Texto publicado originalmente na revista Play número 4, junho de 2002

The Eminem Show - Eminem
Fantastic Damage - EL-P
In Search of... - N*E*R*D
The Private Press - DJ Shadow

Renascença eletrônica

Quatro álbuns mostram como a realidade digital pode salvar o hip hop da
caricatura dos dias de hoje e mostrar novos horizontes para a cultura pop

Pare e ouça. Se as letras não falam direto para você, sinta o ritmo, as
inflexões vocais, a instrumentação do groove. Quatro dos melhores discos do
ano (já? Já.) são álbuns de rap e essa é uma das melhores notícias que
podemos ter no mundo do pop. Depois de ter influenciado mais gente que os
Beatles, a cultura hip hop entrou numa espiral em torno do próprio umbigo
que parecia afundar no atoleiro gangsta. Mas durante os anos 90, uma geração
de produtores aos poucos foi pegando as rédeas do mercado e agora lançam
álbuns que definem seus conceitos de hip hop - muito além da comunidade
urbana dos primeiros dias ou dos dias de glória e grana dos últimos anos. O
novo hip hop é incisivo, crítico, corrosivo e altamente contagioso, sem
nunca perder o groove e o horizonte de vista (reinventando ambos).

Eminem é afilhado de Dr. Dre, o Quincy Jones do hip hop, que temperou os
anos 90 com o suco concentrado P-Funk que conhecemos como gangsta,
contribuindo para que o soul moderno aos poucos se tornasse o atual R&B. Mas
o mérito a ser dado a Dre não é o de criador, mas o de descobridor de um dos
rappers mais versáteis da história. Em seu Eminem Show (cujo encarte remete
a programas de reality show), o branquelo Marshall Mathers embaça os limites
entre música e realidade, usando, mais uma vez, episódios de sua vida
pessoal para confundir a cabeça do ouvinte. Na pesada "Cleanin’ Out My
Closet", ele termina de fazer a caveira de sua própria mãe (que lançou, ano
passado, um disco solo para contar "a sua versão da história"). Em "The
 Kiss", ele reencena o incidente com Joel Guerrera, quando teria acertado o
sujeito com uma arma após vê-lo saindo com sua mulher (o episódio é referido
em quase todas as outras faixas) e outros aspectos de sua vida particular
são reencenados à exaustão.

Mas o disco não fica preso em dramas pessoais, como o álbum anterior, The
Marshall Mathers LP. Neste, Eminem se coloca como apenas a ponta do iceberg,
um pequeno problema que pode resultar em algo muito maior. Na corajosamente
batizada "White America", ele não usa meios termos: "Faça as contas/ Se eu
fosse preto, não venderia nem a metade", "Todo fã preto que eu tenho é
provavelmente em troca de um fã branco que ele (Dr. Dre) tem" e explica que
incomoda muito pois fala aos brancos adolescentes sobre coisas que eles
sequer imaginariam, caso não existisse. Pelo resto do disco, aponta para
este tipo de problema: avisa aos fãs que apoiar Bush significa cogitar o
risco de ir para uma guerra ("eu tenho 28 anos, mais fácil pegar vocês do
que eu"), usa o velho argumento Larry Flynt para falar sobre o que quiser
(destinando um "FUCK YOU!" pra mulher do vice-presidente americano) e sonha
com o dia em que "vinte milhões de rappers brancos vão aparecer", um enorme
culto que teria o próprio Eminem como líder.

A sonoridade do novo disco é pesada e soa como um disco de rock dos anos 70.
Com riffões apocalípticos e sample de Aerosmith (a ótima "Sing for the
Moment" dá nova vida à esquecida "Dream On"), Eminem ultrapassa qualquer
tentativa metal do chamado nu metal, que ele tanto despreza. Outra
referência é o rap sulista (Outkast, Missy Elliott, Timbaland), cujos
"na-na-nas" e linhas vocais seguram as melhores partes do disco ("Without
 Me", "Square Dance"). For a isso, o rapper garante seus hits das baladas,
seja na tenebrosa "Closet", na pueril "Haile’s Song" (dedicada à sua filha -
e com o cara cantando!) ou na for-fans "Sing for the Moment". Outros grandes
momentos do disco ("Without Me", "When the Music Stops", "Business", "My Dad
’s Gone Crazy") contam com as digitais de Dre por cima, mesmo algumas sem o
crédito do chefão. É, Eminem assume os controles do outro lado do vidro sob
a supervisão do doutor, e opta pelos caminhos da produção pós-Pro Tools, a
mesma que ajuda o hip hop renascer das trevas do próprio ego.

