Texto publicado originalmente na revista Play número 2, fevereiro de 2002

Techno hippies

Cruzando folk e psicodelia à trama de seu funk eletrônico, os Chemical
Brothers amadurecem sem envelhecer, em seu Come With Us

Alexandre Matias

Filhotes da cena rave, os Chemical Brothers sempre tiveram um pé no crédito
de rua exigido pela cultura clubber e outro na história do rock. Limiar
arriscado, que deu à dupla o mérito de romper a barreira entre as duas
realidade, paralelas mas arrogantes o suficiente para ignorarem-se
mutuamente. Tom Rowlands e Ed Simons construíram lentamente a ponte que, se
não uniu as duas culturas, ao menos as convergiu para o mesmo foco. A
psicodelia eletrônica dos Chemicals só ficou realmente à vista em seu
primeiro LP, Exit Planet Dust. O ano era 1996 e a música pop era terra
desolada: no mainstream, o vácuo dos suicídios do rock alternativo e do
gangsta rap atraía góticos, manos e minas de NY, boy bands, britpoppers e
novas divas se estapeavam rumo ao topo do pop mundial; nos guetos, a música
eletrônica ainda era vista como a reinvenção da roda e a psicodelia renascia
aos poucos na mão de três gerações de rock independente (a E6, o pop escocês
e os chapas de Dave Frischmann).

Aí entram os Chemical Brothers, dois manés com coleções de disco legais e
tino de agitar a noite. Usando a lógica 1991 (Londres, não Seattle) de se
fazer música, os dois passaram a forjar 1967 e 1982 como um mesmo ano. No
papel, não faz sentido, mas de alguma forma, os dois conseguiam fazer com
que o astral pré-psicodélico da Swinging London e o clima disco/funk do hip
hop pré-electro dos bailões do Bronx soem primos. E assim foram aprimorando
a fusão: sempre com um pé no clubbismo e outro no rock. Cada disco trazia
uma coordenada: a fuga de Exit Planet Dust, o individualismo de Dig Your Own
Hole e o assalto cerebral em Surrender, que roubava uma frase de "Tomorrow
Never Knows", dos Beatles (o Big Bang da psicodelia inglesa), para explicar
ao público que era bobagem resistir. No disco de 1999, esplendidamente
apresentado ao público brasileiro em primeira mão, a dupla mixa Kraftwerk
com Mercury Rev, Noel Gallagher com New Order, techno de Detroit com Primal
Scream, Stone Roses e rap old-skool com refrões de peso, como "Block Rocking
Beats" ou "Hey Boy, Hey Girl".

E em menos de três anos, mudavam a cara do pop, pelas beiradas. Hoje,
grupelhos de eletrônica são chamados para trilhas sonoras de blockbusters de
Hollywood, DJs são, realmente, superstars, o hip hop troca lentamente o
vinil pelo ProTools, artistas do passado voltam em roupagem hi-tech. Rádios
populares organizam raves, techno é o novo nome da antiga dance music, remix
é uma nova linguagem, todo mundo quer "dar som". O techno está no subtexto
artístico vigente, na base do nu-metal, no sample do DMX, no beat moderninho
da nova MPB, nos novos tambores tribais. Com o sufixo tornado adjetivo, a
alta tecnologia tornou-se o sabor dos anos 90 e os sons sintéticos do grupo
eram a versão sonora para o espaço imaginário entre Blade Runner e Matrix.
Mas todo o choque techno foi absorvido pela virada do milênio. Se o filtro
hi-tech era o novo na última década do século 20, hoje ele é lugar comum.

