Pensar o rock como aquela mistura de blues com country tocada com baixo, guitarra e
bateria e toda sua longa descendência é andar para trás, nessa altura do campeonato. Se
este é seu conceito de rock e você se julga roqueiro, olha bem para o papel que você
representa. Preso numa fórmula de rebeldia vendida como peças do vestuário, o rock
tradicional se tornou algo tão conservador quanto reacionário. Até seus filhotes mais
agressivos - como o metal e o punk - hoje vendem pasta de dentes e clipes na MTV.
"Rocknroll!", gritado como um grito de independência e revolução,
está morto - embora sua essência continue vagando por aí.
Ela não está nem na música eletrônica, nem no hip hop, nem no dub jamaicano, no
jazz, no noise ou no samba. A atitude embutida dentro do rock não anda de mãos dadas com
estilos musicais definidos. Ela está na capacidade de percepção que as diferenças
entre gêneros são meras nomenclaturas que facilitam a vida de quem compra e quem vende
disco. Ao notar que o maniqueismo de Duke Ellington ("só existem dois tipos de
música: boa e ruim") é tão verdadeiro quanto preciso, resta-nos descobrir o que
está por trás desta vontade de quebrar barreiras.
E lá está o simples prazer de ouvir música; a sensação insubstituível de absorver
o sentimento e a sensatez do som. O problema é que a maioria das pessoas se condiciona a
ouvir determinados tipos de música, estreitando grotescamente seu horizonte. Uma vez que
não se sai de uma determinada faixa musical, o ouvinte torna-se isolado de um mundo
inteiro de sentido e sensações e quase automaticamente arredio em relação ao novo. É
o começo da velhice - que só existe na cabeça -, quando começamos a reclamar que
"essa música nova é só barulho" ou "é tudo a mesma coisa". Por
isso, o roqueiro que ainda vangloria os grandes méritos do rocknroll
necessariamente faz isso com uma dose de ingenuidade, conservadorismo ou ironia.
Mas rock talvez nunca tenha sido um simples gênero. Seu espectro vai da música negra
norte-americana de raiz a grupos de doom metal da Escandinávia, bandas de surf na
Austrália, a ju-ju music africana, a estética da publicidade para adolescentes, o
krautrock alemão, o hip hop, hippies, o universo do reggae, o conceito de world music,
house francesa, drumnbass com samba, do-it-yourself, funk - o melhor da
música pop mundial parecia girar em torno do conceito de rock e todas as diferentes
escolas de música que chegaram a esta superfície tiveram direta ou indiretamente
influência deste monossílabo em inglês.
Os anos 90 assistiram o crescimento desta tendência de aniquilar fronteiras entre
gêneros musicais. Enquanto nos 80 cada tribo tinha seu gueto e nenhuma delas se misturava
- a não ser em briga -, nos 90 todo mundo é de todo mundo. Nada mais natural que entrar
numa loja de CDs e sair com um disco de rap, outro de pop e um de música eletrônica.
Hoje as pessoas estão expandindo seus horizontes musicais instintivamente e o
inconsciente coletivo abriga cada vez mais diferentes correntes e vertentes sonoras.
Uma das primeiras bandas a dar início a esta tendência foi o Primal Scream. Se antes
o grupo era apenas sublinhado como projeto paralelo do baterista do Jesus & Mary
Chain, em 1991 um disco mudou tudo. Juntando na mesma ficha técnica elementos suspeitos e
improváveis como o baixista Jah Wobble (ex-PiL), o duo eletrônico Orb, o produtor dos
Rolling Stones Jimmy Miller, a vocalista Denise Johnson e a Boys Own Productions de Andrew
Weartherall e Hugo Nicholson, o PS criou uma rave ambulante chamada Screamadelica, onde
psicodelia, dub, música eletrônica, rocknroll e funk dançavam no mesmo
passo, malemolente e preguiçoso.
A partir daí, todos os discos do Primal Scream se tornaram mutações temáticas do
disco de 91. Give Out But Dont Give In, de 94, deixa-se seduzir pelos prazeres
carnais do rock sulista americano, caipirão e desaforado, as veias entupidas de heroína,
os braços de mulheres, a boca de cerveja. Vanishing Point, de 97, é uma viagem pelas
diferentes manifestações da loucura em gêneros musicais escusos como reggae, rock,
punk, funk e house. No ano seguinte, o grupo entregou o mesmo disco ao produtor de dub
Adrian Sherwood, que afundou o som do grupo no pântano lamacento do groove jamaicano,
transformando Vanishing... no retardado Echo Dek.
A nova fantasia do grupo é uma farda de guerrilheiro e sua atual droga musical é o
êxtase eletrônico em estado bruto. Cada um dos três últimos discos do Primal Scream
encerram conceitos musicais e temáticos ao mesmo tempo, como se procurasse a essência de
cada um dos gêneros analisados. Em Give Out... o grupo casou rock com excesso, em
Vanishing..., psicodelia com meditação, em Echo Dek, dub com abstração. O novo disco,
XTRMNTR (Creation, importado), o Primal Scream dedica-se à música eletrônica atual e
seu fator de rebeldia, o elemento político que uma rave pode ter, o fim do clichê que
dance music emburrece as pessoas.