O disco solo de El-P também passeia pelos grooves que o canhão de laser
percorre pelo CD. Funk digital e pele branca, sua temática ultrapessoal e
pessimista poderia ser par de Eminem, mas é como se comparássemos Jim Carrey
com Rudger Hauer. Rima agressiva e desesperada, ela se move paranóica como
os beats, que ricocheteiam nas paredes como se fossem feitos em uma partida
de vida ou morte contra a inteligência artificial do jogo Archanoid. Versão
20.02, acredite: o tecido metálico e plástico que o produtor usa para
construir suas bases é o mesmo que atravessa nosso imaginário sobre o
futuro. Tentar acompanhar o cursor de seu Fantastic Damage é como perseguir
dados eletrônicos por uma placa de circuito. Mas, ao mesmo tempo, o produtor
dá uma clareza única ao som, fazendo os beats serem disparados sob a mira do
efeito bullet-time. O próprio disco pode ser visto como um longa sci-fi
distópico e suas faixas (com títulos com referências de FC como "Deep Space
9mm", "DeLorean" e "Dr. Hell No vs. The Praying Mantis" - pra bom
entendedor...) apenas os títulos de determinadas cenas memoráveis. E se
lembrarmos que este apocalipse digital foi proposto pelo mesmo cara que, há
meia década, transformou a Rawkus na gravadora mais cool do rap de sua
época, dá pra se ter uma idéia da distância do salto.

Os Neptunes, por sua vez, vieram pelas beiras da primeira geração
pós-gangsta. Começaram nas costas de Jay-Z, passaram a trabalhar com nomes
cada vez maiores até chegarem ao filé mignon da indústria do disco,
produzindo gente como Britney Spears (a fantástica "I'm a Slave 4 U") e N'
Sync ao mesmo tempo em que lançavam a carreira da ótima Kelis. Quando
resolveram lançar seu próprio material, Chad Hugo e Pharrell Williams
chamaram o compadre Shay e criaram uma nova banda, o trio N*E*R*D. Lançaram
o disco de estréia na Inglaterra no ano passado, mas acharam o som fraco e
regravaram todo o disco com a banda Spymob - dando peso e presença ao álbum.
Este une os dois lados do rock dos anos 70 (o hard rock de bandas como Grand
Funk Railroad, AC/DC e Kiss e o soft rock de grupos como America, Steely Dan
e 10cc) com a cola do soul funk, doce e pesado. In Search Of.. é daqueles
que falam com a alma, embora finja-se de disco para adolescente (o nome
NERD, as referências rock explícitas, PS2 na capa do disco) Neste lado, o CD
acerta em cheio com guitarras ameaçadoras ("Lapdance", "Truth or Dare",
"Rock Star") e boogies retrô (fãs de Belle & Sebastan, cacem "Baby Doll"!).
Mas a essência do disco é o reluzente brilho do soul, fazendo refrões de
"Things Are Getting Better", "Tape You" ou "Am I High" resvalar no céu - o
vocal de Williams é uma bênção destas que aparecem muito de vez em quando. A
deliciosa "Run to the Sun", R&B minimal com ares jazz funk, poderia estar em
um disco de Marvin Gaye ou Stevie Wonder, enquanto "Stay Together" atualiza
os cantos gospel dos movimentos civis norte-americanos para a geração
pontocom. O grupo nos engana por pouco: nem rock, nem soul. Isso é hip hop.

É o mesmo que faz DJ Shadow. Sua paleta de cores sonoras é infinita pois ele
escolheu discos como ponto de partida. Isto quer dizer que Josh Davis
trabalha com som gravado, o rótulo mais genérico que a indústria da música
pode prever. O impressionante é que, usando matrizes díspares, ele convirja
para a sólida superfície do hip hop. Em seu segundo disco, o primeiro
autoral seis anos depois de Endtroducing reescrever a história da música
pop, Shadow amplia ainda mais a quantidade de referências, deixando-as
entrar no decorrer do groove. Se antes as intervenções sonoras (cantos soul,
clima cinematográfico, discursos, cordas) criavam uma realidade paralela em
relação à canção, agora elas dão origem a uma terceira dimensão, o eixo Z
cujo poder de transformação nunca pode ser subestimado. Este surge de
lugares inesperados: nas guitarras de "Fixed Income", nos "boings"
emborrachados de "Walkie Talkie", no solo eletro-psicodélico de "Six Days".
Mas quando ele começa a puxar o rumo do disco (a dupla "The Right Thing" e
"Monosyllabik", logo após a reconfortante "Mongrel") as coisas começam a
ficar muito sérias e Shadow desconstrói o ritmo como um físico demole
átomos - e há por trás de tudo, um puro prazer infantil, de autorama, por
trás da fachada de experimentalismo científico. É através desta energia de
criança que Shadow conecta-se com o hip hop.

Longe das ruas da periferia que o viram nascer ou do mercado multimilionário
que o mimou à idiotização, o hip hop passa por uma revolução silenciosa, mas
fundamental. Com a eletrônica a seu lado, ele começa a se reinventar pela
primeira vez, sem precisar sair de seu território para colher referências -
como em outras mutações. A virada que esta cultura pode atravessar no começo
do século é a deixa para que o gênero se estabeleça como o principal
parâmetro comportamental dos dias de hoje. É pelas vias digitais que o
gênero começa sua Renascença, sua Psicodelia. A sorte está lançada.

    Source: geocities.com/trabalhosujo/txt

               ( geocities.com/trabalhosujo)