Campinas, Sábado 13 de Janeiro de 2001
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termometro.jpg (11688 bytes)
01.jpg (41791 bytes)Rito de passagem

O Lambchop aproxima a soul music do country e obriga o gênero a se reciclar no ótimo 'Nixon'

Alexandre Matias

Desolado, o caubói olha para o horizonte. O deserto se ergueu, o chão tornou-se uma parede de concreto cheia de janelas dividida em diferentes alturas. Várias tonalidades de cinza cruzam os céus e as paredes, entre listras e círculos coloridos. "Tudo não é mais do mesmo jeito", pensa triste. Suas roupas têm um tom marrom que o destaca da paisagem. Das pessoas. De tudo. O excesso de imagens, sons, informações, gritos, buzinas, apitos soa como apenas uma maçaroca de poluição sonora que ele esforça-se para não percebê-la no fundo da música que toca em sua cabeça. Dentro dela, uma discreta guitarra slide flutua entre cordas e uma leve bateria de jazz. "Crescer não é deixar-se moer", pensa, observando um mundo que não é seu, "o mundo se vai a cada dia fedido que passa". "As crianças nas ruas/ Tirem os brinquedos delas e os quebre/ Olhe para elas, elas fugirão", o mundo continua exatamente o mesmo, só mudou de roupa, "para todos nossos cérebros massivos/ Que chamam nossos restos engasgados/ Dói/ E é certo/ Que algo irá romper-se (por dentro)".

Este caubói chama-se Kurt Wagner e é dele um dos melhores discos que a country music jamais fez. No comando de um exército composto por quinze músicos (sem contar as cordas da Nashville String Machine) chamado Lambchop, Wagner observa a passagem do século 20 para o 21 com indiferença, lamentando a empáfia da cidade que viu crescer. Acende mais um cigarro, cospe o gosto de tabaco no chão, olha para cima enquanto ajeita seu violão Gibson L7 de 1946 nas costas. Ouve o country que toca no rádio, vê a cara dos cantores, presta atenção nas letras, no instrumental. Não há nada naquela música que tenha a ver com o que ele conhece por música caipira. Falta sentimento, falta alma.

Falta soul. Numa curva surpreendente, o Lambchop vai de Nashville a Memphis e dá ao country uma vitalidade negra que o rejuvenesce como uma poção mágica. Com ritmo e groove, o grupo vem preparando-se aos poucos para o que acontece em seu novo álbum, Nixon (Merge, importado). Quem teve a oportunidade de ouvir seu último disco, o excelente What Another Man Spills, cruzou com faixas de Curtis Mayfield e Freddie Knight no meio do caminho e viu que Wagner não estava brincando quando ele afinava a voz para lembrar Curtis.

A conexão blaxploitation é tão improvável quanto ineficaz. Mas o que o Lambchop viu no funk épico dos anos 70 foi uma recriação negra do velho oeste, brigas feias em saloons empoeirados, armas sendo puxadas, olhos arregalados, duelos mano a mano. Todos usavam chapéus, se vestiam a rigor, se portavam como capangas de si mesmo. Gigolôs, traficantes, prostitutas, detetives, chefões - toda sorte de canalhas e sobreviventes da selva de pedra eram descendentes morais dos tempos de Billy the Kid e Wyatt Earp. Acompanhando o faroeste black que acontecia em filmes como Shaft, Superfly e Trouble Man, Kurt ouvia uma música séria, triste, que contava ao homem comum coisas que ele entendia, das tentações e provações da vida, da procura pelo sentido em tudo, do questionamento sobre o porquê da corda sempre arrebentar do lado mais fraco. Acompanhando as questões centrais - normalmente respondidas nas próprias canções, como um alívio, respondendo-nos com uma verdade que já conhecíamos -, aquelas músicas sempre vinham acompanhadas de arranjos grandiosos e exagerados, mas tão próximos do tipo de sonoridade daquele sentimento que ganharam um ar de doutrina pessoal em forma de funk.

