Alexandre Matias
Thom Yorke está passando a mão no
rosto. Seus olhos e lábios estão apertados em uma careta cada vez mais habitual ao
líder do Radiohead. Até que ele começa a rir. Na frente do espelho, Yorke treina como
parecer estranho, alienígena, atormentado, creep. Mas não consegue disfarçar para si
mesmo: está fingindo, sempre esteve, cada vez mais - e as pessoas continuam acreditando
que ele está falando sério. Treina de novo um sorriso enigmático que fez críticos
musicais pelo mundo teorizarem sobre seu significado. Mas acreditem, ele só está
segurando-se para não dar uma gargalhada.
Pois o Radiohead conseguiu, com seu último disco, Kid A, fazer o que muita banda boa
morreu tentando fazer: um disco que sobrevivesse à expectativa pós-obra-prima. Enfrentar
o estúdio após a consagração crítica e pública é uma tradição que parece
atormentar o rock inglês desde sua concepção. É como se a volta ao laboratório
explicasse para o Dr. Hyde que, no fundo, ele é só o Mr. Jeckyll. "Não, você não
é o que dizem!", cobra o espelho, pesada âncora para os devaneios do sucesso e da
fama. O fantasma pessoal do roqueiro inglês - uma paranóia que remonta ao retrato de
Dorian Gray, de Oscar Wilde - atormentou os Beatles nas gravações do álbum branco e do
disco deletado Get Back, visitou o Pink Floyd através do ego de Roger Waters, passou
pelas carreiras de Elvis Costello, Genesis, Clash, Joy Division, Smiths, Stone Roses, My
Bloody Valentine, Blur e Oasis - em vários casos com histórias de excitação que
terminavam em brigas históricas ou músicas muito longas ou depressivas, colagens sonoras
barulhentas sem nexo ou músicos e gêneros alheios à formação original do grupo.
Como muitos antes dele, o Radiohead voltou a pensar num álbum depois que a poeira
digital da explosão positivista em torno de OK Computer, o disco de 1996, baixou. Só que
em vez de seguir pelo caminho de seus antecessores - que sofriam a pressão da mídia e do
público e descontavam-na em sua música, nos produtores e nos outros integrantes da banda
-, o grupo jogou a pressão de volta para o lugar que a gerava. Passou a fingir-se de
vítima da superexposição, uma farsa tão clara quanto a forma que Yorke força os olhos
para envesgarem em quase todas as fotos. O tormento pessoal refletia-se na própria visão
artística que a banda tinha de si, que dizia sentir-se tão culpada quanto o sistema
robótico da modernidade, como uma engrenagem de uma máquina do mal. Lançaram vídeos
que criavam o espectro coitadinho ao redor do grupo. Um reduzia os clipes a meros
comerciais de TV da banda (Seven Video Commercials), outro acompanhava o tormento da vida
de uma megabanda (Meeting People is Easy). Nas entrevistas, falavam em esgotamento
artístico, mudanças de rumos musicais radicais e outras frescuras intelectualóides. O
site dava pistas para respostas que não diziam nada, além de entregar trechos do disco
em andamento apenas para confundir os fãs. Tudo fingimento. Agora que o plano foi
executado, é fácil descrevê-lo, mas mesmo assim, vamos lá:
"A gente finge que tá sofrendo essa pressão e faz um disco totalmente
experimental, do jeito que a gente quiser, se aventura no estúdio sem a interferência da
mídia", dá pra imaginar o pacto sendo feito pelas sete da noite em algum pub numa
periferia qualquer de Londres, "mas ninguém pode rir, ninguém pode deixar passar
que é fingimento, porque senão estraga tudo. Assim, a gente dá uma de maluco e não
precisa fazer vídeo, promoção, entrevista, porra nenhuma. Aproveita esse Napster e vaza
umas músicas nada-a-ver nele, deixa todo mundo se perguntando e a gente tem o tempo que
quiser pra brincar de ser psicodélico em pleno ano 2000". Rá, rá, rá - todos
riram, se cumprimentando. Um sugeriu, "a gente pode até fazer dois discos, um bom e
o outro com sobras de estúdio - e vendê-los separado!". "Isso! Outtakes
instantâneos! Essa nem os Beatles pensaram!". O Prince sim, mas eles não lembravam.
Riram pelo final da noite. Foi bom.
