Com The
Great Eastern, os Delgados mostram o quanto a maturidade pode ser bela
Alexandre
Matias
O que sobrou do britpop? O Oasis sobrevive hoje como uma versão
hooligan dos Sex Pistols (rendendo notícias melhores que as músicas), a versão Spinal
Tap para o fim dos Beatles. O Blur desistiu de canções pop perfeitas com sotaque inglês
faz tempo, optando por mudar de rosto de uma música para outra, mas sempre de um ponto de
vista norte-americano. O Verve acabou. O Elastica sobrevive mais como um emprego fantasma
do que como uma banda propriamente dita. Os Bluetones gravaram um disco de country. Das
bandas que fizeram nome com rock bretão proposto pelo gênero, só os Charlatans, o Suede
e o Pulp continuam firmes no mesmo caminho - mesmo porque estes já existiam antes do
britpop, aproveitando a safra de bandas para subir em seus saltos altos e mostrar
serviço.
O esvaziamento do britpop por volta de 96/97 fez com que uma infinidade
de bandas que orbitavam em volta daquela cena perdessem seu centro magnético e o rumo de
casa. Nomes como Dodgy, Dubstar, Heavy Stereo, Cast, Boo Radleys, Ocean Colour Scene,
Menswear, Lightning Seeds, Sleeper... Gênios ou picaretas, estes satélites do britpop
perderam o pequeno poder que tinham enquanto cena e, de repente, o rock inglês estava
vazio de novo. Como aconteceu com o fim dos Beatles, a morte de Ziggy Stardust, o último
show dos Sex Pistols e a era My Bloody Valentine/Suede (conhecidos por nós deste lado do
Atlântico como os Anos Nirvana), o rock inglês parou travado sem inspiração. Isso é
normal para qualquer gênero musical, mas na Inglaterra as coisas são mais preocupantes
porque quando a cena rock trava, produz subprodutos que podem sair de sua fronteira e
machucar nossos ouvidos. O exemplo anterior fora o Take That (cujos efeitos foram
minimizados pelo impacto de Kurt Cobain, mas podem ser sentidos até hoje em gente como
Britney Spears, N'Sync e os Backstreet Boys).
Desta vez, não foi diferente: crise de criatividade e logo surgiram
pequenos clones de Oasis que cresceram mais do que a conta porque, ora bolas, os
tablóides musicais precisavam de notícias. Stereophonics, Semisonic e Travis encabeçam
a fila, mostrando quão ruim as paradas inglesas estão (o Radiohead não conta por ser
alien em qualquer cena - fizeram sucesso no grunge! - que tentem enquadrá-lo, soando
moderno, contemporâneo e clássico ao mesmo tempo).
Mas este não foi o único efeito do desinteresse dos protagonistas do
britpop na cena musical européia. O efeito descentralizador deu espaço para duas safras
de bandas de dois países vizinhos mostrarem suas armas. O País de Gales foi o primeiro a
despontar. Com o sumiço do guitarrista Ritchie Edwards, o Manic Street Preachers surgiu
como um antídoto para o britpop, um foco de luz para uma juventude sem esperança,
lotando ginásios para ouvir solos de guitarra. No vácuo dos MSP, vieram também os Super
Furry Animals e o Gorky's Zygotic Mynci, com elementos retropsicodélicos tratados com um
olhar crítico e cáustico.
Logo veio a Escócia, país cuja reputação era produzir mais
coadjuvantes de peso (Jesus & Mary Chain, Primal Scream, Teenage Fanclub - que seriam
mega caso viessem da Inglaterra e que hoje sobrevivem fortes com sua moral cada vez mais
intacta) do que protagonistas. Mas sem ninguém pela frente, a primeira divisão do pop
escocês da segunda metade dos anos 90 fez-se presente e vem mostrando cada vez mais
serviço, desviando nossos ouvidos para a fronteira acima da Inglaterra. Nomes como Belle
& Sebastian, Mogwai e Arab Strap garantem à Escócia uma invejável moral em pleno
ano 2000.
