Publicado originalmente no Trabalho Sujo (21/01/1999)
F-PUNK
O duplo 100 Flowers Bloom passa a limpo a carreira
de uma das bandas mais singulares do punk, o Gang of Four
Alexandre Matias
O Gang of Four já tem um lugar na história do rock ao
traduzir pela primeira vez para o universo branco uma
combinação que sempre funciona na música negra: política
e suíngue. É como se o ato de balançar o corpo tivesse
alguma relação neurológica com a capacidade de aguçar um
lado do cérebro que entende que o todo funciona melhor
que uma parte. O senso de coletivo causado num ambiente
de dança - seja que tipo de dança for, do samba ao pogo -
e a noção de se sentir mais um que um indivíduo solitário,
mas uma célula de um organismo que exerce determinada
função, ajudam-nos a olharmos pra nossa própria situação
na sociedade. Como se dançar fosse uma metáfora para a
convivência social e política.
Invertendo a lógica do P-Funk, o Gang of Four pedia pro
ouvinte abrir a cabeça, que a dança seria inevitável.
Nascido em pleno punk britânico, o grupo emitia sons
azedos de tão brancos. A guitarra de Andy Gill soava como
um espinho que alfinetava o tímpano do ouvinte a cada
esboço de vocal que Jon King expelia pela garganta. Os
dois travavam um duelo quase medieval, cada um
empunhando sua arma. Gill soltava pelo amplificador
descargas de pura eletricidade sonora, rebatidas pela
voz frouxa, rasgada e veloz de King. Segurando este
espetáculo à parte, Hugo Burnham transformava-se num
loop humano de batuques tribais e mecânicos ao mesmo
tempo, dando ao quarteto o estranho rotor quadrado que
deixava o Kraftwerk funky. Por cima da bateria, Dave
Allen (o único inglês do norte e classe operária da
banda), um baixista apaixonado por reggae que respondeu
a um anúncio que pedia um baixista para uma banda de
“fast rivvum blues”. O fato de “rhythm” estar soletrado
errado pegou Allen na mosca - “rivvum” era uma espécie
de zunido constante por baixo do ritmo.
Resumindo musicalmente o grupo em uma palavra, o conceito
por trás de rivvum é o cerne da carreira do grupo. Vide
100 Flowers Bloom (Rhino, importado), excelente coletânea
dupla que passa um pente fino na história do Gang of Four,
trazendo não só os velhos hits à tona como versões
alternativas, remixes e gravações de shows. Mas é sempre
bom lembrar que, mais do que uma banda que consegue tirar
ritmo de uma instrumentação não-negra, o Gang of Four
era um grupo político. Ora bolas, eram batizado após a
infame Camarilha dos Quatro, o grupo de adolescentes que
assumiu a Revolução Cultural na China durante os anos 60
em uma das páginas mais sinistras da história do século
20. E lá no Grande Livro da História do Rock está escrito
que, se o Clash são os guerrilheiros urbanos, o Gang of
Four são os pensadores anarquistas.
Essa definição é legal, mas é imprecisa. Afinal, o quarteto
não ficava apenas lançando discos de estúdio. Mesmo se
fizesse só isso, já seriam mais que meros pensadores.
Ativistas, tinham plena noção da contradição do fato de
uma banda marxista vender discos por uma multinacional e
usavam essa relação dúbia como um paralelo com a vida de
qualquer pessoa, diga ela que é progressista ou não. Suas
canções eram tiros dirigidos especificamente ao capitalismo
e a forma que ele transforma cidadãos em consumidores e os
restringe de sua própria natureza. Que banda teria ousadia
de, no meio de um disco, criticar o próprio trabalho como
forma de diversão massificadora? Em Natural’s Not in It
eles cantam que “o problema do lazer é o que você faz por
prazer”, colocando toda indústria do entretenimento que
as gravadoras de discos, as lojas, as paradas e os jornais
- enfim, o meio em que o Gang of Four viive - fazem parte
como uma decisão arbitrária de se cobrar para se ter prazer.
Não por acaso seu primeiro disco se chamava Entertainment!,
com uma capa vermelho-comuna e uma pequena história em
quadrinhos que traduzia o espírito da indústria que o grupo
estava inserido. Nela, um caubói encontra um índio, os dois
sorriem e eles apertam as mãos. Embaixo, uma legenda: “O índio
sorri, ele pensa que o caubói é seu amigo. O caubói sorri,
ele sabe que o índio foi enganado. Agora ele pode explorá-lo”.
Quem é o grupo? O caubói ou o índio? O caubói é a gravadora
ou o índio somos nós? As conotações políticas estavam quase
todas vinculadas à crítica ao capitalismo e sempre davam margem
à dupla interpretação dada pelo fato do grupo pertencer a
um sistema que criticava.
Aí reside parte da magia do Gang of Four. Return the Gift
trata um namoro como uma compra e exige compensação
(“devolva-me noites e finais de semana”), mas pode ser ouvida
como um fã contrariado com o grupo. Damaged Goods falava que
“mudar te fará bem”, mas não fala em mudar o quê. E
enquanto você está dançando At Home He’s a Tourist, eles cantam
que “lá na pista de dançam/ eles têm seu lucro”. O primeiro
EP, trazia estampado na capa a frase “Você sabe que nós dois
estamos no negócio de entretenimento”.
Mas toda esta crítica de duplo sentido seria impossível
não fosse a combinação geométrica do som em conjunto. Andy
e Jon trocavam vocais como Reed e Cale no clássico Murder
Mystery (do terceiro disco do Velvet Underground), cuspindo
frases umas por cima das outras como se criassem uma
paisagem com diversos pontos de vistas. A cozinha Allen e
Burnham seria seriamente afetada com a saída de Dave e a
entrada da ex-League of Gentlemen Sara Lee.
Com a entrada de Sara, já no começo dos anos 80, o grupo foi
se centralizando cada vez mais na dupla da frente e o som
ia ficando cada vez mais pop. Eles perceberam que alterar a
musicalidade daquele som que eles pretendiam tornava sua crítica
muito mais feroz e eficaz, mas os primeiros fãs deixaram o
grupo para trás com o início dos beats eletrônicos. O próximo a
sair foi Hugo, substituído por uma bateria eletrônica, mas o
conjunto não vingou por muito tempo. O ano era 84 e a mesma região
que havia dado o Gang of Four agora fervilhava ao som de novas
bandas e eventos - a gravadora Factory, o clube Haçienda e o
novo New Order, surgido das cinzas do Joy Division apontavam
Manchester como o novo foco e ao som da guitarra de Johnny Marr
e dos vocais de Morrisey, o Go4 sucumbiu.
Voltaram à ativa em 91, mas sem o gás do início. Profissionais
ao extremo, gravaram alguns outros discos até 95, quando
novamente anunciaram o fim da banda. Mas a volta não chegou nem
aos pés do turbilhão inicial. Por isso, nem precisa dizer, as
melhores faixas de 100 Flowers Bloom (outro termo ligado à
Revolução Cultural Chinesa) são as gravadas antes de 81. Entre
os inéditos, os trechos de shows chamam mais atenção, especialmente
um ótimo take de Anthrax, em 80. Vale o investimento.
               (
geocities.com/trabalhosujo)