Em
Quality Control, o Jurassic 5 pede permissão para mudar a história do rap
Alexandre Matias
Quem pegou o primeiro disco do Jurassic 5 logo que ele saiu, em 1998,
sabia que tinha algo precioso em mãos. Antes de imprimir seu som em disco, o grupo de Los
Angeles era referido apenas como um ótimo sexteto vocal que insistia em errar o número
de integrantes no nome do grupo, cuja referência dinossaura também não era nada genial,
depois de dois filmes-parques temáticos homônimos de Spielberg. Mas o som propriamente
dito não conseguia ser traduzido de forma correta até a própria audição, quando as
referências pareciam limitadas para descrever como ele mantinha uma tradição que se
refere às próprias origens do hip hop e ao mesmo tempo soava moderno.
Não adiantava dizer que o grupo reunia valores esquecidos pelo rap nos
últimos dez anos, como a fusão de instinto coletivo e senso comunitário, o
individualismo de brincadeira (mais vitrine da personalidade do que egoísmo cego),
tímpanos abertos para qualquer tipo de música e uma atitude na boa. Nada da barra pesada
ou do super glamour que tomaram conta da cultura hip hop na última década. Com quatro
MCs e dois DJs (formação que pouco a pouco vem ganhando espaço no meio), o grupo
remonta tradições ainda anteriores à invenção do rap, como o canto de rua do começo
do século, o gospel cantado ao redor de fogueiras urbanas que deu origem ao doo-wop, a
soul music e o blues caipira. Esta vem a bordo de uma das marcas registradas do Jurassic
5: o canto em uníssono.
Quando Akil, Zaakir (Soup), Chali 2Na e Marc 7 estão rapeando por
conta própria, remetem diretamente ao chamado daisy movement, vertente bicho grilo do hip
hop, tendência que, no começo dos anos 90, abriu espaço para bandas como Jungle
Brothers, A Tribe Called Quest, Arrested Development, e mais particularmente à banda que
deu origem a este movimento, o De La Soul. Mas quando todos os quatro cantam juntos, em
coreografia vocal irretocável, conseguem uma bela harmonia, dando margem a floreios
verbais que enfatizam aspectos da letra e da melodia que passariam despercebidos se apenas
falados.
Atrás dos vocalistas, os dois tocadores de disco tiram a gravidade da
música para não deixar a peteca cair enquanto ela embala no ritmo. Cut Chemist, o
principal DJ, é um colosso em seu instrumento e sua reputação nos círculos hip hop é
tão grande quanto a de DJ Shadow - que, ao contrário de Chemist, tem um nome entre os
produtores de música eletrônica. Os felizardos que ouviram o primeiro EP do J5 já
tiveram uma amostra de seu poder de fogo na impressionante Lesson 6: The Lecture,
em que Chemist esmerilha seu virtuosismo nas pick-ups usando uma aula de química como
base. Seu discípulo direto, o DJ Nu Mark, não envergonha seu mestre e mantém a mesma
pegada e gosto por misturar elementos estranhos à música.
Quality Control (Interscope, importado), seu primeiro disco
propriamente dito (embora o EP contivesse 9 faixas), pega estes elementos e amadurece-os
de forma espetacular. Sucumbimos a um ataque verbal anticelebridade, anti-ostentação,
antissistema e pró-comunhão de idéias, sons e mensagens, embasado pelo respeitoso
instrumental disparado pelos DJs. O título faz jus ao resultado que ouvimos, como se o
grupo realmente tivesse um rigoroso controle de qualidade.
A intro How We Get Along dá o tom: "O que estamos para
fazer é mostrar como nós nos entrosamos: nos entrosamos através do contato visual e
ouvindo uns aos outros. Mas não é só isso, como pelos ritmos que aprendemos com os anos
e, acima de tudo, através da harmonia. Vamos te mostrar diferentes maneiras de se sentir
bem". Um disco que começa prometendo isso não pode ser de todo mal. Pelo
contrário, The Influence, que dá seqüência, mistura as apresentações
costumeiras de discos de rap com jogos vocais de grupos de soul, com ritmo, garra e calma,
qualidades que se misturam à medida que o disco passa.
O discurso é afiado e tem o ritmo de um belo jogo de basquete: nenhum
dos jogadores hesita quando o microfone é passado e gastam sua versatilidade verbal com
desenvoltura, estilo, habilidade e garbo, conversando sossegadamente sobre como a
indústria subverte a noção de valores das pessoas. "Não somos superestrelas/ Não
queremos ser maiores que somos/ Não nos julgue pelo tamanho de nossas contas ou carros/
Não importe o quanto brilhamos estamos longe de sermos estrelas", cantam juntos em Lausd,
uma das faixas mais pesadas do disco. Logo após, entra World of Entertainment (W.O.E.
is Me) que sobre um funk deliciosamente sinuoso discursa sobre o mundo de fantasia do
sucesso: "Bem-vindo ao mundo maravilhoso do entretenimento/ Onde a arte imita vida e
as pessoas são famosas/ Bem-vindo ao mundo que o showbusiness criou/ Onde luz,
câmeras, ação é a linguagem". "Ou você é parte do problema/ Ou parte
da solução/ Qual sua contribuição para a vida?", disparam sobre Contribution.
No instrumental, fica claro a ampla visão dos DJs sobre a música do
século 20. Há de tudo: de grupos de doo-wop obscuros dos anos 50 (como os Hi-Los) ao
padrinho do soul caipira da Stax (Rufus Thomas), buzinas e latas (ao final de Monkey
Bars), um octeto de cordas (Jurass Finish First), gravações de parentes e
amigos, jazz funk dos anos 70 (Contribution). Cut Chemist faz seus malabarismos de
costume, mas nada de cair o queixo quanto no disco anterior ou em seu trabalho com o jazz
funk latino do supergrupo Ozomatli. Brinca com colagens e com o ritmo em dois momentos
distintos do disco (Contact e Swing Set), mas nunca com os dois ao mesmo
tempo. Talvez para valorizar o trabalho de seu aprendiz, Nu Mark, que assume a produção
em algum momentos memoráveis do disco.
Na capa do disco, um trocadilho visual coloca o grupo ouvindo um velho
toco de árvore, headphones plugados à madeira enquanto uma agulha de toca-discos lê os
sulcos que o tempo desenhou no tronco da árvore decepada. O recado é simples e direto:
preste atenção nas coisas em sua volta e dê ouvidos ao mundo. Só aí, comece a falar.
O Jurassic 5 está falando e o rap pode estar começando a mudar. Preste atenção.