Texto publicado originalmente na revista Play número 4, junho de 2002
PLAY 4
Apesar da internet, da computação de dados ou do design terem papéis
cruciais na transição da era industrial para a eletrônica, ninguém
desempenhou melhor este papel do que a música pop. Feita para tocar no rádio
ela, ao mesmo tempo que atualizava conceitos ancestrais, criavas novos
formatos de apresentação de si mesma. Mas esta tendência pela renovação
criou no pop hábitos que aos poucos começaram a empurrar suas próprias
fronteiras, confrontando-o com sua essência. Aos poucos, a música pop
começou a se tornar experimental e seus elementos artificiais foram sendo
substituídos por outros, mais naturais, mais, digamos, "primitivos"...
E logo ela deixou de ser apenas divertida e descartável para se tornar
efetivamente transformadora, fazendo com que as pessoas se vissem em novos
contextos (mais próximos de sua natureza, que a idade da mecânica tanto
reprimiu), mesmo que por poucas horas. Foi a música pop que nos apresentou,
na prática, a noções hoje óbvias, como "realidade virtual", "espaço
cibernético", "inteligência artificial". Embora em contextos que pouco
lembrem os utilizados atualmente, o pop nos acostumou à revolução digital
que transcorre enquanto eu escrevo e você lê este texto. Tanto o
Cibercultura de Pierry Levy quanto o Neuromancer de William Gibson
(obras-chave para o entendimento da nova era) usam a música como metáfora
para as mudanças que estavam por vir. E é engraçado pensar que, quando a
eletrônica olha para trás e vê a era industrial como uma boa idéia que deu
errado, ela nos cobra uma volta às origens, indicando valores tidos como
ultrapassados e renegados pela cultura vigente: comunidade, tribo,
comunicação oral, informalidade, a arte como algo a ser vivido e não
arquivado, indistinta da vida.
A mudança que vivemos é basicamente de ritmo. Estamos trocando uma velha
lógica quantitativa de tempo e a substituindo por uma outra ainda mais
ancestral, trocando a cultura numérica pela cíclica. A tendência é que
passemos a observar o andar do tempo como um ritmo a ser seguido e não
perseguido. As conotações quase zen que aproximam a eletrônica de filosofias
humanistas como o budismo, a mudança no conceito de propriedade ou o simples
arcadismo hippie (desta vez sem precisar fugir para o campo: o campo é aqui)
abolem as correntes ditadoras do tempo, que cobram sua espontaneidade e
criatividade para você agir como um robô. A eletrônica, apesar de cobrar em
segundos, dá àquele que a melhor desfruta, uma rotina quase indígena, que
nos permite fazer o que quisermos à hora em que tivermos vontade. Desde a
invenção da escrita que a Humanidade não dispõe de tanto conforto.
Ao trocarmos os parâmetros e seguir o ritmo natural em vez do ditado pela
sociedade industrial, nos aproximamos da base rítmica da vida, que aceita o
fluxo em vez de voltar-se contra o mesmo. Aqui, não há registro. "Os
direitos autorais cobrem melodia, harmonia e letra. Linhas de baixo e
bateria nunca vão ser registradas", filosofava King Tubby, inventor do dub,
variante psicotrópica que tira a gravidade do reggae e transforma a dupla
baixo/batera no fio condutor de uma música sem fim, um mantra com suíngue. A
mentalidade open-source por trás da música pop é o que nos faz entender
conceitos básicos da nova era eletrônica. Robert J. Chassell,
vice-presidente da Free Software Foundation, se pega pensando sobre este
assunto (música como porta de entrada ideal) em nossa cobertura do Fórum de
Software Livre, em Porto Alegre. Desde a escolha de um idioma onomatopéico
como seu latim à abrangência global, passando pela facilidade em fazer,
insatisfação com as autoridades ao rápido resultado das ações: tudo que é
rotina na revolução digital nos foi antecipado pela música pop.
Por isso, eleger os 50 artistas mais importantes do planeta e apontar
brasileiros sintonizados nesta nova realidade não é apenas discutir qual é o
melhor pop produzido hoje, no mundo e no Brasil. Estamos falando de atitude,
de pessoas que peitam o sistema ao mesmo tempo em que se aproveitam do mesmo
para divulgar o que pensam. Gente que sabe que a música é o carro-chefe para
outro tipo de revolução, muito além da dobradinha arte/marketing (cada vez
mais indistintos). Interior, pessoal, mental e emotiva, comportamental e
política, esta nova revolução chega aos nossos ouvidos em forma de música,
suas palavras de ordem poucas vezes são escritas ou ditas; quase sempre são
cantadas. Estamos ouvindo.
Alexandre Matias
               (
geocities.com/trabalhosujo)