Campinas, Sábado 13 de Janeiro de 2001
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termometro.jpg (11688 bytes)
01.jpg (41791 bytes)Cena de cinema

Com ‘Bow Down to the Exit Sign’ David Holmes faz seu disco mais ousado, sem perder a marca pessoal

Alexandre Matias

Quem conhece os prazeres irrefutáveis do fone de ouvido - este estranho apetrecho que usamos para diminuir a vida útil de nossa audição - não titubeia ao ter de enfrentar alguma tarefa na rua. Basta colocá-los para refugiarmos num oásis de tranqüilidade sonora, mesmo que filtrado pelos sons da rua. Mas não é uma simples fuga da realidade como querem os reducionistas - gente que se irrita à simples visão das pessoas com fones pendurados no pescoço.

Não é isso. O fone de ouvido portátil faz parte do cotidiano de qualquer cidade grande, deixar a música dominar o barulho que vem da rua como um gás mágico, que faz com que o asfalto esquente como um bom grave, buzinas se confundam com instrumentos de sopro, motores com instrumentos elétricos e os passos acertem o ritmo da música. A música entra como um antídoto ao veneno do marasmo do caos urbano. Com música na cachola, a cidade perde o aspecto cinza e depressivo, ganhando cores, nuances e uma profundidade cênica quase imperceptível se ouvimos apenas o som que sai da rua. Não que não haja arte escondida no misto de concreto e asfalto que compõe a grande massa amorfa que conhecemos como cidade grande. Mas com a música - invenção humana que quase sempre associamos a algo vindo da natureza -, ela se mostra mais convidativa e se revela com mais facilidade. Mas o melhor é observar as pessoas. A música parece acompanhar cada movimento humano, cada passo, giro de pescoço, cumprimento. Sorrisos mudos que se trombam com olhares desconfiados. A paisagem humana na cidade dá a esta um aspecto multifacetado unificado justamente pela música.

E se o assunto é trilha sonora para filmes que não existem (ou melhor, para filmes vistos na rua), chame o DJ David Holmes. Ex-punk irlandês, Holmes largou a guitarra aos 15 anos, quando descobriu os poderes da música negra no inconsciente rítmico das pessoas. Começou a dar sons em festa, resgatando discos perdidos no tempo para o dia-a-dia da pista de dança. Soul, hip hop, funk, jazz, reggae, rhythm’n’blues... Se o som era negro e fazia dançar, entrava de alguma forma no repertório de Holmes. Logo, passou a remixar alguns artistas (como St. Etienne e Therapy?) e resolveu lançar-se ao mercado. Primeiro com pseudônimos (Scubadevils, Disco Evangelists, Dub Federation) até finalmente, como seus mentores trilheiros (Morricone, Herrman), lançar-se usando apenas o próprio nome.

Estreou no mercado com a trilha de um filme imaginário - This Film’s Crap - Let’s Rip the Seats, de 1995 -, mas só chamou atenção com o fantástico Let’s Get Killed. O "tema" deste "filme" era mais amplo que o disco anterior - passávamos o disco inteiro ouvindo bases instrumentais sendo ponteadas por diálogos, criando a sensação que o ouvinte é um taxista, atento a tudo que acontece no banco de trás. À medida que ia desfilando música e trechos falados, ocupava os espaços vazios da música com som ambiente, criando a nítida impressão que a música estava sendo criada conforme ia sendo tocada, como se o botão "play" do CD-player ativasse um ser vivo chamado disco. Com ...Killed, Holmes subitamente virava referência entre os alternativos e eletrônicos e se tornava uma espécie de Booker T pós-moderno, cheio de grooves sossegados, funks macios, soul instrumental, trip hop cinematográfico. Lançou outros dois discos (Stop Arresting Artists e Mix 9801), em escala menor, apenas remixando trabalhos alheios. Mas graças a Killed que chamarem o cara para fazer uma trilha sonora de verdade.

Out of Sight (que foi traduzido no Brasil como Irresistível Paixão) mostrava que o sujeito ainda tinha muito trabalho para mostrar. Lidando com diálogos do filme e faixas antigas do organista brasileiro Walter Wanderley e desenterrando magistralmente It’s Your Thing, dos Isley Brothers. O disco deixou o clima de paquera entre George Clooney e Jennifer Lopez (o casal protagonista do filme) pegando fogo, cheio daquele calor setentista, mas sem perder em momento algum o vínculo com a tensão fim-de-século que atravessava seus dois discos anteriores.

