Texto publicado originalmente na revista Play número 2, fevereiro de 2002

Re: Cife, século 21

Cinco anos depois da morte de Chico Science, a capital pernambucana respira
uma renascença cultural e tecnológica que tem suas origens no mangue beat

Alexandre Matias

“Computadores fazem arte
Artistas fazem dinheiro
Computadores avançam
Artistas  pegam carona
Cientistas criam o novo
Artistas levam a fama”
(“Computadores Fazem Arte)

O cheiro forte que se transforma em condensação sua as paredes e faz Recife
parecer encravada no passado. Corpos seminus passeando pelas principais ruas
da cidade, peles de todos os tons se misturando a olhos de todas as cores e
aquele mormaço que distorce lentamente a visão dão à capital pernambucana um
ar de paraíso perdido no tempo. O porto e o centro da cidade, suas favelas,
pontes e florestas de mangue, tudo lembra aquelas pinturas coloniais que
ilustram livros de história, cenas da população nordestina do século 18,
pré-Gilberto Freyre, pré-Império. Uma das mais bem-sucedidas capitanias
hereditárias, Pernambuco concentrou, em sua capital, a essência de seu
passado. Como Salvador e o Rio de Janeiro (em épocas distintas), Recife,
olhando de fora, parece uma cidade parada no tempo.

Mas um olhar um pouco mais apurado e vemos outra cidade. Nada de alma
colonizada: Recife é cosmopolita e moderna, embora não queira deixar de
andar descalça e dormir em redes. A quarta pior cidade do mundo ainda
ostenta tal título, mas sem medo do futuro, abraçando o século 21 como
nenhuma outra cidade brasileira. Tal apego vem do pioneirismo em internet no
Brasil, na linha de frente em projetos tecnológicos alternativos e ousados e
numa população jovem cada vez mais afeita à música eletrônica e à cultura
hip hop, manifestações culturais urbanas de caráter global que, em cada
cidade que se instalam, buscam linguagens próprias do folclore local. Estes
diferentes reflexos de contemporaneidade podem ser considerados
desdobramentos de um mesmo Big Bang cultural: o movimento mangue beat.

Fundado no início da década de 90 e apresentado para o resto do Brasil no
biênio-manifesto 93/94, quando Mundo Livre S/A e a Nação Zumbi davam e
representavam as coordenadas do novo Pernambuco, o movimento mangue beat
chegou a um fim abrupto com a morte de um de seus fundadores, Chico Science.
Colidiu seu Fiat em um poste há poucos metros do Centro de Convenções da
capital, onde anualmente é realizado o festival Abril Pro Rock, que nasceu
com o mangue beat e se estabeleceu como o principal panorama pop do Brasil -
e isso há centenas de quilômetros do eixo Rio-SP. A morte de Chico Science,
no dia 2 de fevereiro de 1997 (há cinco anos), encerrou a primeira fase do
movimento cultural. A partir daí, a idéia por trás do mangue beat continuou
de pé, mas disseminada na cabeça de milhares de pernambucanos - e
nordestinos. Foi como se Chico se sacrificasse para que todos pudessem
entender - e logo - a mensagem que ele queria passar. Mudar o lugar, e
transformar Recife numa grande festa. Numa grande rave - na praia.

Ao morrer, Chico Science tornou-se a encarnação do novo imaginário pop
pernambucano, um ícone onipresente que sintetizava as principais
características do movimento. As representações metafóricas que eram usadas
para descrever a transformação cultural (caranguejos com cérebro, parabólica
enfiada na lama, "Maracatu Atômico", Da Lama ao Caos, "O Dia em que Santos
Dumont Encontrou Isaac Asimov"...) se tornaram ultrapassadas, perto da
imagem de Chico. Liso, malandro, bem-humorado, copo de cerveja à mão e
óculos escuros no rosto, malungo sangue bom, reza a letra e a diz amém a
memória. Com os pés cravados na lama e a cabeça no ciberespaço, colocou
Negroponte na roda de samba e hip hop na embolada. Todas as principais
qualidades do movimento - a usina de som da Nação Zumbi, o intelectualismo
de boteco de Fred Zero Quatro, o idealismo revolucionário do manifesto, o
chapéuzinho de palha e a criação dos mangueboys e manguegirls - convergiam
para Chico Science. "Hoje cada recifense tem no olhar um pouco de
guerrilheiro da Frente Pop de Libertação", lembra Zero Quatro no segundo
manifesto do mangue - Quanto Vale Uma Vida -, lançado após a morte de Chico.
Todos se enxergavam nele. E, em dois anos, Recife se tornou a cidade mais
moderna do Brasil. Tudo uma questão de mentalidade, tudo uma questão de
auto-estima.

