Publicado originalmente no Trabalho Sujo (21/01/1999)

EPÍTOME PROGRESSIVO

A caixa Archives 1967-1975 dá uma geral na melhor fase do 
Genesis, capturando o auge da banda no início de 1975 com 
a execução na íntegra de sua principal obra-prima, o então 
inédito The Lamb Lies Down on Broadway

Alexandre Matias

Rock progressivo, bicho incompreendido. Nascido da 
psicodelia inglesa, este monstro foi alimentado pela fome 
de quantidade que regia os anos 70. Suas intenções 
distanciavam-se do rock desde o início - a idéia aqui 
era dar um passo além do rock, aproximá-lo da arte. Talvez 
este tenha sido o grande erro do progressivo, este flerte 
- que mais tarde tornaria-se casamento -- com a Arte Séria. 
Não que fosse um erro indesculpável. O problema é que este 
simples gesto fez com que várias bandas se aproximassem 
do gênero com a única intenção de exibir sua técnica 
apurada e que músicos treinados em conservatórios vissem 
uma chance de se tornar um pop star tocando muito mais 
(mas muito mais mesmo) que três míseros acordes.

Mas o progressivo, em sua concepção, não é um verme 
parasita nem um aberração erudita. Era uma tentativa 
adolescente - daí o termo rock vir pregado ao gênero - 
de divertir-se como seus ancestrais. Como se a música 
e a literatura clássica européia fossem o equivalente 
à música pop de escritores e compositores de séculos 
anteriores, vários garotos ingleses se juntaram pra 
voltar à era vitoriana da literatura ou ao romantismo 
da música em plena era hippie. E com cabelos compridos, 
instrumentos elétricos e um século 20 quase inteiro 
de inspiração, esses garotos começaram a parir um novo 
erudito.

No centro do gênero, o Genesis. Epítome progressivo por 
excelência, o quinteto britânico o representa melhor que 
qualquer outro grupo. O Pink Floyd, o mais popular dos 
progs, não pode ser um exemplo de progressivo pois suas 
letras falavam de sentimentos humanos, descrevendo 
paisagens que existem, além de saírem do blues e depois 
da psicodelia rumo à viagens sonoras mais ousadas.

Já o Genesis - cuja primeira fase de sua carreira é 
devassada na caixa de raridades Archives 1967-1975 
(Virgin) - não. Essencialmente inglês, o grupo não tinha 
influência de blues ou de rock. Apesar dos dois grupos 
que o originaram (Amon e The Garden Wall) serem de 
rock, o novo conjunto dispensava as influências 
evidentes do blues na música pop da época. Preferiam 
se entregar à música folk inglesa e ao erudito, 
casando os dois com peso, eletricidade e um senso pop 
pra lá de aguçado, cortesia do vocalista e letrista 
da banda, o ex-estudante de arte Peter Gabriel.

Gabriel era a principal engrenagem da máquina que era 
o grupo. Era ele quem criava as histórias por trás dos 
discos da banda, quem escrevia as letras e tinha as 
sacadas para refrões fáceis dentro de músicas longas e 
complexas. Mas o grande segredo por trás do vocalista 
do grupo era sua intensidade dramática uma vez no palco. 
Mais que ator, Peter era dono de um carisma quase 
religioso, domando platéias com gestos, sussurros e 
olhares.

O grupo surgiu em 65, na escola de Charterhouse, em 
Surrey, subúrbio de Londres, decidido a fazer música 
séria. Desde o começo nunca abriram mão de seus ideais, 
tocando apenas músicas próprias, mesmo que completamente 
diferentes das canções compostas à época. Em 67, o 
guitarrista Anthony Phillips, o baixista Mike Rutherford, 
o tecladista Tony Banks, o baterista Chris Stewart e 
Peter Gabriel foram contratados por Johnnattan King, 
diretor da gravadora Decca, onde gravariam o primeiro 
disco, From Genesis to Revelation (com um novo baterista, 
John Silver), em 69.

From Genesis... é o primeiro disco de progressivo clássico, 
mas não foi por isso que ele não foi bem nas paradas. É que 
seu título faz referência à bíblia (pode ser traduzido como 
Do Gênese ao Apocalipse) e muitas lojas de discos o colocaram 
na prateleira de discos religiosos. Com um novo baterista e 
guitarrista (Phil Collins e Steve Hackett), o grupo assinou 
com a inglesa Charisma.

