Campinas, Sábado 13 de Janeiro de 2001
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termometro.jpg (11688 bytes)
01.jpg (41791 bytes)Visão panorâmica

Jimi Tenor sobrevoa os recantos mais fascinantes da música do século 20 e, com a ajuda de uma orquestra polonesa, faz seu vôo mais belo e audacioso

Alexandre Matias

A arbitrária imposição geográfica da Europa como centro do mapa-múndi (no meio, no alto) reflete-se no inconsciente planetário, fazendo com que muitos realmente acreditem que exista alguma diferença entre hemisférios norte e sul que não tenha sido criada pelo preconceito subliminar difundido pelos povos euro-americanos. Pode ser que realmente não exista mesmo pecado do lado debaixo do Equador, mas do lado de cima também não tem e eles se mostram ridiculamente formais ao tentar escondê-los. Não é muito difícil ouvirmos dizer que fulano vai "subir" para a Europa ou "descer" de volta para o Brasil. O preconceito vem disfarçado de passivo e embutido no pensamento do planeta, fazendo com que nossas noções de sociedade e humanidade possam ser determinadas por linhas imaginárias.

Mas as calotas polares acabam funcionando como referenciais fundamentais do nosso planeta, uma vez que seu eixo magnético, que causa a rotação de todas as noites e dias, perpassa exatamente por estes continentes de gelo. Em qualquer um deles, é possível ter uma visão global e única do planeta. Esteja no Ártico ou na Antártida, a sensação de se estar "em cima" de todo um planeta é inevitável e o céu horizontalmente ovalado posiciona o globo terrestre perfeitamente solto no espaço. É como se pudéssemos ver o planeta de fora, ainda estando dentro dele. Sim - de certa forma, estamos no verdadeiro centro do mapa-múndi. Tanto faz quem fica em cima ou embaixo - ou melhor, não importa. O que importa é que o mundo fica onde realmente deveria estar, em qualquer mapa: ao redor.

A Finlândia é um dos poucos países que encostam no Ártico e sua atmosfera pacata e tranqüila - ridicularizada pelos outros povos escandinavos - faz com que o país seja sinônimo de Pólo Norte (afinal, é lá que mora o Papai Noel, não é?). A passividade e apatia típica daqueles países do norte da Europa faz com que sua produção cultural não seja tão evidente em grande escala, afinal, a Finlândia é um país auto-suficiente. Por isso, grande parte de seus maiores nomes da música local são apenas versões "filandesadas" dos sucessos nos Estados Unidos e em seu continente. Nada que merecesse muito destaque fora de seus limites territoriais, para vergonha do maior nome da música local, o erudito Sibelius. Até que uma errática e deliciosa biografia passasse a destoar com discos cada vez mais notáveis e audaciosos.

A história de Jimi Tenor confunde-se com a da evolução da música pop de seu país. Ele começou tocando em festivais de televisão, populares no começo dos anos 80, em bandas como Himo e Pallosalam, até que montou sua própria banda, Jimi Tenor and the Shamans. Na mesma época (do meio para o final dos anos 80), a Finlândia descobria o rock alternativo e o modus operandi punk, levando-os às últimas conseqüências. Os Shamans eram um de seus principais grupos e sua personalidade musical vinha de sua obsessão: enormes tonéis de óleo vazios, usados como percussão.

Entre o industrial e a música de vanguarda, os Shamans trabalhavam com percussão mecânica e manual, inventando instrumentos para conseguir os sons que procuravam. Começa aí a colaboração de Tenor com Matti Knaapi, músico dos Shamans cujas habilidades como engenheiro e designer ajudava na invenção de novas tecnologias musicais, criando instrumentos improváveis e bizarros. Datam desta época instrumentos até hoje usados por tenor, como a Vera (um trombone de vara acionado por um aspirador de pó, com uma luva de borracha manipulável como encaixe entre os dois, tornando fácil a variação dos tons de sopro), o Liberace (uma vitrola que toca um disco de metal usando molas tiradas de um piano elétrico Rhodes), Sirkka (uma máquina de tambores acionada por pedais que parecia uma bicicleta ergométrica deitada) e o Melokune (também conhecido como "máquina de barulho", que consiste num aparelho de walkman acionado por força manual). Os Shamans gravaram três discos (Total Capacity of 216,5 Litres, Diktafon e Fear of a Black Jesus, este último, gravado em Berlim, em 1992), o suficiente para Tenor entediar-se com a quantidade de barulho que faziam (que quase o haviam tornado surdo de um ouvido) e decidisse afastar-se da música.