Assim, duas semanas antes do lançamento do sucessor de OK Computer (batizado como Kid
A em homenagem ao primeiro clone humano), qualquer publicação que quisesse ter um pingo
de modernidade já tinha publicado seu "NOVO RADIOHEAD! EXCLUSIVO!" na primeira
página. O projeto Kid A envolvia a mídia de uma forma deliciosamente irônica, criando o
colapso criativo de uma banda como objeto de marketing. Este funcionava como escudo para
as aventuras sonoras no estúdio, que teriam um quê de estranheza para facilitar a venda
- como um jingle, uma trilha sonora. Porque no fundo, as gravações do disco se dividiram
entre composições feitas de forma tradicional e remodelagens deste formato ao redor do
estúdio como instrumento de manipulação musical. As guitarras abandonam o grupo,
deixando apenas um ou outro violão lacônico no canto. A percussão eletrônica é quase
onipresente, militar, dando ao disco o clima claustrofóbico de um inferninho hi-tech
barra-pesada. Em contraposição, entre o ar ambient e glacial de outras faixas,
estáticas no tempo. Kid A lida com a vanguarda da música alternativa atual - vai da dita
IDM ao pós-rock -, mesmo que de forma intuitiva, sem conhecimento de causa. Como várias
bandas inglesas antes dele, o Radiohead tenta falar idiomas que não domina e sem querer
(querendo) os atira às paradas de sucesso.
Mas Kid A se manteve no topo devido a consistência da primeira parte da produção em
estúdio. As experimentações - que na ordem do CD, vinham antes - serviam mais para
situar o novo disco em um ambiente pós-tecnófilo (diferente de OK Computer) do que para
garantir sua estada no panteão da música pop moderna. Tudo que é novo em Kid A não é
propriamente novo: talvez o seja para a massa cada vez maior de fãs do grupo, mas as
referências de ponta citadas pelo grupo já foram ultrapassadas em seus próprios
territórios há muito. Mas é a forma que Kid A é vendido como novo que o transforma em
um dos discos mais importantes do ano passado. É um disco que precisa ser entendido em um
contexto, meio provocação, meio aventura, como o rock deve ser. Mas musicalmente é um
disco inconsistente, sem unidade, com altos e baixos. Não é um clássico, como o disco
anterior. Foi o preço a pagar por não deixar a pressão externa vazar para a música.
Diferente de OK Computer, Kid A já está envelhecendo - apesar de quatro das últimas
cinco faixas.
O que dizer então de Amnesiac (EMI), que já nasce velho. Como as faixas esquisitas de
Kid A, o novo disco do Radiohead é mais decoração do que conteúdo. Sua concepção
também se baseia na mentira, artifício usado pelos pioneiros da ironia na música pop
dos 1990, o U2. O disco de 2001 é composto por sobras de estúdio das mesmas sessões que
originaram Kid A, com a exceção que vai ser um disco mais tradicional, mais rock, menos
alien. A velha tática de Bono: "O próximo disco é um disco de
rocknroll". Juntos, Kid A e Amnesiac formam a resposta que o grupo deu à
ironia inaugurada pelo grupo irlandês em Achtung Baby, em 1991. Mentindo o tempo todo, o
Radiohead guardou a piada apenas para si, num delírio egoísta que dá origem à Década
da Verdade, os anos 00. E, verdade, Amnesiac é um disco anódino, vazio, um nada.
Pior, um nada pela metade. A impressão é que o disco foi lançado do jeito que foi
para suprir duas necessidades: não ter que sofrer pela música, fazendo tudo de forma
fria e racional, e ter de cumprir um prazo mercadológico. Assim, Amnesiac soa metódico,
cirúrgico, calculado. Pode-se traçar um paralelo com Loveless, do My Bloody Valentine,
mas lembre-se que a força que erguia aquelas faixas era muito maior que qualquer picuinha
existente entre Kevin Shields e Alan McGee. Em seu novo disco, o Radiohead soa sonolento,
vago, reticente, triste, frio. Sem se emocionar com a própria música, criaram dois
discos: um racional e calculado, uma bomba-relógio orgânica que parecia nascer no meio
dos cabos soltos de OK Computer; e outro derivativo, um vírus de computador que no
máximo infecta a lista de endereços do programa de correio eletrônico, gerando
toneladas de emails inúteis no ciberespaço.
Como obra de arte, Amnesiac reflete isso: a quantidade de lixo que desperdiçamos no
"espaço virtual" criado por nossos cérebros. Imaginações e criatividades em
conjunto, projetamos uma realidade que nos devota a milhares de preocupações efêmeras
que apenas nos distraem dos motivos centrais da vida. Perdemos nossa inteligência entre
arquivos temporários, discos piratas, códigos de barra, MP3s quebrados pela metade,
direitos autorais, correntes de SPAM, lendas urbanas, listas de discussão, programas de
TV a cabo, gravadores de CD, videogames com acesso à internet; desperdiçando tempo,
atenção, esforço e neurônios para informações que não dizem nenhum pouco a respeito
da vida de cada um de nós. Criamos necessidades ilusórias, satisfeitas pelo consumo. É
assim que Amnesiac se encontra: no lixo cerebral desperdiçado pela civilização no
começo do século 21.