O clima de paranóia pós-ciberpunk é detonado logo após que um toque de telefone
celular parece acionar a bomba relógio que o disco tenta parecer. Kill All Hippies vai
preparando o clima de agressão com zunidos eletrônicos funcionando como alarmes que
alertam para ataques aéreos e o boogie de James Bond anos 90 travam os nervos para o
recado. Quando o dono da festa Bobby Gillespie entra em cena, ele é tão agressivo quanto
doce. "Você tem a grana/ Eu tenho a alma", canta em falsete como um Curtis
Mayfield com raiva, "Não dá pra comprar/ Não dá pra possuir". O ataque é
tão simples quanto didático e desenha a linha demarcando o território - de um lado,
"vocês", donos do poder e da alta tecnologia, globaritarismo financêntrico,
corporativismo multinacional, monolito de dinheiro e podridão. Do outro,
"nós", que vivemos a vida sem machucar ninguém, que sabemos quais são os
verdadeiros valores da vida, que temos nojo de toda essa imundície mercadológica e
sabemos aproveitar o aqui, agora. Impossível ficar na dúvida de que lado se está.
Accelerator segue o clima apocalíptico. Vemos o grupo levar seu lado Stooges às
últimas conseqüências graças ao dedo do arquiteto de ruído Kevin Shields, também
conhecido como o líder do My Bloody Valentine. Shields transforma o punk selvagem com
doses de rock primitivo que apenas grita "COME ON!" num triturador de
microfonia, como se procurasse encontrar o DNA de uma pessoa com uma serra elétrica. A
faixa-título é uma típica faixa Primal Scream apenas acrescida da atmosfera de
terrorismo sonoro que o grupo faz correr pelo disco como um rastro de fogo e gasolina.
Swastika Eyes aponta o inimigo com uma metáfora arrasadora no título. Os olhos de
suástica podem ser vistos em rostos de qualquer tipo de autoridade quando esta exerce
este poder: padres e policiais, pais e patrões, presidentes e parlamentares, políticos e
picaretas. É literalmente impossível ser autoritário sem exercer o medo e o respeito ao
mesmo tempo - e respeito não tem nada a ver com medo. O ambiente sonoro ajuda a prender a
tensão no ar, enfiando a canção numa discoteca alemã que não tem como não fugir de
todo imaginário nazista, cheia de pulso e militarismo germânico.
Pills é perigosa como um gangsta rap (de fato, ela começa apenas com acordes frios de
um velho DX7 e canto gregoriano) e Gillespie dedica mais da metade da música em berrar
todas as combinações das palavras "fuck" e "sick" possíveis. A
paranóia vira baixo astral e a ressaca parece bater forte, enquanto violinos zumbem como
mosquitos ao redor do ritmo quadrado. Blood Money é a primeira conexão com o jazz
raivoso do final dos anos 60. Apesar do começo ser reto como um hardcore, logo a faixa
começa a ser visitada por diferentes samples de um free jazz lânguido e observador que
logo sai de cena para improvisos do ritmo e sons tocados de trás pra frente. Coisa feia,
no bom sentido.
Keep Your Dreams é o momento de tranqüilidade, quando Bobby solta os músculos da
face pela única vez no disco, enquanto reza pela fé ao violão. Como o clima do disco é
eletrônico, aos poucos a faixa (prima de Star, de Vanishing..., e Damaged, de
Screamadelica) vai transformando-se num trip hop triste e cabisbaixo. Insect Reality traz
o horror urbano de Aphex Twin em Come to Daddy (com criancinhas assustadoras e tudo).
MBV Arkestra - If They Move KillEm é a continuação do remix da faixa homônima
que Kevin Shields já havia feito. O primeiro título da canção explica muita coisa -
primeiro vem a sigla do grupo de Shields, eternizado por tratar barulho de forma dócil e
suave, por domar a microfonia sem que esta perca a intensidade ou a agressividade,
influência descarada de bandas como Bardo Pond e Mogwai. O segundo vem do nome da banda
que acompanhava o jazz alienígena de Sun Ra. Com sua Arkestra, Ra explorava os limites
siderais do jazz (foi o primeiro a explorar o imaginário sci-fi na música negra e dizia
ter nascido em Saturno), dando voz a cada instrumento para que, simultaneamente, criassem
um universo em movimento de som. É a fusão das duas lógicas que assistimos durante o
longo e monstruoso mix, que faz o ritmo funk original gravitar e condensar-se numa enorme
e assustadora nuvem negra. E já que estamos nessa de remix, que venham os Chemical
Brothers assinalar com seu groove robótico as tendências nazi de Swastika Eyes, com
toques de trance e big beat.
Bernard Sumner, do New Order, dá uma mão em Shoot Speed Kill Light, ajudando a
aumentar a tensão na planície de sentimento que apenas repete que "injetar speed
(anfentamina) mata a luz", num inédito manifesto antidrogas vindo do Primal Scream.
Por cima da canção, filigramas de som atravessam de um lado para o outro como coquetéis
molotov trocados por bombas de gás lacrimogênio. O disco fecha com a versão suingada
para Im Five Years Ahead of My Time, do obscuro grupo psicodélico americano Third
Bardo, que faz questão de manter o clima pesado do disco. Porque não é fácil, não
está fácil, nem vai ser fácil. Mas o primeiro passo é saber de que lado estamos. Com
XTRMNTR, o Primal Scream separa o joio do trigo sem meios-termos. A revolução está
sendo televisionada - resta que aprendamos a usá-la. Faça você mesmo.