Campinas, Sábado 13 de Janeiro de 2001
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termometro.jpg (11688 bytes)
01.jpg (41791 bytes)Doce destino

Com ‘The Great Eastern’, os Delgados mostram o quanto a maturidade pode ser bela

Alexandre Matias

O que sobrou do britpop? O Oasis sobrevive hoje como uma versão hooligan dos Sex Pistols (rendendo notícias melhores que as músicas), a versão Spinal Tap para o fim dos Beatles. O Blur desistiu de canções pop perfeitas com sotaque inglês faz tempo, optando por mudar de rosto de uma música para outra, mas sempre de um ponto de vista norte-americano. O Verve acabou. O Elastica sobrevive mais como um emprego fantasma do que como uma banda propriamente dita. Os Bluetones gravaram um disco de country. Das bandas que fizeram nome com rock bretão proposto pelo gênero, só os Charlatans, o Suede e o Pulp continuam firmes no mesmo caminho - mesmo porque estes já existiam antes do britpop, aproveitando a safra de bandas para subir em seus saltos altos e mostrar serviço.

O esvaziamento do britpop por volta de 96/97 fez com que uma infinidade de bandas que orbitavam em volta daquela cena perdessem seu centro magnético e o rumo de casa. Nomes como Dodgy, Dubstar, Heavy Stereo, Cast, Boo Radleys, Ocean Colour Scene, Menswear, Lightning Seeds, Sleeper... Gênios ou picaretas, estes satélites do britpop perderam o pequeno poder que tinham enquanto cena e, de repente, o rock inglês estava vazio de novo. Como aconteceu com o fim dos Beatles, a morte de Ziggy Stardust, o último show dos Sex Pistols e a era My Bloody Valentine/Suede (conhecidos por nós deste lado do Atlântico como os Anos Nirvana), o rock inglês parou travado sem inspiração. Isso é normal para qualquer gênero musical, mas na Inglaterra as coisas são mais preocupantes porque quando a cena rock trava, produz subprodutos que podem sair de sua fronteira e machucar nossos ouvidos. O exemplo anterior fora o Take That (cujos efeitos foram minimizados pelo impacto de Kurt Cobain, mas podem ser sentidos até hoje em gente como Britney Spears, N'Sync e os Backstreet Boys).

Desta vez, não foi diferente: crise de criatividade e logo surgiram pequenos clones de Oasis que cresceram mais do que a conta porque, ora bolas, os tablóides musicais precisavam de notícias. Stereophonics, Semisonic e Travis encabeçam a fila, mostrando quão ruim as paradas inglesas estão (o Radiohead não conta por ser alien em qualquer cena - fizeram sucesso no grunge! - que tentem enquadrá-lo, soando moderno, contemporâneo e clássico ao mesmo tempo).

Mas este não foi o único efeito do desinteresse dos protagonistas do britpop na cena musical européia. O efeito descentralizador deu espaço para duas safras de bandas de dois países vizinhos mostrarem suas armas. O País de Gales foi o primeiro a despontar. Com o sumiço do guitarrista Ritchie Edwards, o Manic Street Preachers surgiu como um antídoto para o britpop, um foco de luz para uma juventude sem esperança, lotando ginásios para ouvir solos de guitarra. No vácuo dos MSP, vieram também os Super Furry Animals e o Gorky's Zygotic Mynci, com elementos retropsicodélicos tratados com um olhar crítico e cáustico.

Logo veio a Escócia, país cuja reputação era produzir mais coadjuvantes de peso (Jesus & Mary Chain, Primal Scream, Teenage Fanclub - que seriam mega caso viessem da Inglaterra e que hoje sobrevivem fortes com sua moral cada vez mais intacta) do que protagonistas. Mas sem ninguém pela frente, a primeira divisão do pop escocês da segunda metade dos anos 90 fez-se presente e vem mostrando cada vez mais serviço, desviando nossos ouvidos para a fronteira acima da Inglaterra. Nomes como Belle & Sebastian, Mogwai e Arab Strap garantem à Escócia uma invejável moral em pleno ano 2000.

