A estréia de
Badly Drawn Boy - The Hour of Bewilderbeast - é um disco que reúne duas
qualidades difíceis de se encontrar no pop atual - verdade e beleza
Alexandre
Matias
Utopia é um lugar longe. É feito pra ser longe, pra nunca se chegar
lá. Lá tudo é perfeito, as coisas organizam-se da forma mais simples e funcional
possível, ninguém faz mal a ninguém, todo mundo é feliz. Mas não existe por
concepção, é utópico, inatingível. A arte faz nossa conexão com a utopia, criando
universos paralelos em que a perfeição é palpável, verdadeira.
Mas até na arte a utopia pode se tornar distante. Ao propor um mundo
diferente do nosso, o artista se distancia da realidade o suficiente para entrar na
ficção e sabermos que é tudo um sonho. Para a perfeição artística chegar próxima, o
artista precisa se despir da individualidade e fazer-se entender numa linguagem universal.
Por isso a música é o meio mais popular e o amor é um tema tão cantado - de todos,
são os mais fáceis de entender. Essa combinação é praticamente o oxigênio da música
pop.
Mas não é fácil tirar sua personalidade de cena e deixar a obra
ganhar vida própria. É um processo de generosidade muito intenso, o artista precisa ter
um desprendimento quase beatífico em relação a seu trabalho para considerá-lo maior
que ele mesmo. Mas quando os ponteiros se acertam e o fruto do trabalho passa a ser o
alicerce deste, surgem jóias. Estamos falando de preciosidades do quilate de Revolver (dos
Beatles) e Pet Sounds (dos Beach Boys). Nestes dois discos (e em outros e de outros
artistas, mas estes exemplificam melhor a situação), os grupos sabiam que o mais
importante era ter uma resposta imediata do ouvinte, que ele se identificasse
imediatamente com aquela música. E todos sabiam que o ouvinte é qualquer um - por isso,
quanto mais abrangente for o tema (e por isso, o amor), mais fácil as pessoas irão se
identificar com a música.
Mais do que isso: por mais ousado que se tentasse ser musicalmente, é
preciso deixar que o ouvinte descubra a ousadia vindo do pop. Aqueles que percebem a
audácia musical não são o público-alvo porque estes se importam com a assinatura do
artista. O ouvido público quer descobrir um segredo dentro de uma música pop, por conta
própria. Esta mágica proporcionada pela música popular faz com que qualquer um possa
vir com um refrão irresistível e se tornar uma mania, só pela qualidade da canção
composta. Coisa que é mais comum que podemos imaginar, devido à quantidade de artistas
que desaparecem após um único sucesso.
Damon Gough sabe disso e preferiu se preservar. Ou melhor: preservar
sua música. Adotou um nome sem o menor apelo comercial (Badly Drawn Boy - Garoto Mal
Desenhado) e passou a costurar sua reputação com zelo e paciência. Trabalhando belas
canções com produção de baixa qualidade (filiando-se a este gênero sem forma chamado
lo-fi), ele passou o ano passado inteiro lançando EPs que não davam pistas sobre o
caminho que parecia seguir. Em sessões particulares, aos poucos ia convencendo artistas e
jornalistas ingleses (e depois um pequeno culto sempre crescente de fãs) de seu potencial
- usando apenas suas canções.
Mas em disco, nada era esclarecido pelo cantor inglês. Pra piorar a
situação, ele ainda foi convidado a participar com uma música ao megaprojeto
U.N.K.L.E., do dono da gravadora MoWax James Lavelle e do mestre DJ Shadow. Juntos,
os dois cozinharam um álbum por três anos e convidaram algumas figurinhas mais
importantes do pop alternativo (Mike D, dos Beastie Boys; Thom Yorke, do Radiohead; Ian
Brown, ex-Stone Roses; Richard Ashcroft; ainda no Verve) para dar sua palhinha. No meio
dos figurões que estrelaram Psyence Fiction, lá estava Badly Drawn Boy com sua Nursery
Rhyme. Guitarras pesadas e vocal reto, confundia ainda mais aqueles que tentavam o
decifrar. Seria ele o Beck inglês? O Elliot Smith inglês? Um John Lennon campestre? Um
novo Nick Drake? As dúvidas eram tão pertinentes quanto o consenso de que aquele novo
músico ainda iria dar o que falar.
Com seu primeiro álbum, The Hour of Bewilderbeast (RoadRunner),
ele não apenas confirma as expectativas como torna-se ainda mais promissor. Como? É o
segredo lá do começo do texto: as músicas falam de amor, mas de uma forma táctil,
reconhecível. Sem nenhum requinte técnico na produção (o que dá um charme rústico ao
disco), as canções surgem docemente sólidas, jóias de música pop que tornam a
perfeição palpável. Invertendo a lógica pop imortalizada pelos Rolling Stones, é a
canção, não o cantor, que importa.
O violoncelo abre o disco seguido pela trompa dão um ar de melancolia
renascentista que abrem o disco exigindo um mínimo de solenidade. O baixo aos poucos vai
desenhando a cadência da melodia central de The Shining, que o violão inicia
assim que os três instrumentos se silenciam. Num típico folk inglês, Damon Gough pede
para pormos "um pouco de sol em nossa vida", como se quisesse só arrancar um
sorriso num momento de tristeza.
Esse é o tom do disco. Entre a melancolia e o alívio, as canções
alternam felicidade e tristeza quase sempre, criando uma atmosfera casual e idílica ao
mesmo tempo. A perfeição não é pra sempre: "Sua beleza durará por um
instante", canta em Once Around the Block. "O amor é contagiante",
canta mais à frente, em Magic in the Air, "quando tudo está bem". De um
lado, a beleza. Do outro, a realidade. É essa dualidade entre sonho e realidade que faz a
utopia descrita por Gough tão próxima e natural.
Ele desfila referências à medida que transcorre o álbum. Passa pelo
folk urbano de Harry Nilsson (Everybodys Stalking), por momentos que são
puro John Lennon solo (Fall in the River, Camping Next to Water e Pissing
in the Wind - todas com temática aquática), Dylan (Magic in the Air), folk
britânico anos 70 (Stone on the Water), powerpop (Another Pearl), pop
sofisticado com toques de jazz e alguma influência latina (Once Around the Block e
Disillusion), Simon & Garfunkel (This Song), rap (Body Rap),
Prince e Guided By Voices (na mesma Cause a Rockslide), psicodelia britpop (Say
it Again, juntando Blur e Oasis na mesma faixa) e terminando com a caseira Epitaph.
Esta última, fecha o álbum com clima de varanda ensolarada (assobios,
passarinhos, violões), enquanto Gough divaga sobre a perfeição passageira que as
pessoas não percebem: "Por favor não me deixe aqui/ Querendo mais/ Espero que você
nunca morra/ Não preciso dizer porquê/ Apenas prometa que vai tentar/ Me dar tudo que
você pode/ Eu nunca mais te pedirei/ Há vida nova além da porta/ Um berço balança e
cai/ Enquanto novas frutas enchem a árvore/ Cimentam a melodia/ Nossos problemas". Pissing
in the Wind resume a generosidade artística do autor, ao abrir mão do que ele
poderia querer. "Me dê algo/ Eu fico com nada". Como se tudo isso fosse nada.