Todos somos ciborgues, usando computadores para arquivar nossa memória e nos
comunicarmos. Falamos com os dedos, nos lembramos das coisas usando um
cursor de tela, nossas mãos repousam em concha, como segurando um mouse
imaginário. Fora o teletransporte, as naves espacial, o carro voador e a
viagem no tempo, o século 21 é bem parecido com o que nossos pais e avós - e
até nós mesmos - imaginaram. Uma sociedade totalitarista em nível global,
regida por marcas frias e se comunicando à distância, por cabos ou ondas de
rádio. O estado militar foi transformado em militarismo comercial, nossa
comida é congelada e requentada em microondas, clonagem e engenharia
genética são conceitos do dia-a-dia! Toda estética do antigo futuro - do
charme kitsch dos Jetsons e Perdidos no Espaço ao pós-apocalipse de
Neuromancer ou Akira - está presente em nossa rotina. O som dos Chemical
Brothers, de repente, parecia ultrapassado.

Daí os quase dois anos de silêncio. A última vez que se pronunciaram em
álbum fora no meio de 1999 e o século 20 sequer havia terminado. Até que, no
meio do ano passado, começaram a rolar os rumores da volta do grupo, que
cessaram quando o novo single, "It Began in Afrika", escapuliu para o ouvido
público pela internet. O vocal épico que narrava o título da faixa era uma
nova versão das frases de efeito usadas pela dupla pra alavancar o funk
eletrônico que era a base da faixa. "Começou na
Áfrika-ka-ka-ka-ka-ka-ka-ka-ka...", repete a voz de velho missionário
europeu no ritmo dos ciclos da faixa. O rataplam dos steel-drums que se
autocelebram no meio da música faz a conexão tribal de todos os gêneros
musicais visitados pela faixa, sejam os tambores dos primórdios da
humanidade (que, como o ritmo, a arte e a música, começou na África); sejam
os delírios percussivos dos anos 70, que temperavam os bailes funk da
periferia nova-iorquina com molho latino; seja o beat sintético da disco
distorcida por Detroit nos anos 80. O "K" no nome do continente negro
reverencia o insuspeito papa da música eletrônica pra dançar, Afrika
Bambaataa que, há vinte anos, fundia Kraftwerk e James Brown na mesma música
(o marco zero "Planet Rock"), criando uma música que é o sangue dos Chemical
Brothers: o electro. 2001 foi isso para a dupla: um ano de celebração às
origens, todas elas.

Mas o ano passou e um disco estava a caminho - ou melhor, estava pronto.
Chemical 4, como era conhecido no segundo semestre do ano passado, logo
vazou. Os nomes das faixas começaram a aparecer - "Hoops", "Galaxy Bounce",
"Pioneer Skies", "Star Guitar" - e algumas participações especiais (de
praxe), como Richard Ashcroft e a volta de Beth Orton, começavam a se tornar
públicas. Rato dos manos químicos ou não, o quebra-cabeça do quarto álbum da
dupla estava sendo montado em tempo real, como uma contagem regressiva para
o lançamento do disco, que já circulava na íntegra pela internet. Até que,
como Come With Us (Virgin), o disco finalmente deu o ar de sua graça no
começo de fevereiro, quando a dupla lançou-se em turnê de apresentação do
disco pela Europa.

Come With Us continua a lenta escalada psicodélica que em quatro álbuns e
tantos outros singles vem perfurando nosso imaginário interior, cada beat
batendo como o pequeno soco de um pingo contra uma pedra enquanto prega a
mutação dos neurônios pela dança. Em microssessões de ritmo, Tom e Ed vêm
fazendo-nos exercitar o quadril para alcançar o cérebro. A mensagem que eles
querem passar é da mesma complexidade do tilintar industrial das máquinas do
Kraftwerk, da ginástica bíblica de James Brown, do redemoinho psicológico
dos riffs do Velvet Underground ou das derrapadas assassinas de Grandmaster
Flash. Todos usam o ritmo para convencer o ouvinte a mover-se; a sair do
lugar, a evitar a estática. "Mexa-se, bunda mole", impõem, usando todo o
tipo de ruído para chacoalhar, de alguma forma, o espectador. E ao taparmos
as lacunas entre estes pontos cardeais, surgem nomes igualmente importantes
na formação musical dos Chemical Brothers: disco, Happy Mondays, electro,
acid house, techno, Jesus & Mary Chain, house clássico, psicodelia. E todos
têm formas diferentes de dizer a mesma coisa.

"Venha conosco", brada o vozeirão Bambaataa que abre o disco, "e deixa seu
planeta para trás. Vê a luz? Nosso universo está do nosso lado. Atenção:
eles estão voltando!". O discurso acontece sobre um pastiche de cordas a la
Bernard Herrmann que aos poucos se metamorfoseia em uma montanha russa de
Atari: electro oitentão com um microponto lisérgico no coração. Mas "Come
With Us", a faixa, é só uma apresentação, como aquelas "Intro" em discos de
rap. Anunciada a volta em tons de gospel Futurama, os irmãos começam o disco
propriamente, com a bombada "It Began in Afrika". Aqui, a simbiose dos
elementos químicos que formam o grupo estão em perfeita harmonia, a sensação
é de estar em uma versão disco da histórica luta entre Muhammed Ali e George
Foreman, em pleno Congo. Aqui, Giorgio Moroder desafia Juan Atkins no
coração das trevas; como se o Daft Punk fizesse seu show de volta, em 2019,
numa aldeia de pigmeus. A faixa sequer sai de cena, quando entra "Galaxy
Bounce", quase que à espreita.

Como cientistas explicando o movimento das estrelas, os dois aceleram a
velocidade e superpõem ritmos uns sobre os outros, para mostrar a intrincada
teia de ritmo que forma "Galaxy Bounce", uma típica faixa dos primeiros
álbuns do duo. Apenas um paliativo rítmico para entrarmos no centro do
sistema nervoso de Come With Us, a hipnótica "Star Guitar". A faixa, o
segundo single do disco, nos remete à psicodelia hermética do disco anterior
com um caleidoscópio em câmera lenta. Mas enquanto Surrender nos colocava na
escuridão do coração da máquina, "Star Guitar" usa vocais sussurrados para
jogar uma luz do sol sobre o disco que, a partir daqui, torna-se uma versão
eletrônica do folk psicodélico que precedia à psicodelia clássica. Efeitos
sonoros zunem pelos ouvidos, como rasantes de espaçonaves gigantescas sobre
campos floridos, um cenário musical que une melancolia e tecnologia.

O disco segue este ritmo, igualmente hippie e techno. "Hoops" mantém o clima
bucólico, com expertise de rua, beats sintéticos, violão dedilhado e
vitrolismos em geral. Menos campestre, "My Elastic Eye" caminha robótica,
como um brinquedo vitoriano, e é interrompida, de quando em quando, para uma
descarga de graves gangsta rap - até que as duas metades da música se
juntam, ao final. "The State We're In" escancara o lado folk do álbum, com
vocais de Beth Orton e título referente à primeira música do Belle &
Sebastian. À medida em que chega perto do fim, a faixa embarca num trance a
la New Order que desemboca no frio big beat de "Denmark", bate-estaca
notívago que, mesmo abraçando o hedonismo house e o baixo Funkadelic, não
abandona o lado psicodélico tradicional, submergindo-se em vocais folk.

"Pioneer Skies" continua o contraponto entre noite (bombada, tecnófila,
hermética) e dia (claro, infantil, ensolarado), que descamba em "The Test",
uma brincadeira rock'n'roll ("melhor ir para a cama, agora", aconselha o
final da música) que prova que Richard Ashcroft deveria deixar de fazer suas
próprias coisas e só sair de casa quando convidado por algum titã da dance
music (a faixa é prima do único outro bom momento do ex-vocalista do Verve,
"Lonely Soul", do U.N.K.L.E.).

Apesar de terminar com refrão e guitarra, Come With Us é um disco do século
21. A diferença clara entre ele e os discos anteriores dos Chem Bros. é a
natural convivência com a sonoridade sintética que antes era sinônimo de
futuro. Mas se o futuro já começou, para que ficar preso em apenas uma de
suas versões. Se o futuro do passado é o nosso presente, bobagem permanecer
insistindo num mesmo lado da moeda. A vida tem mais a oferecer. Os irmãos
bem sabem.

    Source: geocities.com/trabalhosujo/txt

               ( geocities.com/trabalhosujo)