Nesta cena, os Delgados têm papel fundamental. Marginalizados pelo resto do planeta no hoje distante 1994, o grupo não esperou sua chance e criou sua própria gravadora, a Chemikal Underground, berço de grande parte da cena escocesa. Batizados em homenagem ao ciclista espanhol Pedro Delgado, o grupo formado por Emma Pollock (vocal e guitarra), Alun Woodward (vocal e guitarra), Stewart Henderson (baixo) e Paul Savage (bateria) sempre usou metáforas de ciclismo para explicar sua função frente aquele cenário musical que cultivavam em sua gravadora. O primeiro disco foi batizado de Domestiques, que é o termo que os ciclistas usam para os atletas de mesma nacionalidade dos grandes nomes da corrida que mais servem para atrapalhar os adversários de outros países do que para disputar o torneio propriamente. O segundo chamava-se Pelotón, expressão usada para designar o grupo de ciclistas que se embolam logo atrás dos três ou quatro primeiros. Agindo como atletas, preparando terreno para sua vitória. Então podemos dizer que foi tudo planejado? Como tudo na vida - sim e não. Há planos, ambição, talento e disposição para trabalhar, mas os fatores que determinaram a morte do rock inglês no final da década ajudou o plano-mestre dos Delgados se concretizar.

Com seu terceiro disco, The Great Eastern (RoadRunner), o quarteto rasga a fita ao final da corrida com um conjunto memorável de canções. O resultado musical é claramente superior ao do disco anterior, mas é inegável que o grupo já dava pistas de sua grandiosidade em Pelotón, uma jóia disfarçada de simplicidade. O que percebemos no novo disco é que a banda não mediu limites para fazê-lo, sonhando alto por saber que poderiam chegar tão alto. Essa intimidade com a perfeição faz com que os Delgados dêem seu passo definitivo rumo a uma carreira que começa se tornar exemplar.

Tanto os vocais de Alun quanto os de Emma transbordam sinceridade e, mais importante, uma qualidade simples, comum, que lhes tira qualquer aura superior que a pompa e a ambição das canções, arranjos e produção podem trazer. Parte desta simplicidade está nas letras de Great Eastern, que em vez de inventar ou contar histórias, prefere discutir a existência humana e sua sobrevivência a partir do ponto de vista mais óbvio da música pop - o amor.

Alun e Emma encarnam os dois pólos de uma relação amorosa, marido e mulher. Cada um representa um arquétipo da personalidade de seu gênero. O homem é ambicioso, sonhador e apegado ao risco, ao perigo; enquanto a mulher é realista, prática e afeita à família, ao lar. O homem escolhe a mentira por lhe confortar socialmente, ao passo que a mulher prefere a verdade para sua própria consciência. Para o primeiro, a vida é uma ilha de sonhos falsos; para a segunda, a vida é um dia igual ao outro. Não estamos falando propriamente de homens ou mulheres, são formatos distintos e opostos, que se encaixam de diferentes formas nas mais diferentes pessoas. Não há certo nem errado - como a melhor literatura, as letras de Great Eastern nos levam à contemplação e à reflexão sobre a vida.

Melhor deixar eles falarem. Em The Past that Suits You Best (O passado que lhe melhor couber), Alun alerta para o otimismo ("Está claro que é só uma insistência") antes de concluir que "nenhum caminho de verdade me mostrou onde andar/ Mas as mentiras que contei me tiraram da lama". Emma pega o ponto logo a seguir (em Accused of Stealing) e tenta iniciar um diálogo: "Conte-me suas confissões/ Deixe-me ser ouvido para seus pecados", mas ao ouvir a mentira como definição, percebe que o parceiro nunca irá mudar e explica sua posição: "Se eu agüentasse, eu deixaria você acreditar no que pode escolher/ Mas como agir quando você só vê uma coisa?/ (...) Eu limpo a sujeira e lhe mostro a porta/ E se você continuar vindo, eu pediria para você tentar... um pouco mais". E conclui: "Fui acusada de roubar suas falas/ Mas elas não estão falando de tempos estrangeiros/ Mas para manter os demônios no lugar/ A inocência é necessária".