Com o novo disco, Bow Down to the Exit Sign (Go Beat, importado) Holmes parte para mais um importante passo na carreira. Tendo convencido a crítica com Let’s Get Killed e o mercado com Out of Sight, resta a fronteira final - o público. Para isso, o DJ convocou uma lista de vocalistas de diferentes meios - o cantor soul Carl Hancock Rux, a ex-parceira de Tricky Martini Toppley-Bird, Jon Spencer do Blues Explosion e Bobby Gillespie, do Primal Scream. O disco também é uma trilha sonora para um filme que não existe (o autor mesmo cogita: "Um Perdidos na Noite contemporâneo), com anotações de roteiro, diálogos e cenários descritos do encarte. E assim, como se filmasse um disco, Holmes cometeu seu trabalho mais plural e, por isso mesmo, o mais ousado.

Bow Down... começa com a vinheta Live From the Peppermint Store, que depois de um curto jingle nos ambiente num boteco esfumaçado - conversas ao fundo, ruído de copos batendo em garrafas, passos, diálogos... Tudo para a entrada precisa do groove que compõe a recriação para Compared to What (que já passou pelas vozes de Al Jarreau, Billy Paul e Roberta Flack). Soul corpulento e macio, ele é guiado por um baixo suntuoso e bela e deliciosa voz de Carl Hancock Rux, poeta underground de Nova York conhecido da marginália artística local. A música vai diminuindo, o ritmo vai parando e novos ruídos - buzinas, platéia de show, diálogos, até que uma explosão e o grito de Bobby Gillespie abrem Sick City. Guitarreira e explorando os limites do ruído e da microfonia como uma velha canção dos Stooges, a faixa é a primeira incursão oficial de Holmes ao reino do rock - e ele faz bonito.

Da mesma forma, entre solos de guitarra e rádios sendo sintonizados, Sick City vai sossegando aos poucos e entra a vinheta Dexter’s Apt - Aftermath Afternoon, entre toques de telefone, gritos, gemidos e instrumentos de corda... Entra um pesado baixo acústico que abre alas para Bad Thing, onde Jon Spencer faz seu discurso gospel repleto de ecos. Mas a faixa segue o clima introspectivo e Spencer passa a sussurrar, mostrando o outro lado de seu vocal berrado - que, inevitavelmente, acaba aparecendo. Nova vinheta de ruído (Voices, Siren, Rain) e entra a instrumental Incite a Riot, em que um rapper desenfreado (mas tranqüilo, apesar da quantidade de palavrões) mantém atmosfera entre a introspecção e a suspeita, graças à mesma linha de baixo que filtra todo o álbum. A também instrumental 69 Police instaura um astral de seriado de televisão (culpa do teclado), mas sem perder o ritmo. Mas o pulsar some e dá espaço para uma das faixas mais tensas do CD.

Outrun, com os vocais de Martina Toppley-Bird, dá aos pesadelos de seu ex-parceiro Tricky uma lufada de ar fresco inexistente em seu rap claustrofóbico. Rux volta impondo o ritmo graças ao funk tagarela da interminável Living Room, outro grande momento do disco. Happiness é mais uma vinheta (meio jazzy) que antecede a segunda vinda de Gillespie, desta vez com a psicodélica Slip Your Skin, repleta de teclados jurássicos daqueles usados no começo do Pink Floyd.

Zero Tolerance traz Martina de volta, agora dentro dos conformes de Holmes, sussurrando um delicioso soul, que explode em rock’n’roll pela metade. Commercial Break é mais uma vinheta, a última, que vê uma caixa de música se transformando num belo vibrafone que vai sintetizando as principais qualidades do disco e definindo o DJ com as qualidades de seu som. Soul, dub, reggae, funk, hip hop, ambient, rock, música eletrônica... Tudo num emaranhado sonoro indefinível, mas deliciosamente preciso. Agora é só colocar no fone de ouvido e ir pra rua.