Nesta cena, os Delgados têm papel fundamental. Marginalizados pelo
resto do planeta no hoje distante 1994, o grupo não esperou sua chance e criou sua
própria gravadora, a Chemikal Underground, berço de grande parte da cena escocesa.
Batizados em homenagem ao ciclista espanhol Pedro Delgado, o grupo formado por Emma
Pollock (vocal e guitarra), Alun Woodward (vocal e guitarra), Stewart Henderson (baixo) e
Paul Savage (bateria) sempre usou metáforas de ciclismo para explicar sua função frente
aquele cenário musical que cultivavam em sua gravadora. O primeiro disco foi batizado de Domestiques,
que é o termo que os ciclistas usam para os atletas de mesma nacionalidade dos grandes
nomes da corrida que mais servem para atrapalhar os adversários de outros países do que
para disputar o torneio propriamente. O segundo chamava-se Pelotón, expressão
usada para designar o grupo de ciclistas que se embolam logo atrás dos três ou quatro
primeiros. Agindo como atletas, preparando terreno para sua vitória. Então podemos dizer
que foi tudo planejado? Como tudo na vida - sim e não. Há planos, ambição, talento e
disposição para trabalhar, mas os fatores que determinaram a morte do rock inglês no
final da década ajudou o plano-mestre dos Delgados se concretizar.
Com seu terceiro disco, The Great Eastern (RoadRunner), o
quarteto rasga a fita ao final da corrida com um conjunto memorável de canções. O
resultado musical é claramente superior ao do disco anterior, mas é inegável que o
grupo já dava pistas de sua grandiosidade em Pelotón, uma jóia disfarçada de
simplicidade. O que percebemos no novo disco é que a banda não mediu limites para
fazê-lo, sonhando alto por saber que poderiam chegar tão alto. Essa intimidade com a
perfeição faz com que os Delgados dêem seu passo definitivo rumo a uma carreira que
começa se tornar exemplar.
Tanto os vocais de Alun quanto os de Emma transbordam sinceridade e,
mais importante, uma qualidade simples, comum, que lhes tira qualquer aura superior que a
pompa e a ambição das canções, arranjos e produção podem trazer. Parte desta
simplicidade está nas letras de Great Eastern, que em vez de inventar ou contar
histórias, prefere discutir a existência humana e sua sobrevivência a partir do ponto
de vista mais óbvio da música pop - o amor.
Alun e Emma encarnam os dois pólos de uma relação amorosa, marido e
mulher. Cada um representa um arquétipo da personalidade de seu gênero. O homem é
ambicioso, sonhador e apegado ao risco, ao perigo; enquanto a mulher é realista, prática
e afeita à família, ao lar. O homem escolhe a mentira por lhe confortar socialmente, ao
passo que a mulher prefere a verdade para sua própria consciência. Para o primeiro, a
vida é uma ilha de sonhos falsos; para a segunda, a vida é um dia igual ao outro. Não
estamos falando propriamente de homens ou mulheres, são formatos distintos e opostos, que
se encaixam de diferentes formas nas mais diferentes pessoas. Não há certo nem errado -
como a melhor literatura, as letras de Great Eastern nos levam à contemplação e
à reflexão sobre a vida.
Melhor deixar eles falarem. Em The Past that Suits You Best (O
passado que lhe melhor couber), Alun alerta para o otimismo ("Está claro que é
só uma insistência") antes de concluir que "nenhum caminho de verdade me
mostrou onde andar/ Mas as mentiras que contei me tiraram da lama". Emma pega o ponto
logo a seguir (em Accused of Stealing) e tenta iniciar um diálogo: "Conte-me
suas confissões/ Deixe-me ser ouvido para seus pecados", mas ao ouvir a mentira como
definição, percebe que o parceiro nunca irá mudar e explica sua posição: "Se eu
agüentasse, eu deixaria você acreditar no que pode escolher/ Mas como agir quando você
só vê uma coisa?/ (...) Eu limpo a sujeira e lhe mostro a porta/ E se você continuar
vindo, eu pediria para você tentar... um pouco mais". E conclui: "Fui acusada
de roubar suas falas/ Mas elas não estão falando de tempos estrangeiros/ Mas para manter
os demônios no lugar/ A inocência é necessária".