Mudou-se primeiro para Portugal e de lá seguiu rumo leste, à Nova York, com sua namorada, Tiina Timantti conseguindo emprego como fotógrafo no prédio Empire State - tirava fotos de pessoas que posavam do lado de um King Kong de brinquedo. Foi aí que ele começou a perceber como poderia ser agradável às pessoas, não importa quão diferentes elas fossem. Ao mesmo tempo, foi juntando uma coleção de fotografias de pessoas estranhas, reunidas em uma exposição chamada X Factor. Ele também tocava em uma banda num clube sado-masoquista e acabou tornando-se amigo das prostitutas. Voltou para a Finlândia, onde começou a trabalhar em filmes feitos por ele e Tiina, misturando amadorismo pornográfico, paródia política, escatologia, teatro absurdo e estética trash. Seus ois primeiros filmes (Painmines I e II) contavam a história de um super-herói que praticava luta livre. Depois vieram Dr. Abortensein (que juntava crítica pró-aborto à estética do expressionismo alemão), Jean Dickius (a dessacralização da maior figura exportada pela Finlândia, Sibelius) e Urinator (sobre mutantes que enchiam uma piscina de urina e eram destruídos por super-heróis). Pararam de fazer filmes quando não encontraram um cenário adequado para Towering Public Lavatory Inferno, em 1993. Outro projeto abortado foi um filme pornô feito de massinha.

Em 1994, Jimi abandonou seu passado transgressor e fez um disco irônico de soul chamado Sähkömies, rindo de seu passado hardcore com baladas derretidas cheias de duplo sentido. O disco foi lançado pela pequena gravadora Puu e logo foi absorvido pela principal gravadora internacional de seu país, a pequena mas respeitada Sähkö Records (casa do techno frio e seco da Finlândia, capitaneado pelo Pan sonic). A virada aconteceu quando uma das faixas de Sähkömies - Take Me Baby - estourou na Love Parade alemã daquele ano. Logo, criava-se um pequeno culto ao redor de Tenor, cuja reputação aumentaria cada vez mais. Foi um passo para ser contratado pela gravadora inglesa Warp (isso, aquela do Aphex Twin e Autechre, que o Thom Yorke e o Radiohead tanto reverenciam ultimamente), num episódio curioso: o dono da Warp, Steve Beckett foi assistir a sua apresentação na Inglaterra no final de 1996, sem muita convicção. Não bastasse ter sido seduzido pelo calor voluptuoso deste soulman do pólo norte, ainda presenciou uma cena que lhe deu a certeza de estar diante de um showman, quando, incrédulo, viu servirem um belo filé de cavalo no meio da apresentação, sobre o teclado do artista. No meio de uma balada, Tenor saboreou calmamente o pedaço de carne, cortando o bife enquanto cantava, mastigando enquanto tocava o teclado. Tranqüilamente, jantou e tocou sua canção sem que uma ação interferisse na outra. Um show, sem dúvida.

Foi o começo da dominação européia. Lentamente, a fama de Tenor começava a crescer como um Isaac Hayes eletrônico e branco, tocando baladas semipornográficas de fazer Prince ficar roxo de vergonha (e inveja). Logo após lançar Intervision, em 1997 (pela Warp), mudou-se para Barcelona, onde começou a colher os frutos de seu trabalho. Com Organism (lançado no ano passado), Tenor já tinha uma senhora reputação tanto no circuito de black music quanto nos círculos eletrônicos. Era hora de mudar.

Trancafiou-se num projeto ousado e radical: associar-se ao compositor erudito polonês Zbigniew Karkovski (conhecido por colaborações com Blixa Bargeld e Clock DVA) e gravar um disco ao lado da Orquestra do Grande Teatro de Lodz, também polonesa. Karkovski logo abandonou o projeto (por achar que não iria contribuir o quanto gostaria), deixando Tenor à vontade com os 55 músicos da orquestra, todo o coral Pro Canto e diversos músicos de estúdio de nacionalidades diferentes. Todos trancafiados num castelo ("à base de repolho e salsichão", ironiza a frase no adesivo na capa do disco, "inspiração vem das formas mais estranhas"), Tenor saiu com seu disco mais ambicioso - Out of Nowhere (Warp/Matador, importado).

O álbum começa com a faixa-título - impenetrável, densa e fingindo-se assustadora. Tenor conduz a orquestra com dois olhos no jazz moderno da metade do século: o cérebro em está Sun Ra (o tresloucado maestro que aboliu as fronteiras do gênero rumo ao espaço sideral) e o coração em Stan Kenton (o explorador insaciável que foi à África e à América Latina à cata de ritmos improváveis), cogitando uma trilha sonora claustrofóbica para os momentos mais desesperadores de filmes de ficção-científica (quem já viu O Enigma de Andrômeda, Solaris ou 2001 sabe do que estou falando). Mas é apenas uma introdução: "Do nada", diz o título, nos apresentando ao novo universo sonoro de Jimi Tenor.

