal em mostrar o mercado como um mecanismo insuperável para estruturar e coordenar as decisões de produção e investimento sociais.3 Consequentemente, mecanismo indispensável para solucionar os problemas de emprego e renda na sociedade.

Muito embora o neoliberalismo tenha surgido como uma reação localizada ao Estado intervencionista e de bem-estar, ele nasce como um fenômeno de alcance mundial. Com efeito, depois da Segunda Grande Guerra, assiste-se a um processo crescente de sincronização internacional do ciclo industrial,4 de tal forma que os movimentos conjunturais de acumulação de capital afetam indistintamente qualquer país. O desdobramento desse processo encontra seu ponto máximo de desenvolvimento com a mundialização dos circuitos financeiros, que criam um único mercado de dinheiro, virtualmente livre de qualquer ação de governos nacionais.5 De sorte que, assim sendo, dizem, a transnacionalização do sistema capitalista de produção representou a morte do Estado, isto é, seu poder de fazer políticas econômicas e sociais e forma autônoma e soberana.

Esse contexto histórico em que nasce o neoliberalismo transforma a teoria neoliberal numa teoria de alcance prático universal. Seu programa de ação, que é fazer do mercado a única instância a partir de onde todos os problemas da humanidade podem ser resolvidos, torna-se, por isso mesmo, um credo mundial que deve ser abraçado por qualquer país. Dessa perspectiva, acredita-se que o melhor caminho para falar desse programa é pôr a descoberto os princípios filosóficos da teoria que lhe dá sustentação, que lhe dá legitimidade discursivo-ideológica.

Partindo daí, pretende-se, inicialmente, dar conta dos fundamentos clássicos da teoria liberal, para então descobrir as idéias centrais de que se servem os neoliberais para formularem os seus princípios teóricos e seu programa de ação. Para ser conseqüente nesta tarefa, é preciso, ainda que em rápidas pinceladas, descortinar as dimensões políticas e econômicas da teoria liberal, tal como ela foi formulada pela ciência política moderna e pela economia política clássica. Sem tais mediações, acredita-se, o neoliberalismo não poderá ser compreendido na sua verdadeira essência e, assim, criticado consequentemente. Só depois então é que se poderá passar à descrição das origens históricas do liberalismo nos países centrais. Enquanto programa de ação, com pretensões de alcance mundial, seria interessante descrever o processo histórico de nascimento do neoliberalismo na realidade brasileira, O passo seguinte deverá ser o mais difícil. Será o momento da exposição da teoria neoliberal e da sua crítica. Trata-se um esforço para imitar o discurso filosófico, não por uma questão de pedantismo, mas por exigência dessa a qual pretende ser um discurso universalizante.6 portanto, o que se quer é, primeiro, entender o neoliberalismo na sua pretensão de ser uma teoria portadora de um programa de ação, para em seguida se passar à sua crítica.

 

2. Gênese e desenvolvimento da teoria liberal

 

2.1. Introdução

Em sua forma histórica original, o liberalismo nasce como um corpo de formulações teóricas que defendem um Estado constitucional,7 isto é, um Estado em que a autoridade central é exercida nas formas do direito e com garantias jurídicas preestabelecidas. Em outras palavras, o Estado tem como função principal e específica a instituição de um estado jurídico, no qual a liberdade de cada um possa coexistir com os outros segundo um conjunto de leis expressas num código ou numa constituição.

Esse conjunto de formulações repousa em três concepções teóricas básicas: a teoria dos direitos naturais ou jusnaturalismo, o constitucionalismo e a economia política clássica. Dessas três teorias, aqui serão destacadas somente a primeira e a última. Isto deverá ser suficiente para dar conta dos fundamentos do liberalismo e, assim, estabelecer um contraponto com o novo liberalismo reinante na contemporaneidade: o neoliberalismo.

2.2. Os direitos naturais como limites ao poder do Estado

Partindo da idéia de que o liberalismo nasce como um corpo de formulações teóricas que defendem um Estado constitucional, os jusnaturalistas advogam que o Estado tem um limite externo, um limite que impede que a ação do poder político seja exercida contra os direitos de liberdade dos indivíduos. Este limite externo são os direitos naturais, que nascem com os indivíduos e são imanentes à natureza humana enquanto tal,8 independentemente da constituição de qualquer comunidade política. É neste sentido que Bobbio entende que "os direitos naturais constituem [...] um limite ao poder do Estado, pelo ato de que o Estado deve reconhecê-los, não pode violá-los, pelo contrário, deve assegurar aos cidadãos o seu livre exercício".9

E daí que partem Hobbes e Locke para formularem suas teorias sobre a constituição do Estado moderno. Para legitimarem a necessidade de criação de uma instância política que seja capaz de normalizar a vida dos indivíduos na sociedade, estes autores constroem uma ficção teórica, o assim chamado estado de natureza, a partir de onde julgam como deve ser estruturada e organiza da a sociedade política. Esta ficção teórica pode ser entendida, na verdade, como uma hipótese de alcance meramente epistemológico ou nominal, que serve para mostrar por que os indivíduos devem abandonar o estado de natureza para ingressarem numa vida regrada por normas e leis positivas.

No caso de Hobbes, o homem deve sair deste estado porque, se nele permanecer, diz ele, não haverá lugar para a indústria, para o cultivo da terra, para a navegação e transporte de mercadorias entre países; igualmente não haverá lugar para as artes e para as letras. Em uma palavra: não há sociedade. Eis aí a sua definição de estado de natureza.10

Mas o que leva os homens a deixarem o estado de natureza para viver em sociedade? A vida insegura e incerta a que estão submetidos neste estado, onde predomina a guerra de todos contra todos. Essa insegurança e incerteza criam, no homem, o sentimento do medo da morte e, assim, o desejo de uma vida onde cada um possa garantir a posse do que é capaz de conseguir.

O medo da morte leva os homens, portanto, a buscar a paz, que só poderá ser assegurada mediante a criação de uma instância política capaz de refrear os impulsos auto destrutivos dos indivíduos, pois "as leis de natureza (como a justiça, a eqüidade, a modéstia, a piedade, ou, em resumo, fazer aos outros o que queremos que nos façam) por si mesmas, na ausência do temor de algum poder de levá-las a ser respeitadas, são contrárias a nossas paixões naturais, as quais nos fazem tender para a parcialidade, o orgulho, a vingança e coisas semelhantes. E os pactos sem a espada não passam de palavras, sem força para dar qualquer segurança a ninguém".11

Por conta disso, então diz Hobbes, "os homens concordam entre si em submeterem-se a um homem, ou a uma assembléia de homens, voluntariamente, com a esperança de serem protegidos por eles contra todos os outros".12 É desta forma, conclui ele em outro lugar, "que derivam todos os direitos e faculdades daquele ou daqueles a quem o poder soberano é conferido mediante o consentimento do povo reunido".13

O Estado aparece, assim, como resultado da vontade dos indivíduos. São eles que, por consentimento voluntário, criam o poder político para protegê-los e preservar suas vidas. Como se trata de uma ação voluntária, os súditos julgam-se os verdadeiros autores da construção deste poder, como deixa clara a seguinte passagem:

A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de defendê-los das invasões dos estrangeiros e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente para que, mediante seu próprio labor e graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda sua força e poder a um homem, ou a uma assembléia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade. O que eqüivale a dizer: designar um homem ou uma assembléia de homens como representantes de suas pessoas, considerando-se e reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que aquele que representa sua pessoa possa praticar, em tudo que disser respeito à paz e à segurança comum [... I Isso é mais do que consentimento e concórdia, é uma verdadeira unidade de todos eles, numa e só mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos os homens, de modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: cedo e transfiro o meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembléia de homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações. Feito isto, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas.14

A despeito do fato de serem os indivíduos os autores da todas, de uma forma absoluta, todos os seus direitos para a coisa pública, eles acabam por transferirem, de uma vez por todas, de uma forma absoluta, todos os seus direitos para a figura que encarna este poder, o soberano. Em conseqüência disto, os indivíduos perdem o direito de dizer não, de impor limites à ação do Estado, cabendo-lhes tão-somente obedecer às leis instituídas pelo soberano. Com efeito, diz Hobbes, "dado que todo súdito é por instituição autor de todos os atos e decisões do soberano instituído, segue-se que nada do que este faça pode ser considerado injúria para com qualquer de seus súditos, e que nenhum deles pode acusá-lo de injustiça".15

Diferentemente de Hobbes, para Locke, os direitos naturais são uma garantia contra o poder absoluto do Estado. Tais direitos nascem com os indivíduos independentemente de eles pertencerem ou não a uma dada comunidade política.16

O Estado não pode violar estes direitos. Ao contrário, deve reconhecê-los e assegurar o seu exercício por cada indivíduo, Isto transforma o indivíduo em um cidadão, na medida em que ele é reconhecido como portador de direitos e pode, assim, cobrar do Estado a liberdade de exercê-los contra todo e qualquer poder arbitrário imposto a ele sem seu consentimento.

Se Hobbes e Locke compartilham da idéia de que os indivíduos vêm ao mundo trazendo consigo direitos que lhes pertencem por natureza, como se explica que eles tenham concepção tão distinta sobre o poder do Estado? A resposta não é tão difícil. Enquanto para Hobbes o mercado não é capaz de criar nenhum laço de sociabilidade, as coisas se passam muito diferentes em Locke.17 Para este último, o mercado se apresenta como uma instância originária de socialização, que cria normas e regras de convivência social, que aparecem como direitos naturais. Neste sentido, essas normas e regras se apresentam como resultado de um longo processo de aprendizagem, que ensina os indivíduos a quererem tais direitos porque sabem que são seu sujeito. De sorte que, assim sendo, tudo indica que os direitos naturais aparecem como objeto do seu saber e do seu querer.

Não parece difícil sustentar essa argumentação em Locke. Com efeito, viu-se acima que, para ele, a economia é a base originária a partir de onde se tece uma malha de relações sociais contratuais entre os homens. Antecipando em quase um século o princípio da mão invisível de Adam Smith, Locke vê a divisão social do trabalho, engendrada pela própria necessidade dos indivíduos intercambiarem os produtos dos seus trabalhos independentes, como o lugar a partir do qual os homens criam laços entre eles e, assim, regras e normas de convivência social. Assim, no intercâmbio das mercadorias, os homens criam um sistema universal de regras, de que se servem então para garantir sua sobrevivência social. Aprendem, dessa forma, a depender um dos outros e a fazer dessa dependência o meio para assegurar uma convivência harmoniosa.

Locke não diz explicitamente, mas se pode dele deduzir que é esse processo de aprendizagem, produzido pela troca de mercadorias, que permite aos indivíduos interiorizarem a idéia de que eles são portadores de direitos naturais, e que devem ser preservados quando da instituição da sociedade civil, do Estado. Dentre esses direitos, o mais importante a ser preservado é o direito de propriedade, pois esta é concebida como resultante do trabalho próprio, isto é, do esforço individual que cada indivíduo realizou para retirar do patrimônio comum que Deus deu aos homens, a natureza, a fatia que lhe deve caber. Entretanto, esse direito natural vê-se ameaçado pelo desenvolvimento da troca de mercadorias, que acaba por afastar o trabalho como principio originário da propriedade, para fazer do dinheiro seu novo fundamento, como se pode ler nesta passagem: "seja lá como for, ao que não quero dar importância, ouso afirmar corajosamente o seguinte: a mesma regra de propriedade, isto é, que todo o homem deve ter tanto quanto possa utilizar, valeria no mundo sem prejudicar ninguém [...] se a invenção do dinheiro e o tácito acordo dos homens, atribuindo um valor à terra, não tivessem produzido - por consentimento - maiores posses e o direito a elas ..."18A partir do momento em que o valor da propriedade passa a ter sua fonte no dinheiro, e não mais no trabalho, produz-se uma desigualdade social na apropriação do principal meio de produção - a terra -, dando origem, então, a uma época de conflitos sociais. O mais sagrado de todos os direitos naturais - o direito de propriedade - vê-se, assim, ameaçado. Para preservá-lo, os homens acordam em fundar uma comunidade política, que tem no Estado a garantia de resguardar este direito natural e. com ele, a liberdade de dispor de sua própria vida, uma vez que cada indivíduo deve sua existência ao trabalho. Segue-se daí, portanto, que a propriedade é, para Locke, o fundamento da liberdade do homem e, este sentido, condição de possibilidade para o exercício da cidadania.19

Se o homem deve sua existência ao trabalho, renunciar ao direito de propriedade seria, para Locke, abdicar da própria vida. Por isso, o homem não pode transferir tal direito para o Estado, como advoga o autor do Leviatã, Neste sentido, os homens devem conservar sempre o poder de eleger e destituir seus representantes, cuja razão de ser é defendê-los do abuso ou da injustiça que se venha a cometer contra a propriedade. E o que se pode ler na seguinte passagem do Segundo tratado sobre o governo:

"Embora em uma comunidade constituída, erguida sobre sua própria base e atuando de acordo com a sua própria natureza, isto é, agindo no sentido da preservação da comunidade, somente possa existir um poder supremo, que é o legislativo, ao qual tudo mais deve ficar subordinado, contudo, sendo o legislativo somente um poder fiduciário destinado a entrar em ação para certos fins, cabe ainda ao povo um poder supremo para afastar ou alterar o legislativo quando é levado a verificar que age contrariamente ao encargo que lhe confiaram... E nessas condições, a comunidade conserva perpetuamente o poder supremo de se salvaguardar dos propósitos e atentados de quem quer que seja, mesmo dos legisladores, sempre que forem tão levianos ou maldosos que formulem planos contra a liberdade e a propriedade dos súditos......"20

Nessa passagem, Locke não poderia ter sido mais claro: a ação do Estado deve se dar dentro dos limites da lei instituída pelo poder legislativo. Em outras palavras, o poder do Estado deve ser cercado de salvaguardas constitucionais, que o impeçam de extrapolar os direitos dos cidadãos. Mais claramente, como esclarece Rodrigo Uprimny21 as diversas ações do Estado, seja no campo militar, para defender o território nacional, seja na esfera policial, para estabelecer a ordem pública, seja em matéria judicial, para o esclarecimento e a sanção de delitos, devem ser, portanto, diferenciadas e reguladas de forma específica.

