Campinas, Sábado 13 de Janeiro de 2001
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termometro.jpg (11688 bytes)
01.jpg (41791 bytes)O dia em que
o hip hop encontrou
o drum’n’bass

Roni Size colide as duas principais culturas de rua da atualidade num dos discos mais agressivos da história da música eletrônica, ‘In the Mode’

Alexandre Matias

"Vejam, vejam! Eles estão se encontrando!". Impossível esconder a felicidade quase científica ao detectar a aproximação definitiva do drum’n’bass com o rap. Ela acontece no novo disco do papa jungle Roni Size e sua trupe de DJs, o Reprazent - o excelente In the Mode (Universal). Depois de discos mix, muitos shows e o trabalho com a cantora Leonie Laws no excelente Breakbeat Era (cujo disco de estréia foi o melhor álbum de drum’n’bass de 1999), Size volta a trabalhar ao lado de sua tropa de assalto - os DJs Krust, Die e Suv, o MC Dynamite, a cantora Onalee, o baixista Si John e o baterista Rob Merril - disposto a consagrar sua importância na história da música eletrônica. Se Goldie pirou na megalomania e LTJ Buken prendeu-se ao underground, restava apenas Roni dos três primeiros grandes nomes do gênero para colocar o drum’n’bass definitivamente na ordem da história - em vez de deixar morrer como um modismo.

In the Mode é mais uma de suas incursões a outros universos musicais pelo ponto de vista de seu gênero de origem. Seu primeiro álbum, o aclamado New Forms, vencedor do prêmio Mercury em 1997, visitava pequenos guetos de jazz, usando o encorpado baixo acústico como instrumento-base. No projeto Breakbeat Era, a intenção era turbinar as canções pós-punk de Leonie Laws, cujo talento em compor é equivalente a seus dotes vocais, cheios de presença de espírito e personalidade. O disco do ano passado deve ter dado um "clique" na cabeça de Roni Size - era isso: vocais. Fatboy Slim, Moby, Chemical Brothers, Prodigy... Todos faziam sucesso fazendo eletrônica graças aos vocais empregados em seus hits.

E não precisa ser nenhum gênio para cogitar a possibilidade do drum’n’bass encontrar-se com o rap. Afinal, a cena jungle - o nome original, e pejorativo, do gênero eletrônico - era uma versão britânica da cultura hip hop. Do mesmo jeito que a cena que começou em Nova York encontrou eco em toda periferia de grandes cidades do mundo (principalmente as com considerável população negra), em Londres a cultura enraizou-se desde seus primeiros passos - e o inverso do que aconteceu com o hip hop americano deu-se com o inglês. Em ambos casos, as principais figuras da cena eram os DJs. Eram eles que escolhiam os grooves e os graves certos, colocando batidas e pés alinhados ao som do mesmo compasso. O MC, com o microfone na mão, era apenas o apresentador do DJ, fazendo a galera agitar-se com empolgação de estar submetida à vontade das picapes. Mas nos Estados Unidos, o rapper passou a ganhar mais espaço na mídia e a falação desenfreada era mais exótica que os malabarismos de vinil - daí a transformação do rap num modismo e sua explosão em termos de popularidade. Na Inglaterra, isso não aconteceu e o DJ pôde crescer seu próprio caminho, suas qualidades reverenciadas pelos motivos certos. Esta é a diferença crucial entre as duas culturas de rua. De resto, os b-boys rodam quase o mesmo break no chão e os grafiteiros desfilam suas formas tortas pelas paredes com as mesmas cores.

Com seu novo álbum, Roni Size faz com que os dois partes finalmente façam as pazes e se reconheçam parentes entre si, irmãos do mesmo sangue. Quase todas as faixas têm vocal e eles mostram para os norte-americanos - o destinatário é claro - o quanto eles estão atrasados com um material humano precioso em mãos. Para isso, a tropa reúne alguns dos luminares da cena pop americana ligada ao hip hop - o rapper Method Man, o mais importante vocalista do Wu-Tang Clan; Zack de La Rocha, vocalista do grupo de rap metal Rage Against the Machine; e Rahzel, o melhor beat box (bateria feita na boca) do mundo, do grupo Roots. Além dos próprios Dynamite e Onalee, representantes vocais do próprio Reprazent. Juntos, fazem o drum’n’bass soltar a voz, podendo ser ouvido por quem sequer havia cogitado a possibilidade.

O álbum abre como se nenhuma mudança tivesse ocorrido desde o primeiro disco - Railing Part 2 repete a mesma base que Railing (a abertura de New Forms), com novas letras. Mas o gelo só começa a ser quebrado com a nervosa In + Out, com toques de electro e até percussão brasileira. System Check é descendente direta de New Forms - é uma espécie de Brown Paper Bag (o hit do primeiro disco) parte 2. Até aí, tudo dentro dos conformes.

Até que as coisas fogem de controle. Baixa o Dr. Dre em Roni Size e ele transforma seu inferno jungle num gueto gangsta em altíssima velocidade, como se em vez de lidar com computadores e vida virtual, o filme Matrix tratasse de briga de gangues nas ruas de Nova York - é Method Man, com Ghetto Celebrity, ajudando Size a ligar dois continentes num mesmo tipo de som. Mais à frente, Rahzel entra esmerilhando percussão e baixo (drum’n’bass, ora) em sua própria garganta na contagiante In Tune to the Sound - provavelmente a primeira vez que fazem d&b com a boca (o desgraçado imita até a voz robótica do vocoder).

Who Told You é o hit do disco e o clima de batida policial não deixa escapar o principal encontro entre rap e drum’n’bass do disco. É certamente a faixa que agradará fãs de ambos gêneros. Pelo resto do disco, ouvimos Dynamite (Switchblade, Heavy Rotation Dirty Beats) e Onalee (Lucky Pressure, Balanced Chaos e Staircase), além de Roni Size esmerilhar sobre a instrumental Mexican, disparando beats a esmo - até chegar em outro ápice: Center of the Storm, com Zack de La Rocha, tanto Size quando o vocalista muito à vontade ao lidar com novos territórios musicais. O título e os quase oito minutos da faixa (a única a chegar a tal duração no disco, quebrando uma tradição de Roni Size) mostram o quanto ela é importante no disco. Snapshot e Play the Game despedem-se sem desfazer a cara feia.

Como um disco de d&b, no entanto, In the Mode é o mais fácil possível. É claro que Size gosta de esmerar seu virtuosismo nas picapes, entortando o suíngue à medida em que ele parece correr solto. Mas no geral, tirando poucas incursões mais radicais (algumas delas facilitando a audição para os ouvidos acostumados ao rap), In the Mode é um dos menos explosivos discos de Size - do ponto de vista do drum’n’bass. Mas se olharmos do viés da música pop, aí sim: o disco cresce e se mostra sólido e onipotente, disposto a traçar um caminho inédito da história. O alvo de In the Mode, no entanto, não é o público em geral - embora as faixas com os convidados possam render uma popularidade fora do circuito techno -, mas para os rappers. É como se Size explicasse que existe um mundo de ritmos além do passo funk. É só chegar e pegar.