Campinas, Segunda-feira 9 de Julho de 2001
__________________________________________________
termometro.jpg (11688 bytes)
Nada demais

Alexandre Matias

radiohead2001.jpg (4817 bytes)Thom Yorke está passando a mão no rosto. Seus olhos e lábios estão apertados em uma careta cada vez mais habitual ao líder do Radiohead. Até que ele começa a rir. Na frente do espelho, Yorke treina como parecer estranho, alienígena, atormentado, creep. Mas não consegue disfarçar para si mesmo: está fingindo, sempre esteve, cada vez mais - e as pessoas continuam acreditando que ele está falando sério. Treina de novo um sorriso enigmático que fez críticos musicais pelo mundo teorizarem sobre seu significado. Mas acreditem, ele só está segurando-se para não dar uma gargalhada.

Pois o Radiohead conseguiu, com seu último disco, Kid A, fazer o que muita banda boa morreu tentando fazer: um disco que sobrevivesse à expectativa pós-obra-prima. Enfrentar o estúdio após a consagração crítica e pública é uma tradição que parece atormentar o rock inglês desde sua concepção. É como se a volta ao laboratório explicasse para o Dr. Hyde que, no fundo, ele é só o Mr. Jeckyll. "Não, você não é o que dizem!", cobra o espelho, pesada âncora para os devaneios do sucesso e da fama. O fantasma pessoal do roqueiro inglês - uma paranóia que remonta ao retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde - atormentou os Beatles nas gravações do álbum branco e do disco deletado Get Back, visitou o Pink Floyd através do ego de Roger Waters, passou pelas carreiras de Elvis Costello, Genesis, Clash, Joy Division, Smiths, Stone Roses, My Bloody Valentine, Blur e Oasis - em vários casos com histórias de excitação que terminavam em brigas históricas ou músicas muito longas ou depressivas, colagens sonoras barulhentas sem nexo ou músicos e gêneros alheios à formação original do grupo.

Como muitos antes dele, o Radiohead voltou a pensar num álbum depois que a poeira digital da explosão positivista em torno de OK Computer, o disco de 1996, baixou. Só que em vez de seguir pelo caminho de seus antecessores - que sofriam a pressão da mídia e do público e descontavam-na em sua música, nos produtores e nos outros integrantes da banda -, o grupo jogou a pressão de volta para o lugar que a gerava. Passou a fingir-se de vítima da superexposição, uma farsa tão clara quanto a forma que Yorke força os olhos para envesgarem em quase todas as fotos. O tormento pessoal refletia-se na própria visão artística que a banda tinha de si, que dizia sentir-se tão culpada quanto o sistema robótico da modernidade, como uma engrenagem de uma máquina do mal. Lançaram vídeos que criavam o espectro coitadinho ao redor do grupo. Um reduzia os clipes a meros comerciais de TV da banda (Seven Video Commercials), outro acompanhava o tormento da vida de uma megabanda (Meeting People is Easy). Nas entrevistas, falavam em esgotamento artístico, mudanças de rumos musicais radicais e outras frescuras intelectualóides. O site dava pistas para respostas que não diziam nada, além de entregar trechos do disco em andamento apenas para confundir os fãs. Tudo fingimento. Agora que o plano foi executado, é fácil descrevê-lo, mas mesmo assim, vamos lá:

"A gente finge que tá sofrendo essa pressão e faz um disco totalmente experimental, do jeito que a gente quiser, se aventura no estúdio sem a interferência da mídia", dá pra imaginar o pacto sendo feito pelas sete da noite em algum pub numa periferia qualquer de Londres, "mas ninguém pode rir, ninguém pode deixar passar que é fingimento, porque senão estraga tudo. Assim, a gente dá uma de maluco e não precisa fazer vídeo, promoção, entrevista, porra nenhuma. Aproveita esse Napster e vaza umas músicas nada-a-ver nele, deixa todo mundo se perguntando e a gente tem o tempo que quiser pra brincar de ser psicodélico em pleno ano 2000". Rá, rá, rá - todos riram, se cumprimentando. Um sugeriu, "a gente pode até fazer dois discos, um bom e o outro com sobras de estúdio - e vendê-los separado!". "Isso! Outtakes instantâneos! Essa nem os Beatles pensaram!". O Prince sim, mas eles não lembravam. Riram pelo final da noite. Foi bom.

Assim, duas semanas antes do lançamento do sucessor de OK Computer (batizado como Kid A em homenagem ao primeiro clone humano), qualquer publicação que quisesse ter um pingo de modernidade já tinha publicado seu "NOVO RADIOHEAD! EXCLUSIVO!" na primeira página. O projeto Kid A envolvia a mídia de uma forma deliciosamente irônica, criando o colapso criativo de uma banda como objeto de marketing. Este funcionava como escudo para as aventuras sonoras no estúdio, que teriam um quê de estranheza para facilitar a venda - como um jingle, uma trilha sonora. Porque no fundo, as gravações do disco se dividiram entre composições feitas de forma tradicional e remodelagens deste formato ao redor do estúdio como instrumento de manipulação musical. As guitarras abandonam o grupo, deixando apenas um ou outro violão lacônico no canto. A percussão eletrônica é quase onipresente, militar, dando ao disco o clima claustrofóbico de um inferninho hi-tech barra-pesada. Em contraposição, entre o ar ambient e glacial de outras faixas, estáticas no tempo. Kid A lida com a vanguarda da música alternativa atual - vai da dita IDM ao pós-rock -, mesmo que de forma intuitiva, sem conhecimento de causa. Como várias bandas inglesas antes dele, o Radiohead tenta falar idiomas que não domina e sem querer (querendo) os atira às paradas de sucesso.

Mas Kid A se manteve no topo devido a consistência da primeira parte da produção em estúdio. As experimentações - que na ordem do CD, vinham antes - serviam mais para situar o novo disco em um ambiente pós-tecnófilo (diferente de OK Computer) do que para garantir sua estada no panteão da música pop moderna. Tudo que é novo em Kid A não é propriamente novo: talvez o seja para a massa cada vez maior de fãs do grupo, mas as referências de ponta citadas pelo grupo já foram ultrapassadas em seus próprios territórios há muito. Mas é a forma que Kid A é vendido como novo que o transforma em um dos discos mais importantes do ano passado. É um disco que precisa ser entendido em um contexto, meio provocação, meio aventura, como o rock deve ser. Mas musicalmente é um disco inconsistente, sem unidade, com altos e baixos. Não é um clássico, como o disco anterior. Foi o preço a pagar por não deixar a pressão externa vazar para a música. Diferente de OK Computer, Kid A já está envelhecendo - apesar de quatro das últimas cinco faixas.

O que dizer então de Amnesiac (EMI), que já nasce velho. Como as faixas esquisitas de Kid A, o novo disco do Radiohead é mais decoração do que conteúdo. Sua concepção também se baseia na mentira, artifício usado pelos pioneiros da ironia na música pop dos 1990, o U2. O disco de 2001 é composto por sobras de estúdio das mesmas sessões que originaram Kid A, com a exceção que vai ser um disco mais tradicional, mais rock, menos alien. A velha tática de Bono: "O próximo disco é um disco de rock’n’roll". Juntos, Kid A e Amnesiac formam a resposta que o grupo deu à ironia inaugurada pelo grupo irlandês em Achtung Baby, em 1991. Mentindo o tempo todo, o Radiohead guardou a piada apenas para si, num delírio egoísta que dá origem à Década da Verdade, os anos 00. E, verdade, Amnesiac é um disco anódino, vazio, um nada.

Pior, um nada pela metade. A impressão é que o disco foi lançado do jeito que foi para suprir duas necessidades: não ter que sofrer pela música, fazendo tudo de forma fria e racional, e ter de cumprir um prazo mercadológico. Assim, Amnesiac soa metódico, cirúrgico, calculado. Pode-se traçar um paralelo com Loveless, do My Bloody Valentine, mas lembre-se que a força que erguia aquelas faixas era muito maior que qualquer picuinha existente entre Kevin Shields e Alan McGee. Em seu novo disco, o Radiohead soa sonolento, vago, reticente, triste, frio. Sem se emocionar com a própria música, criaram dois discos: um racional e calculado, uma bomba-relógio orgânica que parecia nascer no meio dos cabos soltos de OK Computer; e outro derivativo, um vírus de computador que no máximo infecta a lista de endereços do programa de correio eletrônico, gerando toneladas de emails inúteis no ciberespaço.

Como obra de arte, Amnesiac reflete isso: a quantidade de lixo que desperdiçamos no "espaço virtual" criado por nossos cérebros. Imaginações e criatividades em conjunto, projetamos uma realidade que nos devota a milhares de preocupações efêmeras que apenas nos distraem dos motivos centrais da vida. Perdemos nossa inteligência entre arquivos temporários, discos piratas, códigos de barra, MP3s quebrados pela metade, direitos autorais, correntes de SPAM, lendas urbanas, listas de discussão, programas de TV a cabo, gravadores de CD, videogames com acesso à internet; desperdiçando tempo, atenção, esforço e neurônios para informações que não dizem nenhum pouco a respeito da vida de cada um de nós. Criamos necessidades ilusórias, satisfeitas pelo consumo. É assim que Amnesiac se encontra: no lixo cerebral desperdiçado pela civilização no começo do século 21.