Essas breves reflexões teóricas devem ter sido suficientes para dar conta das origens históricas do liberalismo clássico, na sua vertente jusnaturalista, que nasce com a preocupação de criar um corpo de formulações teóricas que defendam um Estado de direito, um Estado cujo poder deve ser exercido dentro de normas jurídicas preestabelecidas. Entretanto, essas reflexões não estariam completas sem que se levasse em conta os seus desdobramentos contemporâneos, que redundaram nas teorias da soberania popular ou democracia. O fulcro destas teorias é o pensamento de Rousseau, cuja preocupação principal foi pensar o Estado de direito como um Estado democrático. Rousseau, como se sabe, não queria apenas limitar o poder do Estado, queria mais do que isso: sua pretensão era transformar a coisa pública em um poder governado pela vontade geral, pelo povo. Como bem esclarece Bobbio, "trata-se de uma verdadeira quebra do poder estatal, o qual, pertencendo a todos, [...] é como se não pertencesse a ninguém". De sorte que, assim sendo, a diferença entre esta teoria e a do jusnaturalismo salta aos olhos: frente ao abuso do poder, a teoria dos direitos naturais busca motivos para limitar o poder do Estado; a teoria democrática, diz Bobbio, "considera que o único remédio seja o fato de atribuir o poder a quem por sua natureza não pode abusar dele, ou seja, à vontade geral".22

  2.3. O mercado enquanto espaço determinante da sociabilidade

Se a ciência política moderna parte de uma ficção teórica, o estado de natureza, para a partir dela compreender e julgar a realidade presente, a economia política clássica (EPC) se arma desse mesmo recurso metodológico. Adam Smith, por exemplo, constrói sua teoria do valor partindo de um estado hipotético habitado por caçadores, que permutam entre si os diversos produtos de seus diferentes trabalhos. Nesse estado, em que não há patrões nem empregados, o valor do produto pertence integralmente ao seu produtor. A única regra que os produtores observam, quando trocam entre si suas diferentes mercadorias, são as quantidades de trabalho nelas inseridas. A liberdade de que gozam os produtores para produzir o que mais lhes convier garante o pleno abastecimento do mercado e, assim, a satisfação das necessidades da sociedade. A ausência total de regulação externa, para coordenar as diversas atividades dos indivíduos, é a melhor maneira para a sociedade alcançar a prosperidade e a felicidade de seus membros.

É a partir daí que Smith constrói seus conceitos e critérios para seu juízo sobre a sociedade de seu tempo. Uma sociedade ainda dominada pela presença de resquícios feudais e com uma forte intervenção estatal, que ditava as normas de comércio e de produção. Contra esta forma de organização da produção social, considerada por ele como um dos principais obstáculos à riqueza das nações, Smith contrapõe aquele estado idílico,23 onde ninguém estava sujeito a nenhuma autoridade externa, apenas aos seus próprios interesses particulares, para defender a idéia de que "numa sociedade civilizada, o homem a todo momento necessita da ajuda e cooperação de grandes multidões, e sua vida inteira mal seria suficiente para conquistar a amizade de algumas pessoas". Por isso, diz ele, o homem

"terá maior probabilidade de obter o que quer, se conseguir interessar a seu favor a auto-estima dos outros, mostrando-lhes que é vantajoso para eles fazer ou dar-lhe aquilo de que ele precisa. É isso que faz toda pessoa que propõe um negócio a outra. Dê-me aquilo que eu quero, e você terá isto aqui, que você quer... é dessa forma que obtemos uns dos outros a grande maioria dos serviços de que necessitamos. Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro, ou do padeiro que esperarmos nosso jantar, mas da consideração que eles têm por seu próprio interesse".24

Vê-se, então, que a vida em sociedade é determinada por um conjunto de relações de compra e venda, que integram os indivíduos numa grande teia de relações de dependência recíproca. O interesse pessoal, a auto-estima, é, portanto, condição de possibilidade para a formação dos laços sociais que prendem os indivíduos entre si. Nada melhor do que o próprio interesse para garantir a coesão do todo social. É o que Smith traduz com o seu conceito de mão invisível, que mostra que cada indivíduo, quando guiado exclusivamente pela busca do lucro, necessariamente se esforça para aumentar ao máximo possível a renda anual da sociedade. Geralmente, na realidade, ele não tenciona promover o interesse público nem sabe até que ponto o está promovendo. Ao preferir fomentar a atividade do país e não de outros países, ele tem em vista apenas sua própria segurança; e orientando sua atividade de tal maneira que sua produção possa ter o maior valor, visa apenas o seu próprio ganho e, neste, corno em muitos outros casos, é levado como que por uma mão invisível a promover um objeto que não fazia parte de suas intenções.25

É com base no princípio da mão invisível que Smith explica o desenvolvimento da Inglaterra. De acordo com suas próprias palavras,

"embora os altos gastos do governo, sem dúvida, devam ter retardado o curso natural da Inglaterra em direção à riqueza e ao desenvolvimento, não foi possível sustá-lo. A produção anual da terra e do trabalho na Inglaterra é, sem dúvida, muito maior hoje do que na época da restauração ou da revolução Em conseqüência, maior deve ter sido o capital empregado anualmente no cultivo da terra e para manter essa mão-de-obra. Em meio a todas as exceções feitas pelo governo, esse capital foi silencioso e gradualmente acumulado pela frugalidade e pela boa administração de indivíduos particulares, por seu esforço geral, contínuo e ininterrupto no sentido de melhorar sua própria condição. Foi esse esforço, protegido pela lei e permitido pela liberdade de agir por si próprio de maneira mais vantajosa, que deu sustentação ao avanço da Inglaterra em direção à grande riqueza e ao desenvolvimento em quase todas as épocas anteriores, e que, como é de se esperar, acontecerá em tempos futuros".26

Assim, se a cada indivíduo for garantida a liberdade de agir por conta própria, e o Estado não interferir na economia, cada país poderá atingir o pleno desenvolvimento econômico e com ele o bem-estar geral da sociedade. É isso o que revela o princípio da mão invisível. Trata-se de um princípio que procura demonstrar que a economia deve funcionar sem qualquer regulamentação social direta. Além disso, serve como denúncia às políticas mercantilistas da época, bem como sintetiza as idéias filosóficas do autor, do que é e deve ser a sociedade capitalista: uma sociedade na qual o mercado deverá ser a instância suprema e intranscendível da vida humana. Afinal de contas, o mercado é um produto da natureza humana, que se desenvolve sem que ninguém tenha consciência disso, pois, diz Smith: "é por negociação, por escambo ou por compra que conseguimos uns dos outros a maior parte dos serviços recíprocos de que necessitamos, da mesma forma é essa mesma propensão ou tendência a permutar que originalmente gera a divisão do trabalho"," e, assim, o mercado.27

Com isso, pode-se dar por encerrada a exposição das idéias centrais do pensamento liberal da EPC Completam-se, portanto, os fundamentos gerais do pensamento clássico liberal, tanto na sua vertente política, como econômica. Sendo assim, pode-se passar, agora, à apresentação da teoria neoliberal. Antes, porém, para atender ao plano expositivo adiantado no início, é preciso descrever as origens históricas do neoliberalismo, enquanto programa de ação voltado para a implementação de uma política de desenvolvimento econômico e social.

 

3. Um balanço do neoliberalismo

3.1. Considerações gerais: morte e vida do liberalismo

Se se observarem atentamente as idéias centrais da teoria clássica do liberalismo, aqui expostas, pode-se notar que essa teoria é muito mais uma exigência do que deveria ser a sociedade, do que mesmo uma análise estritamente empírica da realidade de então. Com efeito, tanto a ciência política moderna como a EPC recorrem a uma ficção teórica, a hipótese de um estado de natureza, para a partir daí lerem e julgarem a realidade presente, para, então, proporem um programa de ação voltado para transformar o estado de coisas reinante. Contra o abuso do poder estatal, quer na esfera da administração da sociedade (defesa do território nacional, estabelecimento da ordem pública e esclarecimento e sanção de delitos), quer na esfera da economia, todos os teóricos do Estado moderno, com exceção de Hobbes, defendiam um governo limitado, um Estado de direito. O mesmo se observa em relação à teoria econômica da época, que, sendo mais radical ainda, exigia o fim da intromissão do Estado nos assuntos econômicos e nos da vida social, pregando uma política de livre comércio intra e internações.

Os defensores desse programa de ação não chegaram a vivê-lo. A sociedade em que viviam estava ainda muito longe do que viria a ser o capitalismo mais tarde, Somente a partir de meados do século XIX é que aquele programa liberal encontraria condições favoráveis para sua realização efetiva. Tal programa pressupunha uma sociedade na qual a produção de mercadorias houvesse se tornado a relação social dominante, a ponto de seus proprietários serem reconhecidos reciprocamente como tais. Em outras palavras, o liberalismo só poderia se transformar num programa prático a partir do momento em que o conceito de mercado adquirisse a força de um preconceito popular. Portanto, a partir do momento em que a sociedade presente tivesse varrido da memória social as mediações históricas (resquícios feudais, cercamentos de terras, colonialismo, escravismo etc.) de sua gênese. Em síntese, quando o processo de acumulação primitiva, para usar essa expressão marxista, deixasse de ser pressuposto externo ao sistema de produção de mercadorias para se transformar em um elemento interno de sua reprodução.28

Essas condições objetivas tomam-se realidade efetiva a partir de meados do século passado.29 A partir daí o capitalismo vive a sua fase liberal por excelência. A democracia representativa ganha existência efetiva, com o aparecimento do sufrágio universal; a redução da jornada de trabalho aparece como uma conquista possibilitada pela produtividade do capital; o comércio internacional de mercadorias avança com "botas de sete léguas"; as empresas podem dispensar a ajuda direta do Estado, por conta da acumulação privada de seus lucros; o trabalho escravo torna-se um obstáculo ao processo de acumulação; a existência das colônias começa a deixar de ser pré-requisito para a acumulação de capital nas metrópoles.

Daí até as primeiras décadas deste século, o liberalismo (torna-se o credo do capitalismo. Deixa, portanto, de ser uma exigência para se tornar mediação obrigatória para o desenvolvimento do capital e da sociedade. Essa fase áurea chega ao seu fim com a grande crise no final dos anos vinte e início da década de trinta. A Grande Depressão joga nas ruas milhares de trabalhadores no mundo todo. Falências de empresas se seguem em uma cadeia sucessiva, arrastando na sua esteira grandes blocos de capitais. As prateleiras abarrotadas de mercadorias faziam os preços despencarem em uma velocidade aterrorizante para seus proprietários, que viam, da noite para o dia, seu capital virar fumaça. As próprias instituições políticas da sociedade viam-se ameaçadas na sua existência, pondo em risco a própria sobrevivência do sistema. Parecia que o capitalismo estava chegando ao fim e com ele todas as teorias e ideologias liberais.

O processo de superação dessa grande crise é bastante conhecido. A doutrina econômica liberal, que recomendava liberdade total para as leis de mercado, como mediação política para tirar a economia da crise, é vencida pela própria realidade. O Estado é obrigado a abandonar sua posição de "vigia da economia" para se tomar instrumento de salvação do sistema, com suas políticas de apoio direto ao processo de acumulação de capital e com suas políticas sociais compensatórias de ajuda para os excluídos do mercado. É a partir daí que começa a fase do capitalismo regulado estatalmente.30 Desde então, assiste-se a uma inversão fundamental entre a esfera da economia e do político: este último se transforma em condição de possibilidade para o funcionamento da economia.31

O desdobramento dessa nova relação entre economia e Estado vai ser responsável pela criação do chamado modelo social-democrático de desenvolvimento. Nasce, a partir de então, um novo sistema de produção: o "modo social-democrático de produção", que irá viver os seus "anos gloriosos" desde a Segunda Grande Guerra até meados da década de setenta.

A análise da ascensão e crise desse modelo de acumulação é condição de possibilidade para entender melhor a natureza dos programas neoliberais. Isso é o que se pretende fazer a seguir, tomando como referência, inicialmente, os países do chamado capitalismo maduro.

 

3.2. Fordismo e social-democracia: a crise e os anos gloriosos da economia social de mercado

A "economia política da social-democracia"32 nasce a partir da crise do padrão de acumulação de capital fordista, tendo como preocupação básica descrever as características desse modelo, seu desenvolvimento e sua crise.33 Nascido a partir de 1945, este modelo ou padrão de acumulação tinha como base um processo de produção em massa, dirigido a um público consumidor passivo e ávido de consumo.

A distribuição da riqueza se fazia mediante acordos coletivos, segundo os quais capital e trabalho acordavam em elevar ao máximo a produtividade e a intensidade do trabalho, em troca de salários e lucros crescentes. As entidades representativas de classes (partidos políticos de massa e sindicatos com grandes estruturas corporativistas) eram a base sobre a qual se desenvolvia a luta pela distribuição da riqueza social. Para garantir o cumprimento dos acordos, era imprescindível a presença mediadora do Estado, cuja legitimação era assegurada, por um lado, mediante uma política de subsídios à acumulação de capital e, por outro, através de uma política de bem-estar social, fundada em medidas compensatórias: seguro-desemprego, transporte subsidiado, educação e saúde gratuitas, entre outras coisas.

A partir do final dos anos sessenta, esse modelo de acumulação entra em crise. De acordo com os teóricos da economia política da social-democracia, assiste-se, a partir de então, a uma erosão crescente do compromisso entre capital e trabalho, da chamada "relação salarial fordista". Lutas operárias contestando a organização do trabalho, reivindicações de salários reais acima dos ganhos de produtividade, a crise fiscal do Estado, instabilidade financeira, inflação etc., tudo isso cortou o círculo virtuoso de crescimento e de desenvolvimento social, jogando a economia em uma crise estrutural, que se arrasta até os dias de hoje.