Ambas foram mudando à medida em que a motivação de Chico foi sendo
compreendida - e mãos foram à obra. Logo, espasmos de criatividade foram
surgindo em diferentes lugares da capital pernambucana, completando lacunas
deixadas pela morte prematura do porta-voz do mangue beat. De sites pela
internet a manifestações multimídia, de informativos digitais à empreitadas
de infra-estrutura, de projetos eletrônicos a listas de discussão, Recife
puxa o Nordeste do ponto de vista tecnológico. O start dado pelo mangue beat
ligou cabeças diferentes em discussões atualíssimas, sem perder o contato
com a tradição. E se hoje o Nordeste brasileiro discute questões como
cibercultura, música eletrônica, vida digital e software livre, pensa lendo
gente como Richard Stalman, Noam Chomsky, Hakim Bey e Timothy Leary, culpe o
mangue beat.

Na música, os exemplos são mais evidentes. Embora a música eletrônica não
estivesse no centro da fusão do mangue (que centrava-se na colisão entre
rock lisérgico, black music e maracatu da Nação Zumbi e no neo-Ben do Mundo
Livre S/A), as referências techno deixadas pelo movimento não deixam dúvidas
quanto à sua natureza cibernética. Da placa de computador no cavaquinho de
Zero Quatro ao sufixo ciber em Afrociberdelia, título do segundo disco de
CSNZ, a tecnologia encontrou brechas para entrar na cultura do Recife. A
cena eletrônica da cidade não pára de crescer, basta ver a quantidade de
bandas que formam, hoje, a base da segunda geração do mangue beat, como
Bonsucesso Samba Clube, DJ Dolores Y Orchestra Santa Massa, D-Urb,
Lunarrossa, Stella Campos, FPU, Re:Combo, entre outros nomes. Sem contar a
própria música eletrônica, que entrou na cidade aos poucos, através de doses
homeopáticas no Abril Pro Rock.

Foram quatro anos de tentativas, cada uma mais feliz que a anterior.
Primeiro, vieram os DJs Camilo Rocha e Soul Slinger (o brasileiro radicado
em Nova York que organizou a Ecosystem, a rave de Manaus), que tocaram seus
sets para um público alien à nova dance music. A passagem de Camilo pelo
festival é histórica: foi nela em que Otto viu que o rumo para sua carreira
solo teria de passar por aquele tipo de som. Em 2000, o festival contou com
uma tenda eletrônica específica, que recebeu AD, Anvil FX, DJ Patife, Mad
Mud, Andrea Marquee, Shiva Las Vegas e Guizzzmo e colocou muito metaleiro
pra chacoalhar o esqueleto. A edição do ano passado, pega com as calças na
mão após um corte de verbas inesperado, ainda contou com Amon Tobin e
discotecagem cabeçuda dos moleques MCs do Asian Dub Foundation. Para este
ano, a organização do festival promete, não uma tenda nem um dia, mas um fim
de semana inteiro dedicado à farra eletrônica, quando, antes do festival
propriamente dito, DJs e produtores se revezarão para agitar a massa reunida
em Nova Jerusalém, cidade em estilo medieval construída para servir de
cenário para a tradicional Paixão de Cristo, na Páscoa.

Ainda no território musical, é possível perceber a influência do mangue beat
na criação da sólida e cada vez mais forte cena hip hop de Recife. Além de
nomes conhecidos no Brasil, como Faces do Subúrbio e Sistema X, a periferia
da cidade conta com um sem-número de MCs e DJs, grupos e campeonatos de
break e até uma escola de grafite, a Subgrafx. Outros artistas tradicionais,
alheios à nova tecnologia em música, já se renderam aos computadores ao
menos para a comunicação, criando sites e usando a internet para distribuir
MP3s.

A internet é terreno fértil no Recife. Uma das primeiras cidades do Brasil a
ter acesso à rede mundial de computadores, a capital de Pernambuco é
pioneira no uso da net para veiculação de notícias alternativas. O centro de
tudo começa no webdesigner e ciberintelectual H.D. Mabuse, que centraliza a
produção online no auge da primeira fase do movimento, criando o MangueBit
(www.manguebit.org.br) e a rádio Manguetronic (www.manguetronic.org.br).
Logo, surgiam outras revistas e e-zines, como o MangueNius
(www.manguