Campinas,
Domingo 18 de Junho de 2000
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Ano
zero Nada aconteceu no ano 2000
Alexandre Matias
E não havia nada na caixa de Pandora. Nada com "n" maiúsculo, aliás. Ao
fecharmos o enigmático ano 2000 sem nenhum grande acontecimento, nos deparamos com o
choque do Nada absoluto, refletindo em nossa frente como um espelho vazio. Tudo aquilo que
aconteceu no ano 2000 ou aponta para um futuro próximo ou remonta um passado recente -
nada aconteceu no instante, no agora. O agora - puf! - evaporou-se. O ano 2000 já era -
como sempre foi.
Ao vislumbrarmos o futuro na data redonda 2000, criamos um final risível para uma
utopia temporal. Como se o ano chegasse e, por si só, demarcasse o fim de uma etapa, de
uma forma de pensamento - ao mesmo tempo em que inauguraria uma nova era, abrindo de vez a
cabeça da humanidade para seu verdadeiro progresso. Mas ao contrário do que se esperava,
2000 apenas explicou como o passado terminaria e como começava o futuro, sem fazer de
ambos acontecimentos um único movimento, uniforme e naturalmente contíguo. 2000 não
sabia se olhava para o tudo no passado ou o nada no futuro, ficando assim, num tremendo
impasse.
Assim, 2000 fez-se apenas presente quando lembrávamos que ainda estávamos no século
20 e já estávamos na década de 00 - ou seja, quase nunca. Quem vai para o segundo turno
- quem é o presidente dos Estados Unidos - Pinochet vai ser julgado - o Napster vai ser
posto fora do ar - - o que aconteceu nos bastidores da CPI do Narcotráfico ou da Nike -
esquerdas e direitas extremas crescem pelo mundo - o Concorde caiu - fusões e mais
fusões: AOL + Time Warner, Brahma + Antarctica, Glaxo Wellcome + SmithKline Beecham,
Microsoft + AT&T, Pearson + Bertelsmann - que raios vai acontecer no Oriente Médio -
onde está o Lalau - o que aconteceu dentro do Kursk: tudo que aconteceu neste ano não
surtiu efeito imediato no presente. Ou foi mera reflexão do passado ou foi simples
hipótese para o futuro. Tanto o terceiro segredo de Fátima, ícone-mor de todos os
segredos, quanto o DNA humano foram desvendados - e eles nada disseram.
Nada. Os zeros no contador anual não trouxeram nada que pudesse nos convencer da
força solitária do ano fatídico. Mas a força deste nada absoluto deixou uma sensação
de vazio que talvez explique-se sozinha. Como se Rod Serling, do seriado Além da
Imaginação, recriasse o Paraíso bíblico, fazendo Adão e Eva comerem a maçã depois
de proibida e nada lhes acontecer. Esperando o pior, o casal estaria envolto em culpa e
aquela culpa desencadearia sua saída do Éden e toda a História da Humanidade, criada
após o Pecado Original, que seria apenas fruto de uma consciência pesada, uma ressaca
psicológica.
Assim 2000 nos deixa. Perplexos diante do impasse, passamos a pensar em como tal
perplexidade pode afetar nossa vida. E, naturalmente, passamos a pensar em nossa própria
vida e como nos relacionamos no planeta. Nada ter acontecido pode ter sido o grande
acontecimento do ano que termina e a estagnação em diversas áreas da atualidade prova
apenas que é preciso fazer alguma coisa. Nenhum sentimento parece mais apropriado para
começarmos, para valer, enfim, uma nova época, um novo tempo, do que a disposição para
fazer o que 2000 deixou para depois - tudo.
Quem sabe, 2001
Num ano cercado por expectativas, se deu melhor quem nada esperou
Terra chamando 2000. Ainda tem alguém aí? Os últimos minutos do ano deslizam
suavemente pela ampulheta do calendário, mas a impressão que temos é que eles sequer
passaram pela cintura do relógio de areia. O que aconteceu neste ano que acaba ou veio
sem força ou adiou sua vontade para o ano que vem. Resultado: esperamos o ano inteiro por
um ano que não veio.