Em American Trilogy, Alun continua sua confissão: "Eu me acostumei com um tipo de servidão social/ E ninguém aceitaria o que me tornei/ Egoísta, azedo, fraco/ O suficiente para te enojar/ E ultimamente eu acho que estou roubando pedaços de vida/ Me leve pra casa", "Acho que meu controle sobre a vida está diminuindo". O refrão vem o redimir como consciência: "Há um luz em minha mente/ Estou pensando no que disse/ Toda febre em meu cérebro/ Estou bem agora/ Até suporto a dor".

Reasons for Silence traz a personagem feminina retraindo-se frente à realidade: "Encontros recentes estão me dizendo/ Que minhas razões para o silêncio se justificam/ (...) Todos estes fingidores fingindo ser/ Como reconhecem as pessoas que vêem?/ Vidas por números passam por mim". E ela confessa sua tentativa em mudar: "Tentei fingir mas me descobriram/ Falsos que forjam estão acabando/ Sou só eu, mas deixarei-me ser e os outros livres/ Mas sei quem vencerá/ Estou fora".

A belíssima Thirteen Glinding Principles costura três letras diferentes: cada um dos vocalistas canta uma parte em uma caixa de som, alternando os vocais com o outro e formando uma música própria que, se ouvida de uma vez só, faz tanto sentido quanto as partes cantadas em separado. No forte refrão, os dois justificam suas escolhas em uníssono: "Eu não escolho, deixo-me levar".

No Danger canta a fraqueza masculina como qualidade pátria, quase um hino. "Das histórias que ouvi/ Eu decidi rejeitar o bravo/ Abraçar o covarde e o fraco", canta antes de desembocar num irresistível refrão, que clama pela união popular: "Não sabemos que somos fortes suficientes/ E as chances vêm logo/ Mas, gente, não estamos apaixonados/ E estamos cantando fora do tom". O mesmo Alun segue cantando Aye Today, insistindo na canção mal cantada como metáfora para a liberdade: "Canções desafinadas/ Me lembram que estou livre".

Em Witness, Emma canta uma segunda chance para o parceiro: "Você vem comigo?/ Quero viver estes anos de novo/ Não há dignidade em perder um amigo/ Éramos jovens e achávamos que o tempo nunca ia ir embora/ Se eu tentar muito, eu te perco/ Se eu te perder muito, eu te acho/ Passamos dez anos juntos que parecem ter acabado/ Você tem tempo?/ Inclinação?/ Está muito certo?/ Como continuar com coisas melhores ao seu redor?/ Temos que brigar?/ Complicações para nos sentirmos bem?/ Passamos anos sonhando, mas nossos sonhos nos desviaram/ E agora acabou".

O disco todo duela o pesar da verdade e o amargor da mentira, mostrando os lados bons e maus de cada uma destas escolhas. O que se destaca de cara é a confiança que os dois vocalistas emprestam para os seus "papéis", tornando Great Eastern em talvez um dos discos mais profundos sobre a relação amorosa (abordando os dois lados da moeda, coisa difícil mesmo fora da música pop).

Mas enquanto nos faz pensar, nos faz sonhar. Produzido pelo mago Dave Friedmann (que ajudou o Mercury Rev, o Mogwai e o Flaming Lips a saírem da adolescência musical), Great Eastern é coberto com arranjo clássicos que se desdobram entre harpas, gran pianos, cordas, oboés, fagotes, trompas e trombones. Os arranjos - compostos pelo grupo, que não sabe escrever música - não ofuscam as belas melodias que funcionam como centro de todas as faixas. Pelo contrário, realçam sua beleza, transformando o álbum no mais belo disco lançado até agora neste ano. Se o britpop acabou para dar espaço para, entre outras coisas, esta jóia, valeu seu fim.