Ele é conduzido por uma guitarra com suíngue e logo acompanhado por um baixo que assume o papel de espinha dorsal da canção. A bateria nunca entra com o ataque direto que conhecemos do rock'n'roll - ou ela vem suave e delicada ou acompanhada de um pesado time de percussão. Teclados Hammond e pianos elétricos Fender Rhodes ponteiam os arranjos como se recheassem o esqueleto criado pelo trio central. Ao corpo da canção acrescente cordas, sopros, xilofones, vibrafones, oboés, corais, solos de saxofone, guitarra e bateria, e um andamento majestoso. Por cima de tudo, um vocal macio procura duas alternativas extremas: ou o grave amanteigado, pesado e sensual ao mesmo tempo ou o falsete estranhamente masculino, uma voz aguda despida de vergonha.

Wagner adapta este conceito para a country music, acrescentando apenas alguns elementos que lembram mais o gênero branco, como a guitarra pedal steel, o banjo e timbres mais próximos de Nashville que de Memphis. Ao transformar o country no mesmo tipo de gueto repulsivo que os personagens dos anos 70 faziam questão de glamourizar através do dinheiro, roupas espalhafatosas, drogas e violência, o Lambchop faz com que o caubói repense seu papel dentro de seu universo. Brigas não podem acontecer, respeito não se impõe com violência, não há motivo para entrar em conflito com os outros se todos estiverem em paz. A arma continua no coldre, o cavalo apeado para qualquer momento, munição nos bolsos e as trapaças ainda são pensadas, mas não há motivo para usá-las.

Fundindo country com soul, o Lamchop abre com a música que toca no primeiro parágrafo, The Old Gold Shoe, lenta e pensativa. A dobradinha Grumpus ( "eis uma solução: seja careta e bondoso com seus amigos, pare de observar pelas lentes amargas de uma velha instituição. Este aprendizado não é para mostrar, seu asno") e You Masculine You mexem com a auto-estima, puxando-a para cima e para baixo enquanto o arranjo orquestrado questiona o porquê de tudo. "Qual o problema com o garoto?", pergunta Grumpus em tom irônico, "ele tem que estar sempre certo?". O vocal em falsete de Wagner se encaixa perfeitamente no balanço discreto das duas canções, elevando-as para um plano superior.

Up With People constata a mudança da natureza atual do country e da soul music - e da música popular como um todo. "Sim, lá vem o som explosivo/ Que vinha do submundo/ Agora ele emana como uma espécie de assistência social/ Da alma/ Sim, baby, da alma". Ou do soul, se traduzirmos alma para o inglês. Entre sopros e vocais celestiais (que vão crescendo à medida que a música termina), o Lambchop certifica-nos que estamos em outra esfera. "Vamos nos certificar que o monólogo deliberado é tão certo quanto que ele irá cair perto de nós, sobre nós, deixando o que é feito desfeito" - a crítica vai de encontro à massificação da música proposta (e imposta) pela indústria de entretenimento. "Estamos acabando com nossas vidas hoje", reclama, "isto é o que plantamos, esta é a nossa prole".

Nashville Parents se move lentamente à medida que descreve diferentes situações rotineiras. Enquanto "a cidade solta um pio", "os vizinhos tão bebendo tanto que já estão fedendo e logo estarão brigando e pode ficar feio". Roça a barba por fazer, ajeita o cinto e olha fundo nos olhos da moça para quem canta, que sorri com a língua arrastando pela bochecha: "Eu não quero parecer maluco, mas minha língua enrola toda vez que conversamos", ri como se estivesse bêbado, "e você está bem legal nessa nova posição". "Aquela cara engraçada de fibra de vidro na parede só tem graça quando não tem graça nenhuma", continua falando bobagem, até que vai direto ao assunto, "Mas não é tão patética quanto a forma que enchemos nossos dentes de retórica e duvidamos sermos levados como pequenas criaturas para o campo do amor".

O falsete volta à toda na belíssima What Else Could It Be?, sexo disfarçado de balada de amor, com Kurt gemendo agudo sobre a "sweet, sweet soul". Xilofone tocado em uníssono com piano acompanhado de uma guitarra slide muda radicalmente a atmosfera da paixão para a melancolia e The Distance From Her To soa seca como a garganta no deserto, embora o instrumental mantenha a doçura que acompanha a placidez do disco. "Eu fui escroto contigo como você não está acostumada", confessa o vocalista antes de, mais uma vez, afinar a voz, "as luzes lá fora estão longe de casa/ Estou bebendo no quintal".