Os grandes eventos do ano não foram tão grandes assim. Do show do Sonic Youth no Free
Jazz aos três tenores no Morumbi, de uma possível volta do rock brasileiro às paradas
de sucesso às festividades dos 500 anos do Brasil, do novo disco de João Gilberto ao
novo livro de Fernando Morais - em quase todos os casos, a expectativa foi maior que o
resultado. Quem ganhou o Oscar esse ano? E o Festival de Berlim? E o de Cannes? E o de
Veneza? Beleza Americana, Magnólia, Dançando no Escuro e O Círculo, respectivamente.
Mas quase ninguém lembra. Por quê? Porque, sem desmerecer os filmes, na hora, foram
lembrados por falta de opção.
O cinema nacional veio personificado na Rede Globo, que bancou, direta ou
indiretamente, três das quatro principais produções do ano - O Auto da Compadecida,
Xuxa Pop Star e Anjo Trapalhão, de Renato Aragão. O quarto filme mais importante do ano,
Eu, Tu, Eles, de Andrucha Waddington, era uma espécie de Comédia da Vida Privada
ambientada no sertão nordestino com aquela lente fotográfica de publicidade - Central do
Brasil com Brasil Legal. No elenco, Regina Casé, Stênio Garcia, Lima Duarte... Globais
como sempre. Quem fugiu do padrão Globo, colheu apenas elogios - produções como Bufo
& Spalanzani, Estorvo, Quase Nada, Cronicamente Inviável e Bicho de Sete Cabeças
ficaram restritas a um público especializado.
Ao mesmo tempo, o Brasil perdia grandes nomes de sua música - todos eles em silêncio,
como se sua importância não tivesse sido percebida - Baden Powell, João Nogueira,
Moreira da Silva, Wilson Simonal. O DJ Marky Mark capitaneou a evolução da música
eletrônica no País, crescendo ao lado de um revival de música negra que aborda soul e
funk - tanto nacional quanto internacional. Da volta de Gerson King Combo aos Artistas
Reunidos de Max de Castro, Wilson Simoninha e Jairzinho Oliveira, todos queriam fazer
dançar. Mas quem estava dançando? Só Ziraldo, lutando bravamente para que sua Bundas
não feche em público. Mas ninguém dá bola.
Na televisão, dois lados quase idênticos - tanto Sílvio Santos quanto a Globo
colocaram competidores em pânico psicológico para conseguir fisgar audiência - um veio
com o Show do Milhão e a outra com No Limite - duas versões abrasileiradas para sucessos
americanos (Who Wants to Be a Millionaire?, da emissora Fox, e Survivor, da CBS). Mas para
ver o quê? A Mostra do Redescobrimento reuniu 1,8 milhão de pessoas, mas ninguém lembra
do que viu. O público de cinema brasileiro pulou de 3,6 milhões para 5,2 milhões de
espectadores, mas nenhum fotograma ficou na memória. Quem lembra do quê? Marília
Gabriela enfrentando o palco com Gerald Thomas? Paulo Coelho (este ainda quer ser
imortal), Zezé di Camargo e Caetano Veloso reclamando da imprensa?
A internet esteve onipresente - dos sites dos Beatles ao Napster, passando por ataques
hacker a grandes portais, forjando notícias e bloqueando acessos. Programas de troca de
arquivos traficaram até filmes inteiros pela rede mundial dos computadores - e o vídeo
digital surgiu como grande alternativa à película. A internet foi até à literatura:
2000 foi o ano do e-book, discutido na Feira de Frankfurt e abraçado por Stephen King,
João Ubaldo Ribeiro e Mário Prata, que escreveram suas obras online mais para
suplementos de informática do que para leitores de livros. Em meio a tudo isso, um livro
infantil sobre mágica se tornava o maior fenômeno editorial de todos os tempos - mas de
que falava Harry Potter, no fim das contas? E alguém leu algum romance do vencedor do
Nobel de Literatura deste ano? Aliás - alguém lembra como ele se chama? Eu só lembro
que o prenome é Gao.
Como Gisele Bündchen, Eminem, Gustavo Kuerten, Russell Crowe e outras personalidades
que encontraram neste ano sua grande virada, 2000 foi um ano normal que se viu encrencado
no topo da expectativa - expectativa que quase derrubou cada um deles, mas que todos
souberam como se sair. Como? Justamente passando por cima da ansiedade da espera. Sem
esperar nada, o ano seria mais fácil. Como queríamos muito, pouco tivemos. Mas é bom
que entendamos: só teremos o que quisermos quando sequer pensarmos nele. Como queríamos
tudo...
Terra desolada
A música pop do ano que passou materializou o
binômio expectativa/ frustração e o que se ouviu foi o som do vazio
Imagine que todos seus amigos gravassem todos seus discos em fitas cassete e criassem
uma espécie de "fitoteca", onde você poderia gratuitamente copiar qualquer uma
dessas fitas sem ter que gastar um tostão. Isso era o Napster, antes do acordo com a
gravadora alemã BMG - com a pequena diferença que não estamos falando de uma turma de
amigos que podem ser contados nos dedos, mas de 38 milhões de usuários espalhados pelo
planeta. O programa criado por Shawn Fenning foi o melhor garoto-propaganda para 2000 na
música pop: quase quarenta milhões de usuários conectados à internet e
disponibilizando coleções inteiras no formato MP3. Mas como a tela de navegação do
programa, 2000 foi uma enorme cardápio de possibilidades colocado em nossa frente. Em
meio a tantas opções, o que escolher?
Nada.
Foi a resposta que nos deram os três principais nomes na música pop no ano que termina
hoje. Na Inglaterra, o Radiohead frustrava expectativas com um disco não-melódico, sem
rosto, que poderia ser traduzido na paisagem desolada, lunar da capa de Kid A. Nos Estados
Unidos, o rapper Eminem optou pelo caminho contrário e em vez de explicitar o som do
vazio, falou tudo que pôde e o que não devia, deixando claro o quanto as coisas estão
fora do controle hoje em dia. Provocando valores familiares e progressistas, o branquela
chutou reputações para o espaço e comprou briga com todos que passaram por seu caminho,
convencendo os que não levavam fé em suas qualidades com o excelente The Marshall
Mathers LP. No Brasil, o Por Pouco do Mundo Livre S/A ironizou o contentamento brasileiro
com a gorjeta que nos vendem como qualidade de vida. Além da crítica à alienação
(cada um à sua maneira), os três discos também criticavam a massificação
mercadológica da música hoje.
O próprio mercadão ficou perdido no ano que passou. Não bastasse as dores-de-cabeça
do Napster e de Eminem (xingando qualquer popstar que visse a luz do dia), as gravadoras
ainda tiveram que enfrentar a ausência de ídolos no ano que está terminando. No Brasil,
pagode, axé e sertanejo cada vez mais mutam-se em uma só coisa, amorfa, sentimental e
sacarosa, que irrita na mesma proporção que não inspira. Além disso, continuamos na
saga de heróis requentados - Ira!, Roberto Carlos, Capital Inicial... Até os Raimundos,
sinônimo de novidade no começo da década, passaram a veteranos a lançar um enfadonho
duplo ao vivo.
O mesmo pode ser dito do Oasis, que freqüentou mais a mídia do que as paradas de
sucesso. Como no mercado nacional, o estrangeiro também penou uma dura estagnação
criativa, aturando os clones do Backstreet Boys como única vertente comercial do ano (ah
sim, o chamado novo metal de grupos como Marilyn Manson, Korn, Slipknot e Limp Bizkit tá
estouradaço lá fora, mas felizmente não colou aqui). A alternativa que a indústria
encontrou foi transformar a volta de Madonna em um dos eventos de mídia do ano - e a diva
pop grudou no topo das paradas do mundo com uma música que falava sobre... nada.
Mas felizmente houve alternativas ao marasmo de mesmice que pareceu assolar as paradas
de música pelo mundo. Por baixo do vazio de conjuntos de segunda como Travis e Coldplay,
a Inglaterra lançou grandes discos graças ao Primal Scream, PJ Harvey, Cure, Teenage
Fanclub e ao bardo solitário Badly Drawn Boy. A vizinha Escócia continuou colhendo
frutos do bom ano passado, com o fraco disco do Belle & Sebastian e o ótimo novo
Delgados. Para o ano que vem, o Mogwai surge como aposta certa. O rock alternativo
americano volta à boa forma, mesmo fora dos olhos da mídia. Incensado pelos ingleses, o
country alternativo deu ótimas provas de vida com os discos de Josh Rouse, Lambchop e
Mojave 3. Yo La Tengo e Grandaddy também lançaram ótimo álbuns no ano que termina hoje
e o Queens of the Stone Age, com seu Rated R, surge como grande aposta do mercado
alternativo para o mainstream.
O vazio no pop anglófono fez com que outros países viessem à tona com seus
representantes. França (Alex Gopher, Air, Laurent Garnier, Rinôçérôse), Islândia
(Björk, Sigur Rós), México (Titan, Plastilina Mosh), Japão (Cornelius, Pizzicato 5),
Finlândia (Jimi Tenor), Índia (Talvin Singh, Asian Dub Foundation) e outros nomes
menores em menor escala provaram que é possível ser pop e exótico ao mesmo tempo.
O hip hop também vive ótima fase: além de Eminem, ouvimos trabalhos excelentes do De
La Soul, Jungle Brothers, Jurassic 5 e Deltron 3030. No Brasil, acontece o mesmo - Thaíde
& DJ Hum lançam disco por grande gravadora, o ex-DMN Xis ganha espaço graças ao
prêmio de melhor clipe de rap para Us Mano, As Mina e várias especulações sobre o
futuro do gênero fizeram de 2000 um ano-chave para o gênero. A música eletrônica, por
sua vez, baixou a bola - quem faturou foi Moby, que lançou seu Play no ano passado, mas
só colheu os frutos este ano. O mesmo deve acontecer com Fatboy Slim, que deverá seguir
caminho semelhante com seu Halfway Between the Gutter and the Stars. Roni Size fez a tão
aguardada ponte entre o hip hop e a música eletrônica, com o ótimo In the Mode. No
Brasil, a eletrônica teve um ano melhor, com os principais DJs do País (Marky, Anderson
Noise, Patife, M4J, Drumagick, Rica Amaral...) lançando seus discos-solo. O pernambucano
Otto ainda marcou o território alheio ao convocar 29 nomes para remixar seu álbum de
estréia, Samba Pra Burro.
O pop nacional ficou no meio-termo. De um lado, grandes nomes dos anos 90 (Planet Hemp,
Frank Jorge, Nação Zumbi, Brincando de Deus, Ed Motta, Skank) lançaram discos
convincentes, mas sem repercussão popular. Do outro, novatos de peso (Autoramas, Sonic
Junior, Walverdes, Mopho, Relespública, Astromato, Cidadão Instigado, Vulgue Tostoi)
ganharam espaço, mas não conseguiram decolar como deveriam. Entre ambos, a turma dos
Artistas Reunidos - Jairzinho, Max de Castro, Pedro Mariano, Wilson Simoninha e Luciana
Mello - lançaram discos e dominaram a mídia, mas sem conseguir emplacar um hit no
rádio. Outros filhos de famosos (Bebel Gilberto, Bena Lobo) também fizeram o mesmo
percurso.
Em matéria de shows internacionais, o confirma que está na rota. Tivemos Sonic Youth,
Superchunk, Stereolab, Leftfield, Armand Van Helden, Moloko, Frankie Knuckles, D'Angelo,
Demolition Doll Rods, Talvin Singh, Manu Chao (que teve seu grande ano no Brasil, com
músicas traduzidas para o português por Rebeca Matta, Mundo Livre S/A, Adriana
Calcanhotto e Tihuana), Femi Kuti, Aterciopelados, Marky Ramone, Jay-Jay Johanson... Até
o U2 veio pra cá de novo.
Quem ganhou mesmo foi o passado da música brasileira. A geração que fuça em sebos
de disco à procura de raridades começou a surtir efeito no mercado. Além do surto de
caixas de MPB (de Dorival Caymmi a Noel Rosa, passando por Jacob do Bandolim e a caixa do
programa Música do Brasil), o pop nacional viu na figura de Charles Gavin um aliado para
as redescobertas sonoras: discos de Tom Zé, Secos e Molhados, Carlos Dafé, Walter
Franco, Branca di Neve, Novos Baianos, entre outros, finalmente chegaram ao CD graças ao
titã. O ano também viu o famoso "disco francês" dos Mutantes ver a luz do
dia, como Tecnicolor.
Como vimos, muita coisa aconteceu em 2000, mas pouco realmente firmou-se. Preocupados
com o nada (que veio fantasiado de tudo), perdemos tempo olhando para o passado e para o
futuro em vez de olharmos para o agora. Agora deixamos para 2001. |
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