Essa crise vem sendo enfrentada através de um processo de reestruturação produtiva, que se faz acompanhar de novas tecnologias, que permitem uma produção flexível capaz de satisfazer as novas exigências do mercado e, assim, criar condições para que a oferta de bens e serviços possa acompanhar as mudanças de hábitos no consumo. Se, antes, no chamado modelo de acumulação fordista, as empresas produziam sem se preocupar com a demanda de mercado, a partir de então as mercadorias não são mais produzidas para em seguida serem lançadas no mercado. Desde então as empresas procuram planificar a venda de suas mercadorias, de tal modo que elas possam ser vendidas no momento em que são produzidas. Para tanto, as empresas procuram reestruturar a sua organização produtiva. Em lugar de grandes corporações produzindo desde a matéria-prima até o produto final, em vez desta estrutura verticalizada, com suas imensas redes burocráticas e com enormes custos de administração de pessoal, busca-se uma estrutura mais enxuta, mais flexível, capaz de responder aos movimentos de mudanças na composição da demanda. A terceirização, como é conhecida no Brasil, é um dos expedientes mais utilizados pelas empresas hoje em dia.34

Essa reestruturação do processo de produção de mercadorias, de seus elementos técnicos, passou a exigir uma nova forma de contratação e gerenciamento da força de trabalho. As empresas querem, hoje, um trabalhador que não seja mais aquele tipo de indivíduo que batia o relógio de ponto, recebia ordens do chefe para executar uma tarefa específica e agia bovinamente durante todo o dia de trabalho, sem se preocupar com os resultados de sua atividade... Agora, precisam de um indivíduo capaz de contribuir para melhorar a qualidade do produto, um indivíduo que pense e tenha iniciativa própria, um indivíduo que seja capaz de mudar, com facilidade e precisão, de uma atividade para outra, um indivíduo que, na empresa, seja capaz de vender, de produzir, de consertar os defeitos da máquina, de limpar o chão, de dar e receber ordens. Em síntese, as empresas querem um trabalhador particular que incorpore as forças de trabalhador coletivo, antes divididas entre diversos trabalhadores singulares. Não querem mais um trabalhador coletivo combinado, mas um trabalhador que seja a síntese da combinação de diversas operações parciais.35

É nesse contexto de reestruturação produtiva que os neoliberais encontram munição para difundir sua doutrina e seus programas de política econômica. A crise do modelo de acumulação fordista, cuja superação aponta para novas formas de produção, onde a flexibilização da produção e das relações entre capital e trabalho passam a ser perseguidas por todas as empresas, cria as condições propícias para tanto. Embora não tendo como objetivo explicar o ressurgimento das teorias liberais, Clarke resume brilhantemente a crise do fordismo e o novo cenário econômico, político e social que começa a se delinear na direção de um novo possível modo de regulação, no qual o mercado poderá vir a se tornar dominante. Ainda que longa, vale a pena citar a passagem do seu texto, em que ele descreve essas condições. Literalmente:

"A saturação dos mercados de massa leva a uma crescente diferenciação dos produtos, com uma nova ênfase no estilo e/ou na qualidade. Produtos mais diferenciados exigem turnos de trabalho mais curtos, e portanto unidades de produção menores e mais flexíveis. Novas tecnologias fornecem os meios pelos quais se pode realizar vantajosamente essa produção flexível. Entretanto, estas novas formas de produção têm implicações profundas. Uma produção mais flexível requer máquinas mais flexíveis e de finalidades genéricas, e mais operários 64 polivalentes", altamente qualificados, para operá-las. Uma maior qualificação e flexibilidade exige que os operários tenham um grau mais alto de responsabilidade e autonomia. Uma produção mais flexível também requer formas mais flexíveis de controle de produção, ao passo que relações de produção mais flexíveis requerem o desmantelamento das burocracias corporativas. Os interesses de uma força de trabalho mais diferenciada não podem ser eficazmente representados por sindicatos e partidos políticos fordistas, monolíticos e burocráticos. São necessários acordos descentralizados para negociar sistemas de pagamentos mais complexos individualizados, que recompensam a qualificação e a iniciativa. A diferenciação do trabalhador de massa leva ao surgimento de novas identidades que não são mais definidas ocupacionalmente, mas sim articuladas no consumo idiossincrático, em novos estilos de vida e novas formas culturais, que reforçam a demanda por produtos mais diferenciados. Tudo isso vai corroendo as velhas identidades políticas. As necessidades de bem estar, saúde, educação e treinamento de uma força de trabalho diferenciada que não podem mais ser satisfeitas por um Welfare State burocrático e padronizado, mas apenas por instituições diferenciadas, capazes de responder de maneira flexível às necessidades individuais".36

Essa ascensão e crise do modelo de acumulação fordista guardam semelhanças com o que se passa no Brasil. Aqui, tem-se a impressão de que pelo menos em grandes linhas o padrão de acumulação passa por um processo semelhante: à fase liberal segue-se uma de intervenção planejada que, por sua vez, começa a ser substituída por uma maior liberalização da economia. É nessa direção que se caminhará agora.

3.3. Brasil: origem, desenvolvimento e crise de um capitalismo estatalmente regulado37

De acordo com Francisco de Oliveira, a partir dos anos trinta deste século, instaura-se um novo modelo de acumulação "qualitativa e quantitativamente distinto, que dependerá substancialmente de uma realização interna crescente". 38Em outras palavras, trata-se da substituição de um modelo agrário-exportador por um outro que passa a ter na indústria o centro do processo de acumulação.

Essa substituição não foi tão simples, A implementação do novo modelo de acumulação teve que enfrentar três problemas básicos. O primeiro foi o da inadequabilidade do mercado de trabalho frente às novas exigências do modelo de acumulação emergente. O predomínio de relações de trabalho herdadas do modelo agrário exportador ia de encontro com as novas relações de compra e venda da força de trabalho, assim como também com as novas técnicas de produção.

Os outros dois problemas eram, primeiro, a ausência de um setor financeiro capaz de financiar o processo de acumulação industrial e, segundo, a ausência de um setor produtor de bens de capital (máquinas, equipamentos, instalações) e de insumos básicos.

As condições materiais para resolver tais problemas precisariam ser criadas. A burguesia industrial não tinha possibilidades de assumir e resolver as demandas requeridas pelo novo padrão de acumulação emergente. Com efeito, quando se tem em conta que até então a acumulação de capital dependia basicamente da inversão dos lucros gerados pelas empresas, torna-se claro que a burguesia não poderia financiar as modificações estruturais do novo modelo de acumulação.

Sendo assim, a criação desse mercado de trabalho urbano, adequado às exigências do novo modelo de acumulação, foi mediada pela presença ativa do Estado, que cria uma legislação trabalhista compatível com as novas relações de trabalho. Dentro dessa legislação, a instituição de um salário mínimo era de crucial importância. De acordo com Oliveira, a criação do salário mínimo teve um papel extremamente importante no novo modelo de acumulação "que se iniciava ou que se buscava reforçar, por duas razões básicas: de um lado, propiciava o horizonte médio para o cálculo econômico empresarial, liberto do pesadelo de um mercado de concorrência perfeita, no qual ele devesse competir pelo uso dos fatores; de outro lado, a legislação trabalhista igualava reduzindo – antes que incrementando – o preço da força de trabalho". 39

Além de criar o mercado de trabalho, o Estado teve que resolver o problema do financiamento do processo de acumulação. Na ausência de um mercado de dinheiro, as necessidades de financiamento da acumulação, agora voltada para uma realização parcial interna crescente, não podiam ser satisfeitas pela própria burguesia industrial; e isto por duas razões; primeiro, não havia capital-dinheiro ocioso para potenciar o nascimento de uma rede bancária, que pudesse capitalizar os recursos disponíveis em um setor e realocá-los naqueles que demandavam financiamento; segundo, o processo de concentração e centralização de capital industrial era ainda muito frágil, o que impossibilitava a formação de mecanismo de financiamento. Diante desta realidade, somente o Estado poderia financiar o processo de investimento do novo modelo emergente de acumulação. Um dos expedientes utilizados pelo Estado é sobejamente conhecido: o confisco cambial imposto sobre as receitas dos exportadores de café. Assim, através deste confisco, o excedente gerado no setor exportador da economia era transferido para o setor industrial. Além disso, o Estado reestrutura sua rede de bancos oficiais e cria outros, como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE).

Quanto ao setor produtor de bens de capital e de insumos básicos, novamente foi o Estado que teve que criá-lo. Tal como o problema do financiamento, este não poderia Ter sido resolvido pela burguesia industrial. A razão da incapacidade da burguesia para instalar este setor é clara: o capital aí investido tem um tempo de rotação muito elástico; vale dizer: o capital-dinheiro somente é recuperado depois de um longo período de produção e de circulação. A burguesia industrial de então não dispunha de dinheiro suficiente para aplicar em atividades desta natureza, não estava disposta a abrir mão de seu capital-dinheiro para recuperá-lo somente depois de muitos anos.

Assim, somente o Estado poderia realizar as inversões necessárias para criar o setor de produção de bens de capital e de insumos básicos. Para isto, o Estado se valeu de dois caminhos: primeiro incentivou as exportações para gerar as divisas necessárias, com as quais seriam comprados, no exterior, os insumos para as mercadorias que seriam produzidas internamente; e segundo investiu diretamente na produção de máquinas, equipamentos e instalações, energia etc. De sorte que, assim sendo, ao mesmo tempo em que o Estado incentivava as exportações, diversas empresas estatais eram criadas para produzir os insumos básicos requeridos pela economia, tais como energia, telecomunicações, siderurgia e assim por diante.

Dessa forma são criadas as condições materiais para o desenvolvimento do novo modelo de acumulação industrial, que nasce, é claro, pelas mãos do Estado. O Estado é o seu parteiro.

A partir daí a ação estatal assume uma nova forma: além de garantir os pré-requisitos estruturais (defesa da propriedade privada, intervenções cíclicas para corrigir as desfuncionalidades do sistema etc.) para a reprodução do sistema enquanto sistema produtor de mercadorias, sua função clássica, por excelência, passa a criar e recriar, permanentemente, através dos fundos públicos,40 as condições para o processo de acumulação de capital. De Estado gendarme passa a ser Estado interventor.

Assim nasce, portanto, o Estado interventor no Brasil. Em comparação com seus parceiros do capitalismo maduro, o Estado interventor brasileiro guarda identidades e diferenças, que valem a pena ser ressaltadas, uma vez que disto depende a compreensão de como o neoliberalismo ganha, aqui, a força ideológica que assume em nível internacional.

Começando pelas identidades, convém ressaltar que, tanto no Brasil como nas assim chamadas economias centrais, o ,surgimento da ação estatal interventora coincide no tempo. Os anos trinta são seu ponto de partida. Esta coincidência não é apenas uma questão cronológica. Ela se deve à própria natureza internacional do capital, que, ao se desenvolver, prende todas as economias a uma única e mesma lógica: a lógica da acumulação, que obriga que o Estado ponha o capital sob os grilhões da regulação esta tal,41 como também exige do Estado que este, principalmente através da dívida pública, revalorize os capitais improdutivos, que não encontram canais de valorização produtiva. Assim, o Estado é obrigado a assumir funções permanentes de planejamento da economia, não só via produção de bens públicos (educação, saúde, transporte, saneamento, seguridade social etc.), como também sustentar o processo de acumulação por meio da intervenção direta nas políticas de inversões privadas. É esta lógica que está na base do Estado interventor, não importa sua localização geográfica.

Se a lógica que fundamenta a racionalidade do Estado interventor é a mesma, no Brasil e no resto do mundo capitalista, os desdobramentos de sua ação têm particularidades específicas. Nos países do capitalismo maduro, o Estado interventor gozou de um relativo êxito e legitimidade, diante da sociedade como um todo. Na sociedade brasileira, ao contrário, a intervenção estatal foi estruturalmente incapaz de propiciar um mínimo de bem-estar material para a grande maioria da população. 42Diante disso, cabe perguntar o que explica a legitimidade de que desfrutou o Estado interventor no "Primeiro Mundo".

Longe de minorar as desigualdades sociais, o Estado interventor, no Brasil, aprofundou-as cada vez trais. Isto POI-(ILIC ele nasce no Brasil sob uma base econômica herdada do período colonial e, por isso, com uma estrutura extremamente brutal de concentração de renda, o que não aconteceu com os seus congêneres do mundo industrializado. Além disso, aqui, o Estado nasce para criar um modelo de acumulação industrial que não existia e que, por isso mesmo, surge desde o princípio sob uma dupla pressão: criar as condições para o nascimento-desenvolvimento da indústria e promover uma política social voltada para atenuar as desigualdades sociais. Esta é a principal razão que diferencia o Estado interventor no Brasil dos seus parceiros do "mundo desenvolvido"- Aqui o Estado nasce para criar uma sociedade capitalista industrializada; lá, surge quando o capitalismo ingressava em sua terceira revolução tecnológica e, assim, com um modelo de distribuição de renda entre capital e trabalho mais eqüitativo, não marcado pelas desigualdades de renda de um país onde o grosso da população era egresso da escravidão.

No que pese tais diferenças, o fato de o Estado interventor brasileiro e seus congêneres nos países centrais serem marcados por uma mesma racionalidade, tanto aqui como naqueles países o Estado entra em crise pelas mesmas razões: erosão de suas bases de legitimidade e crise fiscal. A crise fiscal decorre da natureza mesma da lógica da produção de mercadorias. Com efeito, é inerente ao sistema produtor de mercadorias produziu uma desigualdade crescente na apropriação da riqueza social. Isto porque o processo de acumulação se converte em um processo em que a apropriação do excedente econômico se faz cada vez mais à custa do trabalho.43A este respeito é bastante ter presente que o desenvolvimento do processo de acumulação leva a que uma parcela cada vez menor deste excedente seja reinvestida em salários. Em conseqüência disso, cresce o número de desempregados, que aumenta na medida em que o sistema procura recuperar a taxa de lucro via aumento da mais-valia relativa, que se faz através da incorporação de tecnologias voltadas para dispensar trabalho vivo. Resultado: crescem a miséria e as desigualdades sociais. O Estado não tem como enfrentar essa dialética inerente ao sistema produtor de mercadorias, pois só pode agir sobre os seus efeitos e não sobre as suas causas. Além disso, os recursos de que dispõe para tanto são cada vez menores diante do aumento das necessidades e das carências sociais. Aliado a isso, o Estado se vê obrigado a sustentar grandes monopólios, para evitar a sua falência e, assim, impedir uma crise de dimensões sociais e políticas imprevisíveis para o sistema. Abre-se, por conta disso, urna crise fiscal permanente, que se expressa numa dívida pública gigantesca, que, em alguns países, chega a representar quase 80% do Produto Interno Bruto.

No caso do Brasil, os efeitos dessa crise fiscal foram bem mais acentuados do que nos chamados países centrais. Aqui, ela representa a falência de um modelo de acumulação que tem no Estado o seu principal financiador. É o que os economistas chamam de crise do padrão de financiamento brasileiro.

Mas isso ainda não é tudo. Além da crise fiscal, assiste-se, hoje, no mundo todo, a uma erosão das bases políticas de sustentação do Estado interventor. Referindo-se aos países europeus, essas bases do Estado do bem-estar social vêm sendo erudidas, argumenta Offe, por conta da "desorganização de vastas, relativamente estáveis e abrangentes comunidades de interesse econômico, filiação associativa, valores culturais e estilos de vida, [que] constituem a chave para a compreensão adequada do enfraquecimento geral dos comprometimentos de caráter solidário"44 que dão sustentação ao Estado do bem-estar.

As coisas não são muito diferentes no Brasil. Aqui, a descrença com o Estado interventor é alimentada por campanhas políticas da direita populista, que vê na intervenção do Estado a raiz de todos os males sociais: inflação, corrupção, ineficiência, desmandos etc. Por conta disso, passam-se a advogar idéias contra a ingerência estatal abusiva na economia e na sociedade como um todo, ao mesmo tempo em que se põem em ação políticas voltadas para desestatização da sociedade. O governo de Fernando Henrique Cardoso prega abertamente a necessidade de se passar de uma fase estatal do desenvolvimento econômico e social para uma outra fase, na qual a sociedade possa comandar, a partir de si mesma, ações para combater a miséria, a fome e a marginalidade social.

Essa política liberalizante não começou no governo de FHC . Ela tem antecedentes históricos, que guardam semelhanças muitos próximas com o que vem ocorrendo nos chamados países centrais. Aqui, como lá, a lógica para superar a crise é a mesma: desmantelamento do aparato burocrático do Estado,, desverticalização produtiva, flexibilização do mercado de trabalho e, desregulação da economia.

No plano das idéias, esses antecedentes históricos remontam ao ano de 1989, quando em novembro daquele ano reuniram-se, em Washington, funcionários do governo norteamericano e dos organismos financeiros internacionais ali sediados (FMI, Banco Mundial e BID), para fazer uma avaliação das reformas econômica empreendidas na América Latina.

"Nessa avaliação [...] registrou-se amplo consenso sobre excelência das reformas iniciadas ou realizadas na região [...]. Ratificou-se, portanto, a proposta neoliberal que o governo norte-americano vinha insistentemente recomendando [...] como condição para conceder cooperação financeira externa, bilateral ou multilateral".45

As conclusões e recomendações dessa reunião passaram a ser conhecidas como o Consenso de Washington. Suas propostas abrangiam dez áreas: disciplina fiscal, priorização dos gastos públicos; reforma tributária; liberalização financeira; regime cambial; liberalização comercial; investimento direto estrangeiro; privatização; desregulação e propriedade intelectual.

Essas propostas podem ser resumidas em dois pontos básicos: redução do tamanho do Estado e abertura da economia. Em síntese, a política econômica deve ser feita em nome da soberania do mercado autoregulável nas suas relações econômicas internas e externas.

Foi nessa direção que o governo Fernando Collor se desenvolveu. Com efeito, é com ele que tem início o processo de abertura da economia ao mercado internacional, via redução das barreiras alfandegárias. O programa de privatização e de desmonte do Estado faz parte da agenda Collor, como precondição para o combate da inflação. Além disso, é no seu governo que é lançado o programa de reestruturação produtiva, segundo o qual as empresas deveriam procurar um processo de gestão pela qualidade e produtividade, único caminho capaz .de torná-las mais competitivas para entrarem no chamado mundo desenvolvido, "com colaboradores mais felizes e engajados, numa relação em que todos - patrões, empregados e a sociedade - sejam vencedores O Primeiro Mundo exige qualidade como premissa; ser certificado pelo ISO é, sem dúvida, o melhor passaporte para nele ingressar".46

A falência política do governo Collor não muda as premissas básicas do seu programa. O governo de Fernando Henrique Cardoso mantém a mesma agenda: acabar com a inflação, privatizar, reformar a Constituição para flexibilizar as relações entre o Estado e a sociedade, assim como as relações entre capital e trabalho. Corno declarou Weffort na imprensa, o Brasil está saindo de uma fase estatal para ingressar em uma outra em que se exige uma menor presença do Estado na sociedade. Sendo assim, não seria exagero afirmar que os governos de Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso adotam, na sua essência, as propostas preconizadas pelo Consenso de Washington.

Tais propostas, nas palavras de um liberal esclarecido, que fez carreira diplomática no governo, e que "acha que chegou a hora de botar a boca no trombone"; ais propostas são "uma receita de regressão a um padrão econômico pré-industrial caracterizado por empresas de pequeno porte e fornecedoras de produtos mais ou menos homogêneos. modelo é o proposto por Adam Smith e referendado com ligeiros retoques por David Ricardo faz dois séculos". Mais diante lê-se que tal modelo, que prega a redução do Estado função estrita de manutenção da lei e da ordem econômica, "poderia ser válido no mundo de Adam Smith e David Ricardo, em mercados atomizados de pequenas e médias empresas gerenciadas por seus proprietários e operando em condições de competição mais ou menos perfeitas; universo em que a mão-de-obra era vista como uma mercadoria, a ser engajada e remunerada exclusivamente segundo as forças da oferta e da demanda; uma receita, portanto, de há muito superior e que pouco tem a ver com os modelos modernos de livre empresa que se praticam, ainda que de formas bem diferentes, no Primeiro Mundo.47

Indignações de um liberal no fim da vida? Seja lá como for, uma coisa é certa: o Brasil caminha com "botas de sete léguas" em direção a uma economia cada vez mais marcada e dominada pela lógica do mercado.

Para uma economia em que a fase estatizante de seu desenvolvimento é considerada superada e que, por isso, é chegado o momento da desestatização, da volta às leis do mercado, como princípio regulador da economia e da sociedade como um todo. Nesse sentido, pode-se dizer que o receituário neoliberal é uma realidade no Brasil.

Se o Brasil conseguirá ou não implementar esse programa neoliberal em todas as suas conseqüências, é uma questão de natureza empírica. Vale dizer: ela não pode ser antecipada teoricamente. Entretanto, a teoria que dá sustentação a esse programa de ação pode ser julgada, que é o que se pretende fazer a partir de agora, de modo que, assim, se cumpram as exigências expositivas adiantadas no início deste texto.

4.1 Neoliberalismo: o mercado como controle do poder político

De acordo com Hobbes e Locke, os homens nascem com certos direitos (direito à vida, à liberdade e à felicidade), que são imanentes à sua própria natureza. Nascem com eles, independentemente da constituição de qualquer comunidade política e, por isso mesmo, tais direitos não podem ser violados pelo Estado, que detém o poder legítimo de exercer a força para obter a obediência dos indivíduos. Ao contrário, devem ser respeitados e reconhecidos pelo poder estatal.

Essa é a base sobre a qual se erigem as teorias do contrato social, que tomam a subjetividade como princípio fundante do agir e do pensar do homem. É a partir daí que emerge a pergunta pelas condições de possibilidades da sociabilidade, isto é, das condições de possibilidades da unificação dos indivíduos num corpo político, que seja resultado da vontade de todos os indivíduos. É assim que a associação pactual surge como questão central desta nova ciência. Sua tarefa é fundar uma norma ética q, que seja expressão de uma vida livre, edificada na igualdade e na fraternidade entre os homens.

No seu sentido mais geral, as teorias contratualistas inauguram uma nova forma de pensar, segundo a qual "o único fundamento do homem é agora ele mesmo, que se descobre em sua absoluta individualidade e dignidade. Se é assim", continua Oliveira, "então na ordem política natural prévia, que seja a suprema realização do homem, mas antes a questão do político surge ao homem moderno como instância que é condição de possibilidade da subjetividade. Portanto, a comunidade deixa de ser algo natural para tornar-se algo produzido pelo homem, e a primeira pergunta neste contexto é a das condições de possibilidade da comunidade enquanto tal; esta é precisamente, a pergunta pela soberania, tema central da filosofia política modema".48

Entretanto, por trás da descoberta da subjetividade como princípio fundante da sociabilidade, repousa uma concepção individualista de sociedade, Uma concepção que defende a idéia de que primeiro existe o indivíduo, com seus interesses e carências, e depois a sociedade, como resultado de um pacto que eles estabelecem para viverem sob as leis instituídas politicamente. A sociedade aparece, assim, não mais como algo natural, como o era no pensamento antigo, mas, sim, como algo criado pelos indivíduos, para satisfazer suas carências e interesses privados. Tudo isso é possível porque, como explica Bobbio, "existe na natureza uma lei que atribui a todos os indivíduos alguns direitos fundamentais de que o indivíduo apenas pode se despir voluntariamente, dentro dos limites em que essa renúncia, concordada com a análoga de todos os outros, permite a composição de uma livre e ordenada convivência".49

Com o surgimento da EPC, essa concepção individualista de sociedade assume uma dimensão fundante. Para esta ciência, todos os indivíduos nascem com carências e desejos que precisam ser satisfeitos. E ninguém melhor do que o próprio indivíduo para satisfazê-los, pois, como dirá Adam Smith, todos os homens nascem com desejos isentos de paixão, que "herdamos do seio materno e que nunca nos abandonará até a sepultura. Em todo espaço de tempo que medeia entre o berço e a sepultura, dificilmente haverá um só momento em que uma pessoa esteja tão perfeita e completamente satisfeita com sua situação, que não deseje alguma mudança ou melhoria, de qualquer tipo que seja".50

É a partir daí que a EPC vai fazer do interesse próprio, do egoísmo, o centro a partir do qual se tece e se constrói a sociabilidade, se edifica a sociedade. O interesse próprio, enquanto qualidade inata dos indivíduos, é o melhor meio para assegurar a coesão do todo social, pois cada um, ao cuidar de si mesmo, termina por beneficiar o outro, na medida em que aprende que sua atividade e a satisfação de suas carências dependem da atividade e da satisfação dos desejos e carências dos outros indivíduos. De sorte que, assim sendo, porque cada um só cuida de si próprio e nenhum do outro, todos realizam, sob os auspícios de uma razão invisível, o bem comum de todos, o interesse geral da sociedade.

Essa razão invisível, quase diabólica e que constrói o todo social a partir do resultado dos encontros e dos desencontros de interesses, é o mercado. Ele surge como algo natural, porque não foi produzido de forma intencional, mas, sim, como produto de certa propensão ou tendência natural, que empurraria a todos os indivíduos para viverem em uma sociedade em que suas necessidades só podem ser satisfeitas pelo comércio, pela troca. Este é o espaço, por excelência, da realização da liberdade dos indivíduos. Por conta disso, o Estado deve interferir o mínimo possível na liberdade dos indivíduos. Afinal de contas, foi o esforço individual de cada um, no sentido de melhorar a sua própria condição, como diria Adam Smith, que deu sustentação ao avanço da Inglaterra em direção ao progresso e ao desenvolvimento social.

É daí que parte a teoria neoliberal para defender a idéia de que o mercado é o único meio para a obtenção da liberdade política. Isto porque "a ameaça fundamental à liberdade", diz Friedman,

"consiste no poder de coagir, esteja ele nas mãos de um monarca, de um ditador, de uma oligarquia ou de uma maioria momentânea. A preservação da liberdade requer a maior eliminação possível de tal concentração de poder e a dispersão e distribuição de todo o poder que não puder ser eliminado - um sistema de controle e equilíbrio. Removendo a organização da atividade econômica do controle da autoridade política, o mercado elimina essa fonte de poder coercitivo, Permite, assim, que a força econômica se constitua num controle da poder político, então num reforço.51

    1. Os conceitos centrais da teoria neoliberal

A partir do que foi exposto, pode-se afirmar que o mercado desempenha um duplo papel na promoção de uma sociedade livre. De um lado, porque garante a liberdade econômica, que é parte da liberdade entendida no seu sentido amplo e, portanto, um fim em si própria. Em segundo lugar, o mercado é um instrumento para a obtenção da liberdade política. Daí a necessidade, para a teoria neoliberal, de mostrar que o mercado é um mecanismo intranscendível no processo de produção e reprodução da vida social. É o que Friedman deixa claro quando admite que, nas sociedades contemporâneas, 4 g a necessidade de coordenação, para usar de maneira totalmente conveniente as oportunidades oferecidas pela ciência e tecnologia modernas, é muito maior. Literalmente, milhões de pessoas estão envolvidas em fornecer diariamente um ao outro o pão necessário - além dos automóveis. O desafio para quem acredita na liberdade consiste em conciliar essa ampla interdependência com a liberdade individual".52

Para defender esta idéia, o neoliberalismo parte do mercado como a realidade empírica central e a partir daí vai contrapor dois conceitos-limite,53 um positivo, o conceito de mercado perfeito ou de concorrência perfeita, e um negativo, o conceito de "caos", que serve, segundo Oliveira,54 para exprimir a destruição do mercado. Estes conceitos, de acordo com a leitura de um filósofo, "não são em si mesmos conceitos empíricos, mas construídos a partir da experiência empírica do mercado na intenção de demonstrar o caráter intranscendível do mercado numa economia complexa... Trata-se, portanto, de idealizações com a finalidade de entender melhor a realidade empírica de onde se parte". 55

Mas, o que se deve entender por mercado perfeito ou por concorrência perfeita? É um modelo de concorrência, em que cada agente econômico é tão pequeno em relação ao mercado que não pode exercer nenhuma influência sobre o preço das mercadorias ofertadas. Além disso, pressupõe-se que o produto de qualquer vendedor seja homogêneo quando comparado ao produto de qualquer outro vendedor, de tal forma que os consumidores são indiferentes à empresa na qual eles compram suas mercadorias. A essas características ideais do mercado perfeito sornam-se duas outras: livre mobilidade dos recursos, de tal sorte que qualquer empresa possa entrar e sair do mercado como resposta aos impulsos monetários; e perfeito conhecimento, da parte dos consumidores, produtores e proprietários de recursos, do fato de um mercado ser perfeitamente competitivo, de modo que obedeça as características delineadas anteriormente. Um perfeito conhecimento do mercado exige que não só se conheça o presente, como também o futuro. Sem esse conhecimento onisciente, a concorrência não poderá prevalecer.

A teoria neoliberal usa esse conceito de mercado perfeito para contrapô-lo, assim, ao conceito de "caos", que exprime a destruição do mercado. Usa aquele conceito, portanto, para julgar que qualquer mecanismo de coordenação consciente da atividade econômica - quer se expresse por meio de uma direção centralmente planejada, como foi o caso do socialismo real, quer através de uma regulação socialmente dirigida do mercado através do chamado Estado do bem-estar social -, é incapaz de promover, com eficiência, a produção e a distribuição da riqueza. E, o que é pior, para esta teoria, quaisquer mecanismos de coordenação consciente do mercado significam concentração de poder nas mãos de um grupo particular de pessoas e, assim, uma ameaça fundamental à liberdade. Somente em uma economia de mercado "o consumidor é protegido da coerção do vendedor devido à presença de outros vendedores com quem pode negociar. O vendedor é protegido da coerção do consumidor devido à existência de outros consumidores a quem pode vender. O empregado é protegido da coerção do empregador devido aos outros empregadores para quem pode trabalhar, e assim por diante. E o mercado faz isso, impessoalmente, sem nenhuma autoridade centralizada".56

Além de tudo isso, a complexidade das sociedades modernas contemporâneas impede que qualquer indivíduo ou grupo particular de pessoas possa coordenar as diversas atividades de milhões de pessoas. Ao contrário do que se poderia pensar, tentar impor uma ordem à aparente desordem do mercado seria produzir a desordem e o caos, pois ninguém poderia dispor de um conhecimento tal que permitisse uma coordenação direta de todas as necessidades dos indivíduos.