E junto com os anos 70 o Genesis começava sua melhor fase. 
Clássico atrás de clássico, o grupo lançou, em seqüência, 
Trespass (com a lendária The Knife), Nursery Crime (com sua 
opereta The Musical Box), Foxtrot (o primeiro grande sucesso 
de público, com Suppers Ready e Watchers of the Skies), 
Genesis Live e Selling England by the Pound. Discos 
suntuosos como palácios, mas cheios de refrões ganchudos 
como boas músicas pop. Esta mistura estranha deu ao Genesis 
um ar nobre, podendo se orgulhar de ser um dos poucos 
grupos progressivos cuja técnica instrumental e narrativa se 
completavam, atraindo fãs como se fosse uma banda de rock normal.

Mas não era. E não bastasse os discos que já haviam produzidos 
até então, eis que eles surgem com sua obra definitiva. The 
Lamb Lies Down on Broadway, de 74, é o único disco do Genesis 
que quem não é fã do grupo precisa ter. Não apenas resume todo 
o legado do grupo, como discorre talvez a obra mais complexa e 
grandiosa feita dentro do universo rock. Os dois primeiros 
discos de Archives são dedicados ao maior momento da banda, a 
primeira performance ao vivo de sua obra-prima.

São quase duas horas de um show impecável e preciso, além do 
mais ousado até então. Porque os shows do Genesis eram mais que 
uma simples apresentação ao vivo. Eram espetáculos cênicos, com 
cenários e máscaras feitos apenas para valorizar a atuação de 
Peter Gabriel no palco. E o show de lançamento de Lamb... 
era além de tudo que o grupo poderia ter imaginado no começo 
de sua carreira.

O disco conta a história da morte (embora nunca diga isso 
propriamente) de Rael, um punk grafiteiro das ruas de Nova 
York, sua descida ao inferno e sua redenção final. Uma 
viagem surreal, em que Gabriel misturava elementos da 
cultura pop da época, diversos imaginários de pintores 
góticos e surrealistas e sua própria mitologia, vitoriana 
e barroca. Para auxiliar esta história, diversas fantasias 
eram usadas por Gabriel, algumas realmente assustadoras, 
além do ápice do disco - em que Rael encontra seu irmão, 
John, com seu próprio rosto -, fazendo o vocalista 
encontrar-se consigo mesmo, num efeito inimaginável pelos 
fãs daquela era pré-George Lucas.

Os dois primeiros discos de Archives captam isso: uma banda 
tocando e encenando ao vivo sua obra-prima. Muitos podem 
argumentar que o disco é melhor que o show, mas ao lembrar 
que o concerto era uma peça única tocada sem o disco ter 
sequer ter sido lançado e sem pausas, transforma erte 
evento na experiência definitiva do Genesis.

Durante a turnê de Lamb..., Peter confessou ao empresário 
que iria deixar o grupo. Com seus dotes messiânicos, o 
público passou a associar sua imagem com a do Genesis, 
como se ele fosse um criador e os outros sua banda de 
apoio. Quando oficializou sua saída, disse que não estava 
saindo para “fazer um Bowie” ou “fazer um Ferry” e 
passou o microfone para o baterista Phil Collins. Mas 
Genesis sem Peter Gabriel é como o Black Sabbath sem o 
Ozzy: é qualquer outra coisa, mas sempre pior que o grupo 
original.

Isso faz da caixa um registro não oficial da época de ouro 
do grupo. Além da íntegra do concerto de San Francisco, 
Archives ainda traz dois CDs de raridades. Um deles 
conta apenas com versões ao vivo de canções conhecidas, 
como Watcher of the Skies, Suppers Ready, I Know What 
I Lie e Firth of the Fifth. Este disco não acrescenta 
muito à carreira do grupo, mas funciona como uma bela 
compilação do melhor produzido pelo conjunto, pronto 
para iniciantes começarem suas viagens ao imaginário 
surreal de Gabriel e às entrelaçadas e complexas incursões 
sonoras, pra fã de Massive Attack e Radiohead nenhum 
botar defeito.

O quarto disco, no entanto, é a jóia que os fãs queriam. 
Feito para os verdadeiramente iniciados no grupo, o último 
CD da caixa é o equivalente genesiano ao Anthology dos 
Beatles. Rascunhos, demos, versões alternativas de vários 
clássicos aparecem um atrás do outro. Ouvimos Shepherd, 
Pacidy e Let Us Now Make Love em versões da BBC. Mixagens 
cruas de várias gravações pré-From Genesis... e algumas 
demos do início da carreira. Ou seja, uma caixa que, 
além de captar o artista no auge, nos brinda com seus 
melhores momentos ao vivo e um disco de raridades obscuras. 
E o detalhe é que nada desta coleção havia visto a luz do dia. 
Até hoje.

    Source: geocities.com/trabalhosujo/txt

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