Goela
abaixoOs Autoramas chegam a seu
primeiro CD cuspindo na cara dos desafetos ao mesmo tempo em que fazem dançar
Alexandre Matias
Quem tentou fazer rock nos anos 90 passou por maus bocados. Promessas infundadas,
contratos ultrajantes, shows desmarcados em cima da hora, empresários picaretas,
produtores infames, crítica especializada quase inexistente, intrigas, boatos e, claro,
pouca - ou nenhuma - grana. Salvo os sobreviventes da geração Juntatribo, o rock
nacional voltou a ser mal visto no meio musical brasileiro. Mas a cara de bandido cantada
por Rita Lee nos anos 70 mudou e roqueiro brasileiro passou a ser visto como otário.
Os três Autoramas passaram por tudo isso. Em suas bandas anteriores, Gabriel Thomaz
(que saiu do Little Quail & the Mad Birds), Simone do Vale (Dash) e Bacalhau (Planet
Hemp) levaram calote, tomaram rasteira, tiveram seus tapetes puxados, apanharam até
aprender. Mas aprenderam. Reunindo todos os prós e contras da cena underground e do
showbusiness, transformaram seu novo projeto numa banda teoricamente infalível, pronta
para dominar ambos terrenos. E depois de voltar ao zero de suas carreiras (produzindo os
próprios shows, cartazes, turnês e gravações), entraram numa grande gravadora (a
Universal, através do selo Astronauta) do jeito que queriam, fazendo tudo de acordo com o
que estava nos planos.
Mas ninguém sairia impune. Mesmo que não tivessem a chance de vingar-se como deveriam
dos entraves que atrapalharam suas carreiras anteriores, resolveram disparar farpas em
forma de canção. E sem querer o letrista Gabriel encontrou uma lacuna na música
brasileira - poucos artistas cantam o troco que os pilantras merecem tomar (sendo que a
maioria destes fazem samba). Passaram a cantar contra os pulhas que só atrasam a vida de
qualquer um, seja amorosa, profissional ou pessoal. Canções ácidas em que a ironia e o
veneno tomam conta, transformando-se em hinos pessoais que qualquer ouvinte pode encaixar
em seu próprio ponto de vista.
Mas se por um lado as letras cospem no olho do mau-caratismo, a música faz dançar.
Com um pé na new wave e outro na surf music, os Autoramas fazem rock como se todo show
fosse um baile. A assinatura musical do grupo é o baixo terrivelmente distorcido de
Simone, que conduz as canções como um rolo compressor, deixando Gabriel livre para
solinhos ocasionais de guitarra. No fundo, a bateria pesada e dançante de Bacalhau ajuda
a festa começar.
O resultado pode ser conferido no primeiro disco do grupo, que chegou às lojas esta
semana. Stress, Depressão & Síndrome de Pânico (Universal), a estréia do
supergrupo é o melhor retrato deles mesmos. Produzido pelo ex-Ultraje Carlo Bartolini
(que conseguiu capturar a atmosfera elétrica dos shows da banda), o álbum empurra goela
abaixo a fórmula mágica que o grupo desenvolveu em seus dois anos de existência.
Sobram elogios para todos. Fale Mal de Mim, a música de trabalho do grupo, é um bom
exemplo da força das letras do grupo: "Sua vida anda meio sem graça/ Pois a única
saída que você acha é me difamar/ Isso até que veio bem a calhar/ Eu estava precisando
de alguém para me divulgar", canta Gabriel, sempre em tom sarcástico, "Fale
mal de mim/ Fale o que quiser de mim/ Pois todo mundo que te conhece/ Sabe que é isso que
você merece". Com cara de rockabilly e peso punk, a faixa é só o começo da lista
negra que forma o repertório do grupo.
Carinha Triste é o que os Buzzcocks fariam se em vez dos Beatles, ouvissem Roberto
Carlos: "Talvez a humildade tenha sido o meu defeito/ Mas só me critica quem jamais
amou alguém", lamenta antes de xingar o excesso de felicidade que é ingrediente da
hipocrisia, "Eu não sei lhe dizer se estou fazendo mal em não fazer o mal". A
frenética Ex-Amigo dá a bela cutucada naquele sanguessuga que se diz seu amigo: "Eu
chego à conclusão que na verdade é minha culpa/ Por não ter me livrado de você há
muito tempo atrás", espeta antes de levantar o que pode ser o lema do grupo,
"Dizem por aí que a vingança não leva a nada/ Mas, pensando bem, pode tornar tudo
isso bem mais divertido".
A ótima Agora Minha Sorte Mudou traz o único vocal solo de Simone, que transforma-se
numa Ronnie Spector pós-punk, sussurrando sua voz grave ao cantar o "vai ou
racha" que marca a nova fase de suas carreiras: "Agora que o tempo passou/ Agora
é fácil ver o que eu posso corrigir/ (...) Agora que o tempo passou/ Agora é fácil ver
onde eu errei/ Nada me impede eu posso ir em frente/ (...) Agora eu sei o que realmente
quero/ Assim é bem mais fácil conseguir". O final da canção monta paredes de
microfonia enquanto Gabriel e Simone dividem backing vocals que nos levam aos momentos
mais bucólicos e hipnóticos dos Pixies.
Autodestruição não tem meios termos: "Em nome da ambição e da vaidade/ E da
vontade de passar por cima de quem você bem entender/ Fruto de um deslumbramento
totalmente equivocado/ Atitudes que só fazer acontecer/ A sua autodestruição".