É nesse sentido que se diz que o mercado emerge como mecanismo capaz de suprir a falta de conhecimentos. Isto porque qualquer indivíduo tem um conhecimento mais completo e perfeito de suas atividades específicas do que qualquer plano de coordenação imposto de fora por uma autoridade planejadora. Se cada indivíduo ou empresa busca apenas defender o que acredita ser os seus próprios interesses, esse comportamento acaba por levar à formação de uma ordem espontânea, dotada de uma lógica interna consistente e capaz de garantir uma alocação eficiente dos recursos da economia.

 4.3. Teoria neoliberal: uma teoria autocontraditória

Para que o mercado possa cumprir a sua função de alocação eficiente dos recursos da economia (terra, capital e trabalho) e, assim, alcançar um ponto ótimo de equilíbrio, a interferência do Estado deve ser a mínima possível. Cabe ao poder estatal unicamente a função de determinar as regras do jogo, interpretá-las e fazer vigorar as regras estabelecidas. Assim, cabe ao Estado proteger a liberdade dos indivíduos, preservar a lei e a ordem, reforçar os contratos privados e promover o mercado competitivo.57 Em síntese, desde que o Estado cuide dos direitos de propriedade e reforce os contratos privados, o mercado, por si só, promoverá a distribuição eficiente dos recursos e. assim, o bem-estar geral da sociedade.

Para admitir que essa função vigilante do Estado é suficiente para garantir o automatismo auto-regulativo do mercado e, assim, o equilíbrio geral dos preços e quantidades ofertadas, os neoliberais teriam que demonstrar as condições automáticas de possibilidade desse equilíbrio. Isto eles não conseguem fazer. E não o conseguem porque sua teoria é autocontraditória.58 Com efeito, o equilíbrio só pode se realizar na medida em que todos os agentes econômicos possuam um perfeito conhecimento do mercado. Entretanto, para criticar qualquer tipo de coordenação imposta de fora à economia, os neoliberais alegam que ninguém pode deter um conhecimento dessa natureza, e que, por esta razão mesma, só o mercado poderá coordenar as atividades econômicas de milhões de pessoas, de sorte que, assim, para que seja possível o equilíbrio de mercado, pressupõe-se o que ninguém é capaz de possuir: um perfeito conhecimento do mercado. Desse modo, a teoria neoliberal se autodestrói; desdiz o que diz.

Além disso, Oliveira reconhece outras restrições à teoria neoliberal, que comprometem toda a sua estrutura argumentativa. Trata-se do fato de que, diz ele, "o mercado supre a falta de conhecimento, mas jamais fornece propriamente informações, pois ele é simplesmente um mecanismo que transmite reações: pelo mercado sabemos que atividade cortar, mas não que atividade desenvolver. O mercado é , assim, um simples sistema de reações ex-post, e por esta razão mesma não pode haver no mercado uma tendência ao equilíbrio, uma vez que tal tendência pressupõe a possibilidade de derivar indicações confiáveis de ação ex-ante. Realmente, a concorrência perfeita pessupõe um perfeito conhecimento do futuro tanto quanto do presente. 60

Implodem-se, assim, as bases sobre as quais se alicerça toda a estrutura conceitual de que se servem os neoliberais para defender o mercado como único mecanismo promotor de crescimento e de desenvolvimento social. Consequentemente, o programa de ação proposto pelos neoliberais fica, no mínimo, comprometido teoricamente. O realismo de mercdo, como solução para a crise do Estado interventor, não pode ser legitimado no plano da teoria e, assim, também, no plano ideológico.

4.4 A base normativa da teoria neoliberal

Se a teoria neoliberal é uma teoria autocontraditória, isto deveria ser suficiente para rejeitá-la, in totum. Entretanto, ela permanece exercendo uma grande influência, não só sobre a direita, como também sobre a esquerda, nos seus mais diversos matizes. A razão disso deve-se, talvez, á falta de esperança e descrença com as políticas do estado interventor, cuja crise assume, hoje, uma dimensão desmotivadora em relação a quaisquer programas de abrangência coletiva. Assim, o grande vazio produzido pelo fim do chamado socialismo real e a crise do modelo social-democrático de produção abrem espaço para aqueles que propõem a liberdade de mercado como a única alternativa para enfrentar os problemas atuais de emprego, seguridade, saúde, educação, saneamento, transporte etc.

Em razão disso, faz-se necessário explicitar a base normativa da teoria neoliberal, para aí perguntar, em seguida, se esta base é capaz de responder às exigências de uma vida verdadeiramente livre, na qual o homem possa ser senhor de sua própria vontade e, assim, sujeito consciente de seu pensar e de seu agir. Em outras palavras, seerá que o mercado é realmente capaz de realizar a liberdade? Será que ele pode de fato se constituir na instância, por excelência, das condições de possibilidades para a realização de uma vida verdadeiramente ética?

Para tanto, faz-se necessário explicitar, ainda que em rápidas pinceladas, os pressupostos éticos implícitos na teoria neoliberal. Tais pressupostos, como já deve Ter ficado claro, são derivados da EPC, para quem o mercado era considerado um produto natural do desenvolvimento da natureza humana. Realmente ao tratar da origem da divisão do trabalho, Smith esclarece que a divisão do trabalho,

"Da qual derivam tantas vantagens, não é, em sua origem, o efeito de uma sabedoria humana qualquer, que preveria e visaria a essa riqueza geral à qual dá origem. Ela é conseqüência necessária, embora muito lenta e gradual, de uma certa tendência ou propensão existente na natureza humana que não tem em vista essa utilidade extensa, ou seja: a propensão a intercambiar, permutar ou trocar uma coisa pela outra... Essa propensão encontra-se em todos os homens, não se encontrando em nenhuma outra raça de animais, que não aprecem conhecer nem essa nem qualquer espécie de contratos".61

O homem é considerado, assim, uma animal que produz mercadorias, coisas para serem trocadas, comercializadas. Por isso, aos olhos de um observador imediato, as sociedades modernas, onde dominam as relações mercantis, são vistas como um grande bazar. Todos os indivíduos se reportam uns em relação aos outros somente como proprietários de mercadorias, que chegam ao mercado para vender seus produtos, e através desta venda obter aqueles que são necessários à satisfação de suas necessidades, sejam elas provenientes do estômago ou da fantasia. Só através do mercado podem os indivíduos obter o que é necessário à sua sobrevivência, visto que tudo o que existe para este fim existe na forma de mercadoria. Portanto, a troca de mercadorias emerge, assim, como elemento constituidor das relações entre os indivíduos, pois cada um só é considerado pelo outro na medida em que se apresenta como meio para a satisfação de suas necessidades. Na medida, pois, em que tem alguma coisa para permutar com os demais indivíduos.

Se todo e qualquer indivíduo só é considerado na condição de proprietário de mercadorias, esta qualidade transforma todos os membros da sociedade em pessoas livres e iguais. A igualdade é uma exigência mesma imposta a todos os possuidores de mercadorias. Com efeito, para que a troca possa se constituir na relação social dominante, os proprietários de mercadorias precisam ser reconhecidos reciprocamente como tais. A troca mesma encerra em si as condições de possibilidade para isto. De fato, para que as diferentes mercadorias possam ser permutadas entre si, elas têm que se referir umas às outras como objetos de valores iguais.62 Sem esta condição, a troca desembocaria num roubo generalizado, cujo resultado seria um jogo de soma zero. Com efeito, se um comprador qualquer vende sua mercadoria acima de seu valor, o que ele ganha poderá perder na condição de comprador. Afinal de contas, ele só pode assumir a função de vendedor se exerce a de comprador, pois ele é também um consumidor e. enquanto tal, só poderá realizar seu consumo, como todo mundo o faz, através do mercado. Consequentemente, como todo e qualquer indivíduo é, sirnultaneamente, comprador e vendedor, o resultado da operação de vender acima do valor atinge a todos, o que termina por levar que as mercadorias sejam vendidas e compradas de acordo com o principio da equivalência. De sorte que, assim sendo, a equivalência dos valores permutados acaba por se impor como exigência do próprio processo real de troca.

É assim que o princípio da equivalência se transforma no fundamento que legitima a própria existência da sociedade produtora de mercadorias. Com efeito, é este princípio que dá ao indivíduo certa segurança de que ele encontrará, no mercado, um equivalente, em valor, para o que produziu; que ele poderá continuar a produzir para o mercado, porque aqui, como ele, encontrará outros compradores e vendedores dispostos a permutarem os produtos de seu trabalho com o dele. Consequentemente, todos, portanto, se apresentam como iguais porque o que cada um possui, conseguiu-o na extensão do valor do que deu em troca.63

A troca não exige apenas a igualdade entre os possuidores de mercadorias. Igualmente, ela requer que eles sejam considerados pessoas livres. Tal exigência é reportada por Marx nos seguintes termos: "ainda que o indivíduo A sinta a necessidade de possuir a mercadoria do indivíduo B, não se apodera dela pela violência, nem vice-versa, senão que ambos se reconhecem como proprietários de mercadorias, como pessoas cuja vontade está nas suas mercadorias. Neste ponto aparece a noção jurídica da pessoa e, na medida em que se acha contida naquela, a de liberdade".64

Levando um pouco mais longe esta exposição das determinidades do processo de troca, percebe-se que o único poder que leva os indivíduos a se relacionarem entre si é o proveito próprio, a vantagem particular, os seus interesses privados. Cada indivíduo se serve do outro para satisfazer a si próprio. Por conta disso, a reciprocidade assume a forma de um relacionamento social fundado exclusivamente na lei do intercâmbio das mercadorias. Como diz Marx,

"O indivíduo A satisfaz a necessidade do indivíduo B, por meio da mercadoria "a", somente porque o indivíduo B satisfaz a necessidade do indivíduo A mediante a mercadoria "b"... Cada um serve ao outro, para servir-se a si mesmo; cada qual se serve do outro, e reciprocamente, como um meio. Na consciência de ambos indivíduos estão presentes os seguintes pontos: (1) que cada qual alcança seu objetivo somente na medida em que serve ao outro como meio; (2) que cada um se torna um meio para o outro (ser para o outro) somente enquanto fim para si (ser para si); (3) que é um fato necessário à reciprocidade segundo a qual cada um é simultaneamente [...] Essa reciprocidade é o pressuposto, condição do intercâmbio, porém enquanto tal é indiferente a cada um dos sujeitos do intercâmbio."65

Segue-se daí que cada indivíduo só será reconhecido como tal na medida em que ele é, de alguma forma, um produtor de mercadorias, um proprietário de coisas que tenham valor de troca. Esta é uma condição que se impõe a todos, pois só como representantes de mercadorias, cada um poderá participar do mercdo e, assim, ter acesso aos bens e serviços necessários à sua existência individual e social. Ninguém, por mais amor que tenha à humanidade, pode deixar de se comportar como um comerciante. Renunciar a isto é condenar-se a viver de esmolas ou da caridade alheia. Mesmo neste caso, ele não poderia deixar de se comportar como um comerciante, pois, como diz Smith, "a maior parte dos desejos ocasionais do mendigo são atendidos da mesma forma que os de outra pessoas, através d negociação, de permuta ou de compra. Com o dinheiro que alguém lhe dá, ele compra alimento. A roupa velha que um outro lhe dá, ele a troca por outras roupas velhas que lhe servem melhor, por moradia, alimento ou dinheiro, com o qual pode comprar alimento, roupas ou moradia, conforme tiver necessidade".66

Neste exemplo Smith deixa claro que cada indivíduo só pode entrar em contato com os outros na medida em que ele é um proprietário de mercadorias. Por isso o mercdo se constitui como o lugar, por excelência, no qual e através do qual se tece a malha de relações sociais. Ele se apresenta assim como o fundamento mesmo da sociabilidade. Em conseqüência, as relações entre os indivíduos só existem na medida em que são mediadas pela troca de mercadorias. Estas são o elo de ligação entre eles e, como tal, transformam o poder que cada homem exerce sobre os demais na extensão do seu poder de compra.67 Por conta disso, as diferenças sociais entre os indivíduos passam a ser vistas unicamente como diferenças quantitativas, como resultantes do fato de que alguém possui mais dinheiro do que outro.68 Com efeito, se dois consumidores entram num supermercado, toda diferença que possa existir entre eles desaparece a partir da lporta de entrada. Para o supermercado, o que conta é se eles dispõem de dinheiro para pagar o preço da mercadoria que desejam comprar. É o que observa Marx, quando diz que "um trabalhador que compra uma mercadoria por 3 sh., se apresenta ante o vendedor, na mesma função, na mesma igualdade - sob a forma de 3 sh. - que um rei que faz a mesma compra. Se dissipa toda a diferença entre eles. O vendedor, enquanto tal, aparece somente como possuidor de uma mercadoria cujo preço é de 3 sh., de modo que ambos são perfeitamente iguais".69

Segue-se de tudo isto que a troca de mercadorias é o fundamento mesmo da sociabilidade. Enquanto tal, ela exige que todos os indivíduos sejam representantes/produtores de valores de troca, o que os reduz a uma igualdade abstrata meramente mercantil: cada um vale pelo que tem, isto é, as pessoas só são consideradas na condição de consumidores, de tal forma que todos valem quanto pesa o volume do que carregam em seus bolsos. Aos olhos do vendedor, cada consumidor é tão importante quanto qualquer outro. Não lhe importa a cor, a raça, o sexo, a origem social, ou qualquer outra diferença. O que conta é o que ele traz na carteira: seu dinheiro. Assim, o dinheiro apaga todas as diferenças entre as pessoas, para consideraras unicamente como consumidoras/vendedoras. E não só isto. É necessário que todos sejam livres e que possam gozar de sua liberdade de comprar e vender, de poder dispor do que possuem para exercerem suas funções mercadológicas e, assim, obedecer unicamente às leis de mercado.