O único mérito do disco é desvendar por uma arte ainda em seus primeiros passos: o terreno das texturas musicais. Produto da mente febril de Brian Eno durante uma egotrip alemã, podemos analisar Amnesiac pelo prisma da ambient music e aplaudi-lo. Mas ele não é um herói solitário nesta nova jornada: há milhares solitários explorando este território, sejam DJs de hip hop, produtores de música eletrônica, guitarristas noise, pós-rockers, jungleiros radicais. O Radiohead entra neste time com o agravante de já ter passeado pelo panteão do rock clássico. Daí ser visto com tanta desconfiança, a mesma que o acompanha do lado comercial. Andando em território neutro, o grupo inglês provoca opiniões, provando mais uma vez o quanto a fase que atravessam está vinculada ao contexto da própria carreira.

Sozinhas, as faixas de Amnesiac não se sustentam. Enquanto Kid A equilibrava os momentos mais experimentais com formatos mais tradicionais de canção, o novo disco não consegue fazer esta distinção. As faixas soam tradicionais e experimentais, sem saber para que lado vão. Sem rumo, soam frouxas, como um rascunho das canções que poderiam se tornar. Mais um ano no estúdio e Amnesiac seria outra história.

Mas do jeito que está, é falho. Todas as faixas são incompletas, frágeis. As duas primeiras faixas mostram a divisão de rumos que o grupo tenta fazer: enquanto Packt Like Sardines in a Crushd Tin Box é rítmica e claustrofóbica, Pyramid Song é lânguida e melódica. Mas ambas faixas soam exatamente iguais, apesar dos arranjos díspares: eis o que acontece com uma banda quando ela não escuta a própria música, preferindo se ater aos adereços. Não há consistência, não há conteúdo, não há essência. O disco do Radiohead mostra quão vazias todas as discussões a respeito dele são. Pull/Pulk Revolving Doors só pode ser divertida para quem a editou, um exercício de paciência a bordo de um programa de áudio com interface gráfica. You And Whose Army? começa apática e débil, ganhando algum rumo com a entrada da bateria, piano e orquestra, que dão a pompa rocker que o grupo finge não querer. I Might Be Wrong é um bobo improviso vocal sobre um riff óbvio de guitarra. Knives Out é um dos poucos momentos em que o grupo chega a um consenso, numa faixa que poderia estar até mesmo em OK Computer e Morning Bell/Amnesiac prova a falta de vontade do grupo no estúdio, caindo num arranjo barroco sem a menor força vital. As faixas finais confirmam a apatia musical do grupo, que, no máximo, busca novos timbres e intervenções sonoras em busca de alguma inspiração. Hunting Bears segue o mesmo rumo, só que para guitarristas egocêntricos - é o novo solo de guitarra (longo, lento, interminável). Like Spinning Plates recria em versão light o final apocalíptico que Hüsker Dü (uma banda norte-americana de hardcore - longe de qualquer clichê de vanguarda que possa ter) já havia feito para sua obra-prima Zen Arcade, ao construir uma música para ser tocada de trás para frente. E Life in a Glasshouse é xerox malfeito de qualquer música do Neutral Milk Hotel (com uma pitada de Queen aqui, outra de Velvet Underground ali - afinal, eles são uma banda inglesa). Não dá: a grande sacada do Radiohead foi manipular a mídia para conseguir fazer o que quisessem. Depois que conseguiram, não tiveram nenhuma grande idéia. Aí começaram a rabiscar, sem sentido.

Como uma lâmpada de lava, Amnesiac tem data de validade, mas funciona bem como trilha sonora se você quiser soar cool até, digamos, outubro deste ano, quando o disco provavelmente ficar fora de moda. As poucas boas músicas do álbum não sobreviveriam em discos clássicos do fundo do poço no estúdio como The Wall, o Álbum Branco, The Lamb Lies Down on Broadway, Closer, Strangeways Here We Come, Sandinista! ou Loveless. Libertos para se divertirem nas gravações, os cinco Radiohead e o produtor Nigel Godrich travaram de excitação como crianças em frente a uma loja de brinquedos. Sem ter noção de como começar, brincaram por brincar - sem saber ao certo o que estava fazendo - e dividiram as músicas em dois discos, um bom e um de sobras. Amnesiac é o Kid B, o refugo do clone original, a besta que o homem pode criar sem querer. "Radiohead Amnesiac", escrevem na contracapa, "Armazene-o à distância da luz do sol. De preferência numa gaveta escura com seus segredos". Numa gaveta ou no lixo?

No meio da risada, Thom Yorke pára. Continua olhando para o espelho, imaginando uma capa de revista com a cena que pausou: um sorriso largo na cara do vocalista do Radiohead. Ele não pensa em nada. Seus olhos entregam a paralisia. Ele pára de rir e olha para o espelho. Não é uma imagem bonita. De que ele estava rindo?