Hypnotic Drugstore nos traz de volta à sua praia musical, como se quisesse confortar. Mas as diferenças tornam-se claras à entrada indiana - canto hindi, tablas e cítara abrem espaço para um soul sinuoso e envolvente. Paint the Stars continua o clima de sedução, desta vez sem ritmo. Minimalista, a faixa induz a um transe erudito, enquanto Tenor derrete toda sua libido como um Barry White menos superficial, tratando a luxúria com requinte luxuoso e tecnocrata (é a única faixa a usar instrumentos eletrônicos) típicos da novo techno francês.

O sax que abre Pylon nos transporta para o futuro Blade Runner; onde os avanços tecnológicos são cuidadosamente disfarçados para não darem à vista, cercado por uma atmosfera noir, suada e enfumaçada ao mesmo tempo. Blood on Borsch é um crescendo expressionista que volta a cogitar a hipótese do heavy metal ter sido criado por Richard Wagner, mas incorporado em Tony Iommi, do Black Sabbath, em vez do sempre referido Jimmy Page. Backbone of the Night é outra ascensão musical, lenta e gradual, que, com traços de lounge music e ensaio de orquestra, transformando-se num soul erudito de enrubescer Isaac Hayes.

Outro soul, Spell - indubitavelmente o momento mais cativante do disco - homenageia Curtis Mayfield ipsis literis, com direito à toda pompa multiinstrumental que Tenor tem à manga. Better than Ever limita-se a uma simples frase ("Está melhor que antes") e uma resposta dada em backing vocals, crescendo cada vez mais, tornando-se mais envolvente à medida que ganha mais instrumentos.

Night in Loimaa remete aos filmes de David Lean (de Passagem para a Índia): exotismo pangeográfico do século passado e respeitabilidade vitoriana. Mas logo cede ao ritmo, tornando-se trilha de um policial hindu, à moda dos clássicos de Bollywood (como a indústria cinematográfica indiana é conhecida). O disco termina com a deslumbrante Call of the Wild, um dueto lascivo entre Tenor e sua esposa, Nicole Smith, em que ele usa a orquestra para criar uma floresta sonora, à moda Caravan, de Duke Ellington.

Ao final do disco, fica a sensação de falta de fôlego e de desconcentração. Em um vôo rasante e orbital em recantos escondidos e fascinantes da música universal deste século, como se estivesse no centro e no topo do mundo ao mesmo tempo. E, de fato, ali ele está.

Entrevista: Jimi Tenor

Out of Nowhere parece ter sido um trabalho gigantesco. Não deve ter sido fácil.
Jimi Tenor: Fazer as demos pro disco foi até fácil. Os problemas começaram na prática. Meu arranjador não me entregou os arranjos a tempo e eu tive que escrever tudo para a maioria da orquestra em menos de duas semanas. Eu estava pirando.

Você devia ter trabalhado com o compositor polonês Zbigniew Karkovski...
Eu não sei qual foi o problema de Zbigniew, mas acho que ele agiu corretamente. Ele deu algumas boas idéias para a orquestração, como o uso de cítaras, mas... Eu acho que ele queria trabalhar em projetos mais barulhentos. Tudo bem.

Como você foi fazer um disco como este? Não é o que esperávamos: nada de máquinas e, no lugar, uma orquestra, coral e até cítaras e tablas...
Eu cansei de escutar aquilo chamado de música experimental eletrônica e techno de bom gosto e beats e mais beats que não terminavam nunca. Então resolvi fazer um manifesto usando nenhum destes tipos de tecnologia. Eu estava preparado para errar, permitir improvisos, cantar coisas emotivas. Basicamente tudo que fosse humano. Eu queria que me divertir com os músicos em vez de fazer tudo sozinho.

Por que o disco foi gravado na Polônia?
A Polônia é mais barata. E eu gosto de lá, é parecido com a Finlândia. Tem um espírito "bom o suficiente" lá.

Como foi gravar com uma orquestra sinfônica? Era o que você esperava?
Eu pensava que eu perderia mais tempo falando sobre música e coisas assim, mas não houve isso. Muito bom. Eles começavam a tocar e pronto. Alguns ritmos eram mais difíceis para eles, principalmente coisas repetitivas.

O público ficará surpreso e até confuso, quando ouvir a faixa de abertura. Como você acha que esse disco será recebido?
As pessoas vão ficar feliz de ouvirem algo sério, mas que não demora mais do que cinco minutos.

Da onírica Paint the Stars à trilha de filme de ação que parece ser Night in Loimaa, Out of Nowhere soa bem cinematográfico.
A grande sacada de música para filmes é o comprimento. Você pode ter coisas complexas que duram 23 segundos e pronto. Normalmente, compositores sérios não fazem coisas curtas e eles entram num processo de masturbação mental que dura para sempre e ninguém quer ouvir.