E daí que partem os neoliberais para defender a idéia de que o mercado é o melhor caminho para a sociedade alcançar a felicidade e a liberdade. Afinal de contas, numa economia de livre mercado, ninguém estaria sujeito a nenhuma autoridade despótica que dissesse às pessoas o que elas deveriam fazer. É suficiente que os agentes econômicos consultem os seus próprios interesses para encontrar a felicidade, a liberdade e a igualdade. Por isso, os neoliberais vão alegar que tais valores, que todo e qualquer ser humano busca, só podem ser alcançados numa sociedade dominada por relações mercantis. Mas é precisamente nisto que reside o caráter minimal desta ética, que, de acordo com Oliveira, tem como imperativo "a efetivação do mercado, que toma em princípio toda ética impossível..." Isto assim acontece porque, argumenta Oliveira, "o pressuposto da ética é a ação consciente e livre do indivíduo através da qual ele toma posição a respeito das coisas e das pessoas, em última instância a respeito de si mesmo e de seu mundo; uma ação que não é predeterminada em relação ao que é ou pode ser feito, numa palavra, um processo não-coercitivo de autoexteriorização aberto e espontâneo". Ao contrário disso, na teoria neoliberal, continua argumentando Oliveira, "a liberdade é produto de um mecanismo inconsciente, de um automatismo que libera o homem da deliberação a respeito das razões legitimadoras de seu agir e sobretudo do engajamento pessoal a partir de razões". Assim, ele conclui dizendo que, "no pensamento da economia neoclássica é o automatismo infalível que garante a liberdade, fazendo da ética algo inútil."70

4.5. Para uma crítica ética da ética neoliberal

O parágrafo anterior registrou o confronto de duas posturas éticas: contra o egoísmo ético, que faz do mercado o fundamento da liberdade, se contrapôs uma ética que vê a liberdade como uma ação livre e consciente dos indivíduos de poderem dispor de sua vontade. Uma postura ética que tem como pressuposto a ação consciente e livre dos indivíduos, através da qual eles tomam posição a respeito das coisas e das pessoas. Uma postura ética, portanto, que nega a submissão dos indivíduos às forças cegas e incontroláveis do mercado, que se impõem a todos como uma fatalidade, que escapa a seu autocontrole.

Entretanto, essa reflexão crítica dos pressupostos da teoria neoliberal poderá cair no vazio simplesmente porque se poderia argumentar dizendo que, aqui, o que se tem são duas posturas éticas e que, por esta razão mesma, caberia ao indivíduo escolher aquela que acha que é a correta, o que, convenha-se, não é de todo um mal. Afinal de contas, não há vida ética se se retirar dos indivíduos a capacidade de escolher, de decidir. Mas não é isso o que está em jogo, O que se tem em mente é se este confronto não poderia desembocar numa relação "mau infinito", justamente porque as argumentações de ambas posturas poderiam se desenrolar num jogo de opiniões, onde não haveria nenhum critério último de julgamento capaz de dar razão a nenhuma delas. Portanto, não haveria nenhuma base racional a partir da qual os indivíduos pudessem tomar uma posição segura sobre aquelas duas posturas éticas.

Essa pretensa aporia se desfaz tão logo se descobre que a ciência econômica trabalha com um tipo de racionalidade que dispensa todo e qualquer julgamento de valor. Trata-se de um tipo de procedimento metodológico que dispensa toda e qualquer consideração sobre problemas éticos, como condição de possibilidade para a construção de um saber científico.

Realmente, o conhecimento científico trabalha com um conhecimento hipotético e que, por esta razão, é um conhecimento que não tem a pretensão de dizer o que é o real, isto é, de perguntar pelas razões últimas que fazem do real o que ele o é enquanto tal. Vale dizer, o que preocupa as ciências não é a pergunta pelo sentido do real, mas, sim, estabelecer procedimentos metódicos para dele se apropriar e, assim, poder manipular a realidade para resolver os problemas práticos que o homem enfrenta no cotidiano de suas vidas. Neste sentido, não interessa a este tipo de racionalidade perguntar pela razão de ser dos problemas com que a humanidade se depara, mas, sim, descobrir meios para administrar e tentar resolver tais problemas. Tudo se passa mais ou menos assim: um motorista que dirige um carro de passeio não quer saber e nem lhe interessaria saber o que é um carro; quer saber como ele deve proceder para fazê-lo andar e, assim, poder desfrutar do prazer proporcionado pelo passeio.

Pode-se entender agora por que este tipo de racionalidade produz uma espécie de conhecimento que é sempre condicional um conhecimento que parte de algo não-demonstrável para, a partir daí, derivar suas sentenças teóricas. Portanto, como esclarece Oliveira, "se trata de urna dedução lógica de sentenças a partir de sentenças ‘postas axiomaticamente' num sistema de sentenças sintático-semânticas".71 Trata-se daquele tipo de procedimento adotado pela ciência econômica que, partindo do mercado como algo dado e natural, constrói, a partir deste pressuposto, que em nenhum momento é submetido a qualquer tipo de questionamento ou julgamento, suas sentenças para explicar a realidade.

Ora, uma ciência que trabalha com pressupostos axiomáticos, não-demonstráveis, cujas sentenças são sempre de caráter provisório, não pode, por isto mesmo, chegar a nenhum saber seguro sobre o que fala. Por isto mesmo, não pode oferecer nenhum critério de julgamento capaz de fundamentar suas sentenças. Aliás, é próprio das ciências modernas afastar qualquer julgamento de valor de seus enunciados, pois a presença de sentenças valorativas tiraria o seu caráter de ser um saber científico, um saber isento de opiniões e de valores. Portanto, neste horizonte de conhecimento, não se põe a questão da diferença da realidade como ela é e como ela deveria ser. Isto é próprio da racionalidade econômica que, segundo Oliveira, "se autocompreende como uma racionalidade exclusivamente empírica, um reino de verdade isento de qualquer valoração".72

Diante disso, os neoliberais não têm como sustentar, como diz Milton Friedman, que só em uma economia de livre mercado se pode assegurar a liberdade humana. Eles não têm como demonstrar este seu julgamento de valor. E, o que é pior: se tentassem fazer isto, teriam que negar as premissas metodológicas que tomam possível a construção do saber econômico, enquanto saber isento de valores.

Sendo assim, o confronto entre as duas posturas éticas, que parecia caminhar para um impasse, perde soa razão de ser. Principalmente agora quando se sabe que a ciência econômica exclui de seu campo de saber qualquer tipo de valoração, qualquer julgamento de valor, o que faz da ética algo inútil.

Muito embora a economia negue qualquer postura ética, é preciso continuar investigando se o mercado pode ser considerado como pressuposto necessário para a realização da liberdade. Por conta disso, é-se obrigado a perguntar pelo significado do conceito de liberdade.

Para isto, e considerando que as ciências se afirmam como um saber isento de valoração, só há um caminho: assumir a racionalidade do discurso filosófico. Aqui reside a dificuldade maior, pois o que está em jogo é o julgamento de um saber por outro, na medida em que se assume, a partir de agora, o discurso filosófico para avaliar criticamente a afirmação da teoria neoliberal de que o mercado é condição indispensável para a realização da liberdade. Ora, um saber que pretende submeter um outro ao julgamento da razão deverá ser um saber seguro de si mesmo, um saber capaz de dar conta de si mesmo. Se a filosofia pretende ser o tribunal da razão, ela terá que ser capaz de demonstrar a validade de suas sentenças, ser capaz de legitimar seu saber como um saber que se sabe que é. É neste sentido que se diz que a filosofia é autoconhecimento da própria racionalidade humana e, assim, o que é próprio do seu "jogo de linguagem" é "a questão da validade, o que significa que ela levanta a questão dos critérios, da medida última, das regras e dos procedimentos para se estabelecer a validade dos conhecimentos, ou seja, numa palavra, filosofia tem a ver com fundamentação e, mais radicalmente ainda, com fundamentação última...".73

Mas a filosofia não é tão-somente lógica, fundamentação. Ela é também conhecimento das determinidades do agir do homem, da vida humana. Neste sentido ela é um tipo de atividade intelectual preocupada com as produções do homem, através das quais ele se conquista como homem, na medida em que sua vida depende de sua própria atividade criativo-produtiva. Quando a filosofia pergunta por este mundo criado pelo homem, sua preocupação básica é a de saber se as instituições econômicas, políticas, sociais, jurídicas etc., enquanto produto daquela atividade, são capazes de realizá-lo como ser verdadeiramente livre. É o que faz Hegel na sua Filosofía do Direito. Tendo demonstrado na Ciência da lógica, enquanto lugar específico de demonstração da validade das categorias que dizem o que é o real, tendo demonstrado aí que o homem é um ser da liberdade, Hegel, na Filosofia do Direito, vai investigar como o homem conquista esta liberdade nas diversas instituições da vida social: no direito, na moral, na política, na economia e assim por diante. 74

Sabendo-se que a filosofia é um tipo de saber que se sabe como saber, como ela, então, pensa a economia e, assim, as condições de possibilidade desta esfera da vida se constituir como mediação necessária da liberdade do homem? Isto permite tratar, filosoficamente, os pressupostos implícitos na teoria neoliberal, ou seja: sua concepção de homem, de liberdade e da ação humana. Mas isto apenas dirá o que o homem é, o que é a liberdade e a ação humana. É preciso ainda estabelecer uma relação dos resultados aí alcançados com as pressuposições da teoria neoliberal. Em outras palavras, é preciso tentar fazer aquilo que Hegel fez na Filosofia do Direito: passar do discurso universal para uma relação deste discurso com as ciências, com o conhecimento hipotético e regionalizado da realidade. Ou seja, é preciso elevar os resultados desde conhecimento hipotético ao nível das proposições universais da filosofia, para aí descobrir, no caso da teoria neoliberal, se ela é capaz de responder às exigências de uma vida verdadeiramente ética. Como isto é uma tarefa mais própria ao filósofo, a quem cabe de direito tal discussão, procurar-se-á dialogar diretamente com a teoria neoliberal por um outro caminho. Ou seja, procurar-se-á, com base em Marx, partir da lei geral da troca de mercadorias (o princípio da equivalência) para pôr a nu como esta lei se converte, por sua própria dialética interna, nos seus contrários: numa troca de não-equivalentes, o que transforma o contrato em uma mera aparência das noções jurídicas de liberdade e de igualdade, que são tão caras ao pensamento liberal como um todo.

Começando então a leitura filosófica propriamente dita da economia, a filosofia parte da concepção de que o homem é um ser aberto, um ser da história, que emerge, assim, como a exigência (a interpelação) de constituir-se, ou seja, de produzir uma configuração de seu próprio ser, que não está, então, desde sempre determinado. Seu ser é, enquanto tal, abertura, indeterminação, o que em nossa tradição de pensamento é o primeiro nome de liberdade".75 Liberdade aparece, assim, como a chance permanente de o homem construir novas configurações, isto é, novas formas econômicas, jurídicas, sociais e políticas de organização de sua vida.

Enquanto ser nunca acabado, nunca pronto de uma vez por todas, porque se constrói na história e pela história, o homem manifesta sua liberdade na necessidade de dever ser, isto é, de construir um mundo que ele possa reconhecer como produto de sua ação e nele realizar a absolutidade do seu ser que é ser livre. Nisto consiste a dignidade originária do ser humano,76 pois, como diz Hegel, "as circunstâncias ou motivos têm sobre o homem tanto poder quanto ele próprio lhes conceder." 77

Se a história é o lugar no qual o homem luta por sua liberdade, esta luta é, em primeiro lugar, luta pela vida, pelas condições materiais que tomam possível a satisfação de suas necessidades básicas, de sua reprodução biológica. Neste sentido, estas necessidades têm prioridade em relação a qualquer outro tipo de necessidade. Afinal de contas, o homem só pôde começar a pensar quando pôde dispor de um tempo livre, de um tempo não dedicado à reprodução de sua vida.

É a partir daí que se poderá entender a dimensão da economia na vida humana. Com efeito, sendo o homem um ser da história, que escreve sua liberdade no mundo pela mediação de sua práxis social, isto é, nas suas relações com a natureza e com os outros homens, ele se constitui, assim, como um ser carente, isto é, um ser que tem necessidades naturais a serem satisfeitas através de suas atividades laboriosas, produtivas. É neste sentido que tanto Marx como Hegel vão entender o trabalho78 como momento imprescindível no processo de autogênese do homem enquanto ser histórico.

Partindo daí, Oliveira vai entender a atividade econômica como um "conjunto de ações e instituições através das quais o homem, pela mediação do trabalho, procura adquirir o necessário para reproduzir sua vida. Isto significa dizer que o sentido originário do agir econômico é estar a serviço da satisfação das necessidades básicas do ser humano; enquanto tal, ele é mediação no processo de antropogênese. A economia tem assim de estar a serviço da efetivação do ser livre, que, enquanto tal, pode pôr-se em relação com suas próprias condições de vida e desenvolver aqui um espaço para suas ações. Isto significa dizer que o homem pode determinar a ordem econômica, e, enquanto tal, ele é por ela responsável. Portanto, a ação econômica, enquanto situada na esfera das ações do sujeito livre, tem uma dimensão ética insuperável".79

Se a atividade econômica deve estar a serviço da satisfação das necessidades do homem, neste sentido, a serviço da efetivação do seu ser livre, pergunta-se: em uma economia dominada pela produção de mercadorias, a economia pode cumprir essa sua função ética? A resposta a esta questão permitirá mostrar que, ao contrário do que advoga a teoria neoliberal, a liberdade de mercado como condição necessária para a realização da liberdade humana é, na verdade, condição para sua desrealização, para sua não-efetivação. A dimensão ética da economia, que a razão filosófica demonstra, não poderá se realizar enquanto o mercado permanecer como instância central da sociabilidade. É aqui que se recorrerá ao pensamento marxiano, como foi anunciado há pouco.

Na seção 4.4, onde se discutiu a base normativa da teoria neoliberal, foram expostas as determinidades gerais que fazem da sociedade produtora de mercadorias uma sociedade na qual, como diria Marx, o que reina

"é unicamente Liberdade, Igualdade, Propriedade e Bentham. Liberdade! Pois comprador e vendedor de uma mercadoria, por exemplo a força de trabalho, são determinados apenas por sua livre vontade. Contratam como pessoas livres, juridicamente iguais. O contrato é o resultado final, no qual suas vontades se dão uma expressão jurídica em comum. Igualdade! Pois eles se relacionam um com o outro apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente- Propriedade! Pois cada um dispõe sobre o seu. Bentham! Pois cada um dos dois cuida de si mesmo. O único poder que os junta e leva a um relacionamento é o proveito próprio, a vantagem particular, os seus interesses privados." 80

Entretanto, por trás desse paraíso, a partir de onde os defensores da economia de livre mercado extraem suas concepções, conceitos e critérios para seu juízo sobre a sociedade capitalista, esconde-se um outro mundo, não imediatamente acessível aos olhos do observador imediato. Um mundo no qual aqueles valores de liberdade, igualdade e propriedade se transformam em seus contrários diretos: a liberdade em não-liberdade, a igualdade em não-igualdade e a propriedade em não-propriedade.