Pesada e insistente, ela te avisa do perigo que é "se meter com gente burra/ Sabendo
que ela é burra/ E bem mais poderosa que você". A instrumental Jogos Olímpicos
casa baião com surf music em clima de perseguição policial. Tudo Errado opta pela
ironia para alfinetar a passividade de quem só reclama: "Se tudo está errado/ A
culpa não é minha/ Nunca quis atrapalhar ninguém/ Também não vou perder meu tempo/
Tentando mudar a imagem errada/ Que as pessoas têm de mim/ É bem melhor ficar
calado", enquanto a banda embala uma versão rock e minimal para o tema de Peter
Gunn.
Eu Não Morri embala um baile anos 50 enquanto descreve o prazer de perceber-se vivo:
"Foi a melhor coisa que já me aconteceu/ Foi a maior emoção que eu já conheci/ E
é tão bom estar aqui pra contar/ Por essa eu não esperava: eu não morri". A
fulminante Boa-Fé ameaça um traidor com "um bom corretivo" e é quase grudada
na elástica Bahamas.
"Se você não entendeu então preste atenção/ Eu não agüento mais papo, eu
quero ação/ Então deixa de dar voltas e escolhe sim ou não". Ação cobra uma
reação do outro lado, seja ele uma namorada ou a própria platéia. Catchy Chorus, a
única em inglês, canta o "refrão grudento/ que veio nos importunar/ Uma nova
obra-prima/ Escrita por um jovem gênio/ Porta-voz de nossa geração/ E o fim da minha
paciência", até que esta se esgota, "Não, não, não/ Eu não quero ouvir
esta música de novo". A instrumental Souvenir (do grupo OMD) fecha o disco em tom
instrospectivo. O pacote é completo com outra instrumental, Motocross, que não está no
disco, mas pode ser comprada no compacto em vinil lançada pela gravadora goiana Monstro
Records, que você pode conseguir via email (monstrodiscs@yahoo.com ) ou por telefone
(062-9998-6780, com Leo Bigode). A faixa também se encontra disponível em MP3 através
do loja virtual Som Livre (www.somlivre.com.br).
Com o primeiro disco, o Autoramas quer marcar terreno e dar a cara à tapa. É um chute
na porta, tentando fazer com que o rock volte ao inconsciente coletivo nacional na marra
ao mesmo tempo em que é um disco de rock (no sentido mais puro do termo) como há muito
não se via por aqui. Garanta o seu já!]
STRESS, DEPRESSÃO E SÍNDROME DE PÂNICO,
FAIXA A FAIXA
por Gabriel Thomaz
Fale Mal de Mim
"A que a gente escolheu essa pra ser o single e a música do clipe por
caracterizar bem a banda, tem todos elementos aí: baixo distorcido, guitarra limpa,
vibrato, palminhas, eu e a Simone cantando, batida dançante e a letra. Que é aquele
papo: pra falarem mal de você, basta que você exista".
Carinha Triste
"Essa é mais jovem guarda, jovem guarda destilada, como já escreveram aí. A letra
é uma reclamação, eu fiz junto com o Kassin e o Nervoso do Acabou La Tequila".
Ex-Amigo
"Talvez ela seja a mais porrada do disco, o baixo distorcido vai levando a
música inteira. É uma das letras que eu mais gosto. É uma situação que todo mundo já
passou, com aquela pessoa escrota que vive do teu lado se dizendo teu amigo quando na
verdade é a última pessoa que você precisa ter ao seu lado".
Agora Minha Sorte Mudou
"Essa é a que a Simone canta, é a mais linda (risos). Deu arrepio na hora em
que a gente ouviu na mixagem, a voz subindo. A letra é aquilo: "tomei na cabeça,
tomei na cabeça, tomei na cabeça, mas agora vai" (risos)".
Autodestruição
"Essa é a que a gente mais trabalhou na gravação, a questão de efeito e
timbres. A guitarra entra fazendo outra melodia, diferente da voz. No show é uma das que
têm mais impacto".
Jogos Olímpicos
"É uma das que eu mais gosto. Foi a que deu menos trabalho na gravação, a
primeira instrumental. Ela é bem simples e eu fiquei muito feliz com o resultado, o
solinho ficou meio japa (risos)... Já ouvi em pista, a galera vai ao delírio. Eu encarno
o Dick Dale geral, só que eu não toco um décimo do que o velhinho toca".
Tudo Errado
"É uma das mais antigas, é a única que no disco que tem o instrumento a
mais do que o baixo, a guitarra e a bateria, que é o teremim. A letra é sobre preguiça,
letargia, aquela pessoa que sempre deixa que os outros façam as coisas, mas é cantada
num tom bem irônico".
Eu não Morri
"Uma sensação de alívio, da pessoa ter passado por um monte de coisas e
no fim dá tudo certo, ela não morre".
Boa-fé
"Essa é a do Nervoso. É a música do cara que roubou a namorada do outro
(risos)".
Bahamas
"Curta pra caramba e bem dançante. Adoro esse solo de guitarra, tem um puta
impacto. Aliás, as instrumentais têm um puta impacto, não fazem o show cair, isso é
muito legal".
Ação
"Uma das mais pop e a letra mais masculina do disco, só que a Simone canta
o refrão e mostra que não é tão masculina assim, pode acontecer com qualquer um, homem
ou mulher. Gosto pra caramba do riff".
Catchy Chorus
"É a inglês, a "alternativa". É um puta orgulho pra gente, é a
que mais rolou em pista de dança. As pessoas acham que é de banda gringa (risos). Meu
pai achou que era de banda gringa, "essa música é sua?" (risos)".
Souvenir
"É uma música do OMD, uma banda technopop dos anos 80. Ontem a gente tava
ouvindo aqui, o nosso arranjo é completamente diferente. Essa música fez com que um
sonho meu se realizasse, que era o público cantando com a gente uma música instrumental
e rola isso total. É um grande orgulho para nós". |