Uma cascata de cordas invade (Fearless) The Book I Haven't Read e vai diminuindo até deixar Kurt, sua guitarra e alguns grilos cantarolando os primeiros versos da balada de Curtis Mayfield que o próprio Wagner pôs as letras. "Os arrepios nas minhas podem ser o que lembramos/ Lembre-se das vezes que dissemos que poderíamos estar/ Que deveríamos estar". E antes de cantar "...in love" transforma o "l" no começo de vários "lá-lá-lás", que ajudam a enriquecer a delicadeza da faixa. O sabor acridoce torna-se amargo em The Petrified Florist, cética, séria, quase rude, que desfila diferentes expressões para sintetizar o clima tenso e pesado que vai sendo dado pela microfonia, esculpida lentamente pela guitarra: "um vidro quebrado, uma mesa quebrada/ A imagem cuspida, se pudesse/ Um pássaro assustado/ A palavra escrita/ Nossa lógica diária se tornou absurda/ O fechar da porta/ O grito calejado/ A vila dos amaldiçoados".

Nixon termina com a áspera versão para a tradicional The Butcher Boy, um triste conto inglês onde o pai encontra a filha enforcada pedindo para ser enterrada com uma pomba branca como a neve, "para que o mundo saiba que morri por amor". Morrer por amor é algo que sequer passava pela cabeça do caubói antes do disco começar. De costas para a cidade, ela morre como o sol no horizonte. Anoitece, ele se sente mais fraco, cansado, abatido, mas sorri. Depois de conhecer sua beleza interior, ele sabe que o mundo lá fora não importa. O que importa é ser feliz.

Entrevista: Kurt Wagner

Kurt Wagner atendeu o telefone como se nunca esperasse uma ligação do Brasil ("É a minha primeira vez", riu pouco depois das apresentações). Nunca esperou que o sucesso do novo disco de sua banda pudesse chegar por aqui e recebeu a entrevista com boa vontade. Com tempo corrido (ia ensaiar), Wagner foi muito além dos vinte minutos que havia pedido e conversou sobre internet, música country e brasileira, Curtis Mayfield e os anos 70.

Apesar de vocês virem sob o rótulo country, Nixon parece inteiramente dedicado ao período da música negra americana do começo dos anos 70, que recentemente foi batizado de funk blaxploitation. O disco anterior, What Another Man Spills, já tinha versões para Freddie Knight e Curtis Mayfield. Eu queria saber se estas suas referências vêm como reverência ou se é pelo simples fato de vocês terem crescido ouvindo esta música.
Kurt Wagner: É, tem um pouco disso... Nascemos naquela época, portanto é natural que acabássemos... não soando, mas nos referindo àquele tipo de música. Acho que isso acontece com qualquer banda, que amadurece com os sons da adolescência na cabeça. Desde que começamos a fazer isso, no disco passado, tudo aconteceu facilmente.

Mas houve a intenção de soar assim?
Sim, mas de uma forma bem natural. Nos pareceu uma boa idéia, quando começamos a tocar daquela forma, a nos referir a esta época, usar este tipo de conceito como um ponto de referência, não um conceito. Um lugar que pudéssemos nos referir. A partir daí, começamos a definir o que queríamos no novo disco.

Há uma composição sua ao lado de Curtis Mayfield.
Sim, usamos como um sample. Estamos tentando iluminar todos que nos influenciaram, como um agradecimento.

Como aconteceu a parceria? É um instrumental dele?
Pegamos quatro notas em particular, de uma versão dele para Baby It’s You... (cantarola) e passamos a repeti-las e tornou-se The Book I Haven’t Read.

Você não chegou a conhecê-lo.
Não. Ele morreu na época que estávamos terminando esta música, foi um tremendo choque. Mas acho que ele não estava se sentindo bem, pelo estado que estava (Curtis ficou tretaplégico em um acidente em 1990). Eu me sinto triste por ele, era uma situação horrível para um artista como ele.