Para descortinar esse mundo invisível, Marx não vai simplesmente contrapor uma outra teoria à EPC. Ele parte dos resultados alcançados por esta ciência e a obriga a revelar o seu lado mistificador, ideológico. Parte, portanto, do pressuposto, assumido pela economia burguesa, de que a propriedade privada dos meios de produção, como diria Adam Smith81 ao se referir à propriedade da terra, é produto de uni esforço pessoal, de um trabalho de longa geração. Parte daí para mostrar que essa propriedade, pela própria dialética interna da mercadoria, converte-se em uma não-propriedade, isto é, em um direito de apropriação do trabalho alheio não-pago.

Para que se possa acompanhar melhor essa demonstração, 82 vale a pena retomar de Smith a idéia de como ele explica e justifica o lucro capitalista. Partindo da concepção de que a propriedade capitalista é resultado de um trabalho passado, Smith vai dizer que, por isto mesmo, "ao se trocar o produto acabado por dinheiro, ou por trabalho, ou por outros bens, além do que pode ser suficiente para pagar o preço dos materiais e dos salários dos trabalhadores, deverá resultar algo para pagar os lucros do empresário pelo seu trabalho e pelo risco que ele assume ao empreender esse negócio".83Vale dizer: o capitalista tem direito de exigir do trabalhador uma parte do valor daquilo que este produz, como forma de recompensa por seu trabalho passado.

Dentro do horizonte da EPC, tal recompensa não se constitui em uma relação de exploração, pois o que o capitalista exige do trabalhador é que este o recompense por seu esforço passado. Afinal de contas, como diria Smith, enquanto o capitalista trabalhava para formar seu patrimônio, o trabalhador dissipava tudo o que tinha, sem se preocupar com o futuro.

Assim, admitindo que a propriedade privada dos meios de produção foi conseguida com o "suor do rosto do capitalista", Marx imagina que essa propriedade, acumulada com tanto sacrifício, como quer Smith, possa ser representada por uma soma de valor de 1000 libras. Em seguida supõe que a classe capitalista resolve empregar esta riqueza para dar emprego àqueles que, no passado, viviam vagabundando e dissipando tudo o que produziam. Como castigo, esses "vagabundos" terão, agora, se quiserem trabalhar para ganhar o "pão nosso de cada dia", I que recompensar seus benfeitores com um lucro anual de 20%, isto é, de 200 libras. Essa recompensa, de acordo com a teoria liberal, é mais do que justa, pois os proprietários dessa riqueza estão correndo o risco de ver o seu patrimônio dilapidado nas mãos destes irresponsáveis do passado. O que aconteceria, então, se a classe capitalista, cansada de trabalhar, resolvesse assalariar esses "vagabundos"? Ao final de cada ano, esta classe receberia as 1000 libras de volta, as quais adiantou sob a forma de salário, mais 200 libras a título de lucro. Este lucro ou rnais-valia, apropriado pelos capitalistas, é a fonte de renda de que dispõem para adquirir os bens e serviços necessários à satisfação de suas necessidades. Assim, diz Marx, "depois de se repetir o mesmo processo durante cinco anos, a soma da mais-valia consumida será = 5 x 200, ou igual ao valor do capital originalmente adiantado de 1000 libras esterlinas [... I Ao final de um certo número de anos, o valor do capital que possui é igual à soma da mais-valia apropriada durante o mesmo número de anos, sem equivalente, e a soma do valor consumida por ele é igual ao valor do capital original. Não subsiste nenhum átomo de valor de seu antigo capital".84

Veja-se: ao final do quinto ano, o capitalista consumiu todo o capital original e dispõe ainda da mesma soma de I 000 libras para reiniciar o mesmo processo a partir do sexto ano em diante. A partir daí, esta soma de que dispõe não tem nada mais a ver com o seu trabalho passado. Trata-se de uma soma de capital totalmente recriada pelo trabalhador, pois o capital original de que ele dispunha foi consumido durante os cinco primeiros anos. A partir de então, os fundos de que ele dispõe para pagar o trabalhador são adiantados por este último. Tudo se passa como se o próprio trabalhador emprestasse ao capitalista o dinheiro com o qual este lhe paga, pois, diz Marx, "é uma parte do produto reproduzido continuamente pelo trabalhador, que reflui constantemente para ele na forma de salário [... l É com seu trabalho da semana anterior ou do último meio do ano que seu trabalho de hoje ou do próximo meio ano será pago".85 Segue-se, de tudo isso, que a renovação periódica e contínua do processo de compra e venda da força de trabalho acaba por transformar essa relação em uma relação que aparece, do lado do capitalista, como o direito de este se apropriar, sem nenhum equivalente, do trabalho alheio não-pago. Com isto, cai por terra um dos pressupostos básicos da teoria liberal: o direito de propriedade fundado no trabalho próprio.

Com a transformação da propriedade em um direito de se apropriar do trabalho alheio não-pago, o contrato, outra instituição tão cara à concepção liberal, converte-se, por esta razão, em uma mera aparência que é alheia ao seu próprio conteúdo e apenas o mistifica. Com efeito, na relação contratual de compra e venda da força de trabalho, uma das partes contratantes (o trabalhador) comparece, nessa relação, como vendedor e comprador de sua própria mercadoria: a força de trabalho. Assim, desvanece o princípio segundo o qual o contrato é uma transferência recíproca de direitos entre os contratantes, na medida em que só o trabalhador transfere, para o capitalista, o direito de este explorar o uso de sua força de trabalho. Em conseqüência disto, a liberdade e a igualdade dos contratantes não passam de uma ficção jurídica.

Assim, o mercado que aparecia como condição de possibilidade da propriedade, da liberdade e da igualdade é, na verdade, condição de possibilidade para a criação da não-propriedade, da não-liberdade e da não-igualdade. A teoria liberal e a sua sucedânea contemporânea - a teoria neoliberal podem continuar defendendo suas idéias apenas enquanto tomarem a aparência da realidade social como sendo sua essência. Podem continuar defendendo suas idéias apenas enquanto tomarem a verdadeira essência humana, a chance permanente de o homem construir novas configurações, como uma representação metafísica de um ser humano extratemporal, permanente; enquanto fizerem da essência humana algo já dado ou totalmente determinado. Enquanto, portanto, puderem continuar projetando para todas as épocas da história da humanidade as particularidades históricas de uma vida historicamente determinada.

 

NOTAS

 1 Anderson, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: Sader, Emir & Gentili, Pablo (orgs.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro, Paz e terra, 1995

2 Idem, ibidem

 

3 Oliveira, Manfredo Araújo de. Ética e economia. São Paulo, Ática, 1995.

4 Mandel, Ernest. A crise do capital: os fatos e sua interpretação marxista. São Paulo, Ensaio, 1990.

5 Moffitt, Michel. O dinheiro do mundo: de Bretton Woods à beira da insolvência. Rio de Janeiro, Paz e terra, 1984

6 Esclareça-se que tais proposições não têm a pretensão de ser um saber absoluto, um saber infalível. A teoria neoliberal é um saber científico fundado na racionalidade procedurístico-hipotético-regional, que é própria das ciências modernas. Trata-se portanto, de uma racionalidade que tem a ver com os procedimentos do conhecimento. isto é, urna racionalidade que não tem a pretensão de dizer o que é o real, mas, sim, os procedimentos de conhecimento do real. Enquanto saber hipotético, a verdade de suas proposições deve ser testada através de um confronto com a experiência. Isto posto, quando se fala do conteúdo universalizante das proposições da teoria liberal, se está querendo dizer que esta teoria tem a pretensão de ser a única resposta possível aos problemas da humanidade.

7 Segundo Merquior. "o liberalismo clássico, ou liberalismo em sua forma histórica original, pode ser toscamente caracterizado como um corpo de formulações teóricas que defendem um Estado constitucional (ou seja, uma autoridade nacional central com poderes bem definidos e limitados e um bom grau de controle pelos governantes) e uma ampla margem de liberdade civil...... (Merquior, José Guilherme. O liberalismo: antigo e moderno. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1991. p. 35-6.

8 Oliveira, Manfredo Araújo de. Ética e sociabilidade. São Paulo, Loyola, 1993. p. 20. "o indivíduo traz consigo direitos naturais que devem ser considerados na constituição da sociabilidade e da vida política. Esse primado político do indivíduo sobra a comunidade social e política é o axioma fundamental da teoria política dos tempos modernos. Já que todas as teorias situam-se no nível do indivíduo, a questão central vai ser a de associação dos indivíduos isolados

9 Bobbio, Norberto, Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. Brasília, Editora Universidade de Brasília. 1984 p, 15-6.

10 Hobbes, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. São Paulo, Abril Cultural, 1979. Ver especialmente o capítulo XIII.

11 Idem, p. 103.

12 Idem, p. 106. O grifo é nosso

13 Idem, p. 107. O grifo é nosso

14 Idem, p. 105

15 Idem, p. 109

 

16 Locke se apresenta, dentro da tradição dos teóricos do Estado moderno, como o verdadeiro pai do liberalismo. Foi com ele, segundo Merquior, que se inaugurou a política da confiança, isto é, o consentimento como fonte legitimadora do poder estatal. Nesse sentido, diz Merquior, "Locke encarou os governantes como curadores da cidadania e, de forma memorável, imaginou um direito à resistência e mesmo á revolução. Desta maneira, o consentimento tornou-se a base do controle do governo" (Merquior, José guilherme. Op. cit., p. 45) Nessa mesma perspectiva, isto é, de imposição de limites ao poder do Estado, Bobbio ressalta que as modernas teorias do Estado moderno, cujos desdobramentos estabeleceram as bases do Estado liberal e democrático, têm nas teorias dos direitos naturais ou jusnaturalismo o ponto de partida da teorização sobra o abuso do poder político. À teoria dos direitos naturais, segue-se a da separação dos poderes e a da soberania popular ou democrática(Bobbio, Norberto. Op. cit.)

17 Para um exame mais demorados das diferenças entre Hobbes e Locke, ver meu livro Economia e filosofia no pensamento político moderno. Campinas, Pontes, 1995.

18 Locke, John. Carta acerca da tolerância. Segundo tratado sobre o governo. 2. Ed. São Paulo, Abril, 1987, p. 48-9. (Os Pensadores.)

19 Ver a este respeito Oliveira, Manfredo Araújo de. Ética e sociabilidade. Op. Cit., especialmente o capítulo 5

20 Locke, John. Op. cit., p. 93

21 Uprimny, Rodrigo. Violência, ordem democrática e direitos humanos na América Latina.. Lua Nova, n. 30, CEDEC, 1993

22 Bobbio, Norberto. Op. cit., p. 16-7

23 Partindo do que ele chama de um rude e primitivo estado de natureza, Smith intenta demonstrar que as quantidades de trabalho inseridas nas mercadorias são as únicas regras que os homens devem observar ao permutar seus diferrentes produtos.

O grande problema que ele teve que enfrentar foi o de como passar desse estado de natureza para a sociedade capitalista. Naquele estado original, não havendo patrões nem empregados, o valor do produto do trabalho pertencia integralmente a quem o produzia. Nestas condições, as mercadorias poderiam ser trocadas proporcionalmente no tempo de trabalho necessário à sua produção. Em outras palavras, a troca obedecia ao princípio da equivalência.

Entretanto, esse princípio perde sua validade na sociedade capitalista, diria Smith. A razão disso está no fato de que, agora, na sociedade capitalista, o produto do trabalho já não pertence integralmente a quem o produz. O trabalhador é obrigado a repartir o fruto do seu trabalho com quem o empregou. Logo, sua remuneração deixa de ser igual ao valor do que ele produziu e, assim, a base racional da teoria do valor, a troca de equivalentes, vê-se ameaçada. É então que Smith procura substituir o conceito de valor, com base no trabalho contido nas mercadorias, pelo conceito de trabalho comandado, isto é, o valor de cada mercadoria passa a ser determinado pelo valor do que ela pode comprar ao comandar. Mas. por conta disso, sua teoria cai num circulo vicioso, ferindo, assim, o principio da não contradição reclamado pela lógica formal. Realmente, para fazer do trabalho comandado a medida do valor, seria necessário conhecer, primeiro, o valor que comanda este trabalho. Neste sentido, Smith chega a uma proposição destituída de sentido: o valor depende do valor.

Para livrar a teoria de Smith destas contradições, Ricardo passa a sustentar que, tanto naquele rude estado de natureza, como na sociedade capitalista, o valor das mercadorias é determinado pelas quantidades de trabalho nelas inseridas. Em outras palavras, para ele, é o conceito de trabalho contido e não o de trabalho comandado que deve ser afirmado na construção da teoria do valor, Entretanto, ele não consegue ser bem-sucedido nesta sua tarefa, A esse respeito ver meu livro Pensando com Marx: uma leitura crítico comentada de O capital, São Paulo, Ensaio, 1995

24 Smith, Adam A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas. 2. Ed. São Paulo, Nova cultural, 1985. p. 49-50

25 idem, p. 379

 

26 Idem, p. 296

27 Idem, p. 50. Os grifos são nossos.

28 Fausto, Ruy. Marx: lógica e política. São Paulo, Brasiliense, 1987. p. 283: "Para expor a teoria do capital enquanto capital - que se segue à da circulação simples - Marx pressupõe a propriedade dos meios de produção pelo

capitalista e a despossessão dos meios de produção pelo trabalhador, isto é, pressupõe as relações de distribuição dos meios de produção, assim como o livre contrato entre o trabalhador assalariado e o capitalista. Estas pressuposições são de início simplesmente assumidas, e nesse sentido são a princípio pressuposições externas. É também na seção sétima do livro I, em particular no capítulo 22, que essas pressuposições são interiorizadas. O movimento contínuo do capital reduz o contrato livre a uma simples aparência (Schein) e faz das relações de distribuição dos meios de produção um puro resultado do processo. Assim se interiorizam as pressuposições. O capital se torna autônomo em relação a elas, no sentido e que ele as recria constantemente, elas são segundas em relação a ele". Ver também o meu livro Pensando com Marx. Op. cit., especialmente a primeira parte.

29 A partir de 1848 tem início o que Hobsbawm chamou de "a era do capital", para assim designar o período áureo do liberalismo. A partir de então tem início um movimento em direção à total liberdade de comércio, como bem ressalta nos capítulos segundo e sexto do seu livro. Hobsbawm, Eric J. A era do capital: 1848-1875. Rio de Janeiro, Paz e terra, 1982.

30 Para uma exposição crítica dessas teorias que falam do capitalismo regulado, ver Altvater, Elmar. O capitalismo se organiza: o debate marxista desde a guerra mundial até a crise de 1929. In: _. História do marxismo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987, v. VIII.