Em American Trilogy, Alun continua sua confissão: "Eu me
acostumei com um tipo de servidão social/ E ninguém aceitaria o que me tornei/ Egoísta,
azedo, fraco/ O suficiente para te enojar/ E ultimamente eu acho que estou roubando
pedaços de vida/ Me leve pra casa", "Acho que meu controle sobre a vida está
diminuindo". O refrão vem o redimir como consciência: "Há um luz em minha
mente/ Estou pensando no que disse/ Toda febre em meu cérebro/ Estou bem agora/ Até
suporto a dor".
Reasons for Silence traz a personagem feminina retraindo-se
frente à realidade: "Encontros recentes estão me dizendo/ Que minhas razões para o
silêncio se justificam/ (...) Todos estes fingidores fingindo ser/ Como reconhecem as
pessoas que vêem?/ Vidas por números passam por mim". E ela confessa sua tentativa
em mudar: "Tentei fingir mas me descobriram/ Falsos que forjam estão acabando/ Sou
só eu, mas deixarei-me ser e os outros livres/ Mas sei quem vencerá/ Estou fora".
A belíssima Thirteen Glinding Principles costura três letras
diferentes: cada um dos vocalistas canta uma parte em uma caixa de som, alternando os
vocais com o outro e formando uma música própria que, se ouvida de uma vez só, faz
tanto sentido quanto as partes cantadas em separado. No forte refrão, os dois justificam
suas escolhas em uníssono: "Eu não escolho, deixo-me levar".
No Danger canta a fraqueza masculina como qualidade pátria,
quase um hino. "Das histórias que ouvi/ Eu decidi rejeitar o bravo/ Abraçar o
covarde e o fraco", canta antes de desembocar num irresistível refrão, que clama
pela união popular: "Não sabemos que somos fortes suficientes/ E as chances vêm
logo/ Mas, gente, não estamos apaixonados/ E estamos cantando fora do tom". O mesmo
Alun segue cantando Aye Today, insistindo na canção mal cantada como metáfora
para a liberdade: "Canções desafinadas/ Me lembram que estou livre".
Em Witness, Emma canta uma segunda chance para o parceiro:
"Você vem comigo?/ Quero viver estes anos de novo/ Não há dignidade em perder um
amigo/ Éramos jovens e achávamos que o tempo nunca ia ir embora/ Se eu tentar muito, eu
te perco/ Se eu te perder muito, eu te acho/ Passamos dez anos juntos que parecem ter
acabado/ Você tem tempo?/ Inclinação?/ Está muito certo?/ Como continuar com coisas
melhores ao seu redor?/ Temos que brigar?/ Complicações para nos sentirmos bem?/
Passamos anos sonhando, mas nossos sonhos nos desviaram/ E agora acabou".
O disco todo duela o pesar da verdade e o amargor da mentira, mostrando
os lados bons e maus de cada uma destas escolhas. O que se destaca de cara é a confiança
que os dois vocalistas emprestam para os seus "papéis", tornando Great
Eastern em talvez um dos discos mais profundos sobre a relação amorosa (abordando os
dois lados da moeda, coisa difícil mesmo fora da música pop).
Mas enquanto nos faz pensar, nos faz sonhar. Produzido pelo mago Dave
Friedmann (que ajudou o Mercury Rev, o Mogwai e o Flaming Lips a saírem da adolescência
musical), Great Eastern é coberto com arranjo clássicos que se desdobram entre
harpas, gran pianos, cordas, oboés, fagotes, trompas e trombones. Os arranjos - compostos
pelo grupo, que não sabe escrever música - não ofuscam as belas melodias que funcionam
como centro de todas as faixas. Pelo contrário, realçam sua beleza, transformando o
álbum no mais belo disco lançado até agora neste ano. Se o britpop acabou para dar
espaço para, entre outras coisas, esta jóia, valeu seu fim.