O único mérito do disco é desvendar por uma arte ainda em seus primeiros passos: o
terreno das texturas musicais. Produto da mente febril de Brian Eno durante uma egotrip
alemã, podemos analisar Amnesiac pelo prisma da ambient music e aplaudi-lo. Mas ele não
é um herói solitário nesta nova jornada: há milhares solitários explorando este
território, sejam DJs de hip hop, produtores de música eletrônica, guitarristas noise,
pós-rockers, jungleiros radicais. O Radiohead entra neste time com o agravante de já ter
passeado pelo panteão do rock clássico. Daí ser visto com tanta desconfiança, a mesma
que o acompanha do lado comercial. Andando em território neutro, o grupo inglês provoca
opiniões, provando mais uma vez o quanto a fase que atravessam está vinculada ao
contexto da própria carreira.
Sozinhas, as faixas de Amnesiac não se sustentam. Enquanto Kid A equilibrava os
momentos mais experimentais com formatos mais tradicionais de canção, o novo disco não
consegue fazer esta distinção. As faixas soam tradicionais e experimentais, sem saber
para que lado vão. Sem rumo, soam frouxas, como um rascunho das canções que poderiam se
tornar. Mais um ano no estúdio e Amnesiac seria outra história.
Mas do jeito que está, é falho. Todas as faixas são incompletas, frágeis. As duas
primeiras faixas mostram a divisão de rumos que o grupo tenta fazer: enquanto Packt Like
Sardines in a Crushd Tin Box é rítmica e claustrofóbica, Pyramid Song é lânguida e
melódica. Mas ambas faixas soam exatamente iguais, apesar dos arranjos díspares: eis o
que acontece com uma banda quando ela não escuta a própria música, preferindo se ater
aos adereços. Não há consistência, não há conteúdo, não há essência. O disco do
Radiohead mostra quão vazias todas as discussões a respeito dele são. Pull/Pulk
Revolving Doors só pode ser divertida para quem a editou, um exercício de paciência a
bordo de um programa de áudio com interface gráfica. You And Whose Army? começa
apática e débil, ganhando algum rumo com a entrada da bateria, piano e orquestra, que
dão a pompa rocker que o grupo finge não querer. I Might Be Wrong é um bobo improviso
vocal sobre um riff óbvio de guitarra. Knives Out é um dos poucos momentos em que o
grupo chega a um consenso, numa faixa que poderia estar até mesmo em OK Computer e
Morning Bell/Amnesiac prova a falta de vontade do grupo no estúdio, caindo num arranjo
barroco sem a menor força vital. As faixas finais confirmam a apatia musical do grupo,
que, no máximo, busca novos timbres e intervenções sonoras em busca de alguma
inspiração. Hunting Bears segue o mesmo rumo, só que para guitarristas egocêntricos -
é o novo solo de guitarra (longo, lento, interminável). Like Spinning Plates recria em
versão light o final apocalíptico que Hüsker Dü (uma banda norte-americana de hardcore
- longe de qualquer clichê de vanguarda que possa ter) já havia feito para sua
obra-prima Zen Arcade, ao construir uma música para ser tocada de trás para frente. E
Life in a Glasshouse é xerox malfeito de qualquer música do Neutral Milk Hotel (com uma
pitada de Queen aqui, outra de Velvet Underground ali - afinal, eles são uma banda
inglesa). Não dá: a grande sacada do Radiohead foi manipular a mídia para conseguir
fazer o que quisessem. Depois que conseguiram, não tiveram nenhuma grande idéia. Aí
começaram a rabiscar, sem sentido.
Como uma lâmpada de lava, Amnesiac tem data de validade, mas funciona bem como trilha
sonora se você quiser soar cool até, digamos, outubro deste ano, quando o disco
provavelmente ficar fora de moda. As poucas boas músicas do álbum não sobreviveriam em
discos clássicos do fundo do poço no estúdio como The Wall, o Álbum Branco, The Lamb
Lies Down on Broadway, Closer, Strangeways Here We Come, Sandinista! ou Loveless. Libertos
para se divertirem nas gravações, os cinco Radiohead e o produtor Nigel Godrich travaram
de excitação como crianças em frente a uma loja de brinquedos. Sem ter noção de como
começar, brincaram por brincar - sem saber ao certo o que estava fazendo - e dividiram as
músicas em dois discos, um bom e um de sobras. Amnesiac é o Kid B, o refugo do clone
original, a besta que o homem pode criar sem querer. "Radiohead Amnesiac",
escrevem na contracapa, "Armazene-o à distância da luz do sol. De preferência numa
gaveta escura com seus segredos". Numa gaveta ou no lixo?
No meio da risada, Thom Yorke pára. Continua olhando para o espelho, imaginando uma
capa de revista com a cena que pausou: um sorriso largo na cara do vocalista do Radiohead.
Ele não pensa em nada. Seus olhos entregam a paralisia. Ele pára de rir e olha para o
espelho. Não é uma imagem bonita. De que ele estava rindo?