31 Habermas, Jurgen. [1] Técnica e ciência como ideologia. Lisboa Edições 70, 1968. [2] Crise de legitimidade do capitalismo tardio. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1980

32 A expressão "economia política da social-democracia", pelo que se sabe, foi cunhada pelo professor Francisco de Oliveira, em um artigo publicado na Revista da USP, n. 17, mar/abr./maio 1993, que tem como titulo esta mesma expressão. Entretanto, advirta-se que esta expressão é aqui usada para dar conta da teoria da regulação, que nasce, precisamente, como resposta ao modelo neoliberal de desregulação da economia. De acordo com Boyer, um regulacionista preocupado em popularizar a teoria da regulação, diante do ataque avassalador dos neoliberais, "uma tarefa específica apresenta-se ao economista: caracterizar com exatidão as razões que explicam esta sucessão de diferentes fases de expansão e flutuações conjunturais moderadas e depois de estagnação e de instabilidade. Assim, as duas últimas décadas seriam marcadas pela crise do modo de regulação monopolista ou de administrado, que teria possibilitado a superação da crise de 1929. Portanto - e esta é uma das originalidades das análises em temos de regulação - os problemas de política econômica de saída da crise não podem ser discutidos no abstrato, ou seja, independentemente do conjunto de formas institucionais vigentes, Por outro lado, a questão não se coloca mais tanto em temos do acerto da política conjuntural, mas da emergência de um modo de regulação adequado, processo no qual o Estado pode tentar participar, menos direto do que indiretamente". (Boyer, Robert. A teoria da regulação: uma análise crítica. São Paulo, Nobel, 1990. p. 37.) Segue-se dai que a preocupação básica da Escola da Regulação é encontrar novas formas de regulação, para retirar a economia da crise. Daí a Preocupação deste mesmo autor, em 1986, em proceder um estudo minucioso das relações salariais em sete países europeus, para tentar descobrir as novas possíveis formas de regulação em gestação na economia. A este respeito, ver Boyer, Robert, The search for labour market flexibility: the European economies in transition. New York, Oxford University, 1988.

33 A este respeito ver o primeiro capítulo, onde se expõe detalhadamente a teoria da Escola da Regulação.

34 Teixeira, Francisco José Soares. Terceirização: os terceiros serão os últimos. Fortaleza, SINE/CE, 1993

35 Teixeira, Francisco José Soares. Marx e as metamorfose do mundo do trabalho. Universidade e Sociedade, n. 8, p. 11, 1995

36 Clarke, Simon. Crise do fordismo ou crise da social democracia, Lua No)va, n. 24, p 120, CEDEC, 1991.

37 Desenvolvimento e crise do Estado interventor no Brasil foram analisados por mim em um artigo intitulado "El secreto de la plusvalia, más oculto que nunca. Revista Horizonte, jan./mar. 1995.

38 Oliveira, Francisco de. A economia brasileira: crítica da razão dualista. Petrópolis, Vozes, 1987. p. 14.

39 Idem, p. 16

40 No capitalismo contemporâneo, os circuitos de valorização do capital passam cada vez mais por um processo de reciclagem estatal. O Estado, ao se apropriar do excedente de capital sob a forma de impostos, devolve pane deste excedente aos capitalistas, que dependem cada vez mais dos fundos públicos pula sustentar sua capacidade de investimento. O Estado cumpre, assim, uma função socializadora, na medida em que redistribui parte do excedente entre os diversos circuitos privados de acumulação e desta maneira, contrapõe-se à tendência decrescente da taxa de lucro.

 

41 Marx, Karl. O capital: crítica da economia política. São Paulo, Nova Cultural, 1985. livro I, v. I, p. 196: "O impulso à prolongação da jornada de trabalho, a feroz voracidade por mais trabalho, que temos observado até agora numa área, na qual os abusos desmesurados são ultrapassados... pelas crueldades dos espanhóis contra os índios na América, colocaram finalmente o capital sob os grilhões da regulação legal".

42 Comparando as políticas do trabalho e de garantia de renda no Brasil, na Itália, na França e na Inglaterra, Pochmann defende a tese de que aqui, no Brasil, estas políticas, ao invés de potencializarem um padrão de consumo mais homogêneo, como aconteceu naqueles países europeus, foram utilizadas muito mais como instrumentos efetivos da acumulação e de controle inflacionário. efetivos da acumulação e de controle inflacionário. Reconhecendo que a implementação do salário mínimo, no inicio dos anos quarenta, tinha como preocupação fazer deste salário um salário suficiência, isto é um salário comprometido com as necessidades biológicas do trabalhador, o abandono desta concepção, a partir de meados da década de sessenta, diz Pochmann, "deixou de ser uma forma de incorporação controlada da força de trabalho (padrão salário suficiência) ao padrão de consumo fordista para se transformar claramente, a partir de 1964, num elemento de universalização excludente dos frutos da industrialização. Isso porque a generalização da legislação do mínimo para o setor rural e outras ocupações urbanas ocorreu descomprometida com a garantia de um nível mínimo de satisfação das necessidades normais du trabalhador. Ou seja, a política do salário mínimo, ao romper com os seus objetivos originais, excluiu automaticamente a possibilidade de efetivamente atuar como uma medida voltada para o enfrentamento da pobreza nacional". (Pochmann, Marcio. Políticas de trabalho e de garantias de renda no capitalismo em mudança: um estudo sobre as experiências da França, da Inglaterra, da Itália e do Brasil desde o segundo pós-guerra aos dias de hoje. São Paulo, LTr, 1995. P. 223

43 Esse processo só pode ser entendido em todas as suas conseqüências quando se tem presente o que Marx examina no capítulo 22 do livro I de O capital, onde ele mostra como as leis de produção de mercadorias se convertem, por sua própria dialética interna, no seu contrário direto.

44 Offe, Claus, Capitalismo desorganizado. São Paulo, Brasiliense, 1989. p, 308.

45 Batista, Paulo Nogueira. o Consenso de Washington: a visão neoliberal dos problemas latino-americanos. Caderno Dívida Externa, n. 6, p. 5, 1994.

46 Maranhão, Mauriti. ISSO: série 9000 (manual de implementação). Rio de Janeiro, Qualitymark, 1994, p. VII

47 Batista, Paulo Nogueira. Op. cit., P. 27. Neoliberalismo: o mercado enquanto condição de para a liberdade humana

48 Oliveira, Manfredo Araújo de. Ética e sociabilidade. Op. cit., p. 96B

49 Bobbio, Norberto. Liberalismo e democracia. São Paulo, Brasiliense, 1988. P. 16

50 Smith, Adam. Op. cit., p. 293

51 Friedman, Milton, Capitalismo e liberdade. São Paulo, Abril Cultural, 1984 p. 23-4. Os grifos são nossos.

52 Idem, p. 21.

53 Idem, ibidem: "só há dois meios de coordenar as atividades econômicas de milhões: um é a direção central utilizando a coerção - a técnica do Exército e do Estado totalitário moderno. O outro é a cooperação voluntária dos indivíduos - a técnica do mercado".

54 Oliveira, Manfredo Araújo de. Neoliberalismo e ética, In: _______. Ética e economia. Op. cit., p. 12

56 Friedman, Milton. Op. cit., p. 23.

 

57 Idem, p. 39: "Um governo que mantenha a lei e a ordem; defina os direitos de propriedade; sirva de meio para a modificação dos direitos de propriedade e de outras regras do jogo econômico: julgue disputas sobre a interpretação das regras; reforce contratos; promova a competição; forneça uma estrutura monetária, envolva-se em atividades para evitar monopólio técnico e evite os efeitos laterais considerados como suficientemente importantes para justificar a intervenção do governo; suplemente a caridade privada e a família na proteção do irresponsável, quer se trate de um insano ou de uma criança; um tal governo teria, evidentemente, importantes funções a desempenhar. O liberal consistente não é um anarquista".

58 Deve-se reconhecer a Manfredo Araújo de Oliveira, que por sua vez apoia-se em F. J. Hinkelammert (El marco categorial del pensamiento neoliberal actual. In: _________. Crítica de la razón utópica. San José, 1984), o mérito na discussão desse caráter contraditório do pensamento neoliberal. A este respeito, ver Oliveira, M. A . de. Neoliberalismo e ética. Op. cit. P. 19 e ss.

60 Ferguson, C. E. Teoria microeconômica. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1983. P. 276 e ss.

61 Smith, Adam. Op. cit., p. 49

62 Marx demonstra isto quando investiga o processo de transformação do dinheiro em capital, no capítulo IV de O capital, Livro I, V. I

 

63 "Não existe absolutamente nenhuma diferença entre eles, enquanto determinação formal, que é também a determinação econômica, a determinação na qual esses indivíduos se determinam na relação do intercâmbio, [que] é o indicador de sua função social ou de sua relação social mútua. Cada sujeito é um comerciante, isto é, tem com o outro a mesma relação social que este tem com ele. Considerado como sujeito do intercâmbio, sua relação é pois de igualdade" (Marx, Karl. Elementos fundamentales para la crítica de la economía política – Grundrisse: 1857-1858. México, Siglo Veintiuno, 1972, v. I, p. 179.)

64 Idem, p. 182.

65 Idem, ibidem.

66 "O poder que cada indivíduo exerce sobre a atividade dos outros ou sobre as riquezas sociais, ele o possui enquanto é proprietário de valores de troca, de dinheiro. Seu poder social, assim como seu nexo com a sociedade, ele o leva consigo no bolso." (Marx, Karl. Grundrisse. Op. cit., v. I, p. 84.)

67 As diferenças sociais entre os indivíduos aparecem como consequência da própria propensão que cada um tem para ser um comerciante. São, portanto, diferenças que surgem de uma escolha voluntária dos indivíduos em se engajar em atividades específicas. É o que diz Smith ao admitir que "a diferença de talentos naturais em pessoas diferentes é muito menor do que pensamos; a grande diferença de habilidade que distingue entre si pessoas de diferentes profissões, quando chegam à maturidade, em muitos casos não é tanto a causa, mas antes o efeito da divisão do trabalho. A diferença entre as personalidades mais diferentes, entre o filósofo e um carregador comum da rua, por exemplo, parece não provir tanto da natureza, mas antes do hábito, do costume, da educação ou formação. Ao virem ao mundo, e durante os seis ou oito primeiros anos de existência, talvez fossem muito semelhantes entre si, e nem seus pais nem seus companheiros de folguedo eram capazes de perceber nenhuma diferença notável. Em torno dessa idade, ou logo depois, começam a engajar-se em ocupações muito diferentes. Começa-se então a perceber a diferença de talentos, sendo que esta diferenciação vai-se ampliando gradualmente, até que, ao final, o filósofo dificilmente se disporá a reconhecer qualquer semelhança. Mas, sem a propensão á barganha, ao escambo e à troca, cada pessoa precisa ter conseguido para si mesma tudo o que lhe era necessário ou conveniente para a vida que desejava. Todos devem ter tido as mesmas obrigações a cumprir, e o mesmo trabalho a executar, e não poe Ter havido uma tal diferença de ocupações, que por si fosse suficiente para produzir uma diferença tão grande de talentos", (Smith, Adam. Op. cit., p. 51.)

68 Marx, Karl, Grundrisse. Op. cit., p. 184-5

70 Oliveira, Manfredo Araújo de. Neoliberalismo e ética. Op. cit., p. 27. Os grifos são nossos.

71 idem, p. 50

72 Idem, p. 26

73 Idem, p. 52

 

74Idem, p. 54: "A totalidade está presente em suas partes, em cada uma de maneira diversa e não se esgota em nenhuma delas, pois do contrário não seria a totalidade. Então, no conhecimento filosófico de uma realidade determinada, o sujeito universalíssimo das proposições filosóficos fica particularizado, o que significa dizer que o conhecimento filosófico situa esta parte no todo da realidade. Trata-se, portanto, em contraposição á racionalidade das ciências, de ver o particular e interpretá-lo a partir da totalidade da qual ele é parte, de desvelar o universal ínsito no particular, a partir de onde se determina o sentido deste particular".

75 Idem, p. 33

 

76 Idem, p. 37-8: "Como liberdade, nos experimentamos na necessidade de dever ser: temos que ser, isto é, de descobrir, de produzir criativamente uma configuração de nosso próprio ser. Nosso ser, enquanto tarefa, enquanto dever-ser, nos é dado. Isto significa dizer que não somos simplesmente em função de qualquer coisa fora de nós mesmos, somos seres que possuem sentido, f'im em si mesmos. O fim radical e último de nossas ações no mundo, na história, é nossa própria realização como sujeitos livres, o que implica o reconhecimento mútuo desta liberdade. Nisto consiste a dignidade originária do seu ser humano".

77 Hegel, G. W. F. Propedêutica filosófica. Lisboa, Edições 70, 1989 p. 276

 

78Marx entende o trabalho a partir de uma dupla dimensão. Na sua acepção geral, "o trabalho é considerado como sendo a unidade constitutiva de todos os momentos da vida humana. Neste sentido, o trabalho revela o caráter universal da atividade humana, ou seja, a necessidade natural de o homem transformar a natureza para satisfizer suas necessidades. Em seu aspecto particular (histórico), a troca universal do homem com a natureza é mediada por relações criadas historicamente em sua atividade produtiva". (Teixeira, Francisco José Soares. Trabalho e valor em Marx. Fortaleza, Editora da Universidade Estadual do Ceará, 1990. p. 49.)

79 Oliveira, Manfredo Araújo de. Neoliberalismo e ética. Op. cit., p. 43

80 Marx, Karl. O capital. Op. cit., livro I, v. I, p. 145

81 Smith, Adam. Op. cit., p. 164: "os homens podem viver juntos em sociedade, com um grau aceitável de segurança, embora não haja nenhum magistrado civil que os proteja da injustiça... entretanto, a avareza e a ambição dos ricos e, por outro lado, a aversão ao trabalho e o amor á tranqüilidade atual e ao prazer, por parte dos pobres, são as paixões que levam a invadir a propriedade... adquirida com o trabalho de muitos anos, talvez de muitas gerações sucessivas".

82 Advirta-se que essa demonstração exige um longo processo de mediações, que não serão aqui expostas. O leitor deverá ter presente que por trás da simplicidade do que é aqui exposto, esconde-se um longo encadeamento categorial, que revela como Marx passa do nível da representação dos capitais individuais para o do capital social global; ou, se se preferir, do nível das relações individuais par o das classes sociais. Para quem interessar, essa passagem está desenvolvida no meu livro Pensando com Marx, anteriormente citado.

83 Idem, p. 78

84 Marx, Karl, O capital. Op. cit., livro I, v. II, p. 155

85 Idem, p. 154