Você se considera um artista country?
Sim, enquanto country é um conceito. Nós somos de Nashville, que é o centro disso tudo. Somos filhos de operários, crescemos ouvindo isso. Somos artistas country.

Mas o country parece ter se estagnado, pelo que ouvimos no rádio, como Garth Brooks, Shania Twain...
É horrível, é uma vergonha. Apesar de você estar se referindo ao country de rádio comercial, o country contemporâneo também perdeu seu rumo e caiu em uma velha fórmula, preso no comércio.

E como você difere o country tradicional desta geração que batizaram com esse rótulo besta de alt.country?
(Risos) Eu também acho. Não sei, tentamos duplicar e refazer coisas do passado que as pessoas não fizeram antes porque o country tem muitas regras, tentamos quebrá-las, mas sem muito barulho.

O título do último álbum veio da pintura que está na capa, mas parece querer que as pessoas revejam a história.
Exato! É este o ponto.

Porque Nixon é visto como o grande vilão americano... Não que vocês estejam saudando Nixon, mas é como se estivessem recontando uma história diferente da original.
Este é o ponto, eu gostaria que as pessoas entendessem isso. É preciso repensar sobre tudo, porque o que nos passam não é o correto - e se for, existem outras formas. Além disso, há a época que Nixon ainda importava, que era ótima, em todo tipo de música. Pareceu apropriado batizá-lo assim.

E o que você tem achado da forma que a crítica vem o recebendo?
Não sei o que pensar sobre isso, é uma surpresa. Às vezes acho que é demais (risos).

E você concorda que está havendo uma renovação na country music?
Não sei, é difícil dizer de dentro. Não parece country music, as pessoas dizem que Will Oldham é country music... Não acho, acho que estamos apenas reinventando a música americana, como muitos fizeram antes. Explorando e nos desafiando e só. A country music está muito voltada para a tradição e isso é complicado - aconteceu com outros gêneros, bluegrass, blues, jazz... Se você tenta algo novo, você desafia a tradição, a própria música. Então chega a um determinado ponto que é divertido tocar, mas um pouco frustrante porque é só aquilo. Limita demais. Gostamos de ter uma personalidade, uma interpretação pessoa em relação à música. Gostamos de ouvir outros estilos de música, ver o que as outras pessoas gostam de ouvir. É uma pena não podermos depender só disso para viver.

Nenhum de vocês vive da banda?
Não, somos classe operária. Mas acho melhor assim, temos mais liberdade para fazer o que quisermos. Não precisamos vender e isso nos liberta.

Mas a cena independente se beneficiou com a internet...
Sim, de repente. É muito bom, as pessoas estão se comunicando, conversando, por todo planeta. Tudo é acessível, disponível. Às vezes acho que há informação demais em jogo...

É uma época de transformação...
É um tempo curioso... Mudanças radicais, essa quantidade de informação... As pessoas têm de organizar seu tempo em sua vida, para conseguir ter tudo - é excitante de uma forma, mas também é confuso...

...Como eram os anos 60/70 descritos por Nixon. Você trocaria aquela época por esta?
Tempos parecidos, você tem razão. Acho que prefiro viver agora, porque eu não sei o que vai acontecer (risos)!

Vocês já começam a gravar o novo álbum agora?
Estamos em turnê, vamos fazer alguns shows agora no verão, mas é difícil, porque a banda é grande. Mas acho que logo voltaremos a gravar...

Há planos para uma carreira solo?
Não... Lambchop é o que importa. Somos muitos, juntar toda essa gente e fazer música com eles é um desafio pessoal e tanto, não quero fazer outra coisa. Talvez até faça com uns Lambchops menores, mas ainda é o Lambchop.

E pra acabar, o que você conhece de música brasileira?
Só o que fez sucesso recentemente por aqui, Tropicália. Mac tem tocado muito disso aqui, mas são discos velhos... Não sei se essas pessoas têm a importância que tiveram em sua época, não conheço a música nova. Os jornais daqui adoram isso, mas eu não sei se isso é verdade...