Você gostaria de fazer uma trilha sonora? Eu ouvi dizer que parte do disco Europa era para ser uma trilha...
Sim, diretores, liguem para o meu agente Geoff Wener. Eu quero trabalhar!

Falando em filmes, algum daqueles filmes está nos planos?
Eu espero que minha amiga Jusu Lounela tenha algumas idéias, porque eu não tenho. Não há porque se fazer filmes se não se tem idéias.

Qual a sua favorita em Out of Nowhere e existe alguma faixa que você gostaria de refazê-la?
A minha favorita é Better than Ever, apesar de eu achar que poderia soar mais psicodélica. Se eu quisesse fazer algo diferente, preferia começar um novo disco.

Finalmente, uma espiada no futuro: o que vem aí?
Eu tenho algumas idéias do que usar. Talvez uma big band. Eu também estou pensando num programa de TV, o Jimi Tenor Show!!

Jimi Tenor comenta faixa a faixa de Out of Nowhere

Out of Nowhere
"Eu queria dar um ar de ficção científica a esta faixa. Eu tentei lembrar da cena de abertura do Planeta dos Macacos, quando eles andam no deserto quente - talvez não seja a de abertura, propriamente. Enfim, um deserto pegando fogo num planeta desconhecido. Eu estava junto a um dos membros da orquestra durante a gravação, tocando meu fotofone perto das cordas. O primeiro take foi muito lento e demorou muito. Eu disse pro Tadeusz (o regente) que tinha que ser pelo menos dois minutos mais rápido, caso contrário os jovens iriam perder interesse no disco. Sabíamos que ia ser a faixa de abertura. O segundo take foi ótimo".

Hypnotic Drugstore
"Esta foi a única faixa em que eu tive que modificar muito na edição e usei muito seqüenciador. A versão do disco é uma mistura de takes diferentes. Gravamos tudo em DAT durante as sessões".

Paint the Stars
"Foi a primeira faixa que gravamos, pois tem apenas a orquestra, não tem baixo nem a sessão rítmica. Eu não disse para a orquestra como eram os vocais. Na verdade, eu não sabia o que ia cantar. Eu fiz os vocais depois, em Londres. Eu acho que eu estava querendo fazer algo bem sexual".

Pylon
"Uma peça totalmente improvisada. Eu pus uma linha de baixo na sala através de um pequeno amplificador de guitarra e improvisei uma melodia de sax enquanto Nicole tocava sinos. Depois eu acrescentei o teclado Rhodes".

Blood on Borscht
"Eu me deixei levar por esta. O tamanho original era pelo menos o dobro da versão do álbum. Quando eu comecei a imprimir as partituras e contar os compassos, decidi encurtá-la. Eu apaguei cerca de 80 compassos e ela ficou do tamanho que está no disco. Na verdade, eu apaguei 81 compassos acidentalmente e é por isso um dos ciclos antes do meio-tempo tem apenas três compassos".

Backbone of the Night
"Eu sinto uma certa culpa por esta... A versão que ensaiamos era diferente, era muito bombástica, com tambores pesados. Eu gostei daquela versão. Mas não estava firme o suficiente, então fiz uma versão quase ambient. De repente, a gente grava a versão pesada no ano que vem".

Spell
"Esta é a faixa mais comercial de todas. Fiquei feliz de ouvir que nem tudo que eu faço é não-comercial. Mike Kearsy fez um belo trabalho com os arranjos. Eu acho que todos estávamos bem felizes ao fazer esta faixa. Eu fiquei, ao menos. Queria ter sinos tubulares nela e consegui!".

Better than Ever
"Esta faixa me agrada muito e é minha favorita. O arranjo na metade funcionou otimamente. Chris Dawkins contribuiu bastante neste disco e as guitarras desta são ótimas! Ao menos pra mim. Eles tinham um belo Hammond no estúdio na Polônia que eu usei nesta faixa".

Night in Loimaa
"Esta foi um pesadelo de gravar e editar. As coisas que escrevemos eram difíceis ritmicamente e tivemos que gravá-las em segmentos. Gostei do resultado final. Eu espero que soe chinês para as pessoas que tem ao menos uma vaga noção do que é a China".

The Call of the Wild
"Esta é sem a orquestra, apesar de ser a que eu mais queria que eles tocassem. Gastamos o tempo e não tínhamos as partituras na hora na Polônia. Depois gravamos a base rítmica no Mike Wilson em Londres e eu comecei a juntar coisas em cima dela. Minha mulher Nicole fez os vocais e Wanda Pittman os de apoio. A maioria das coisas eu gravei com meu walkman e depois colei-as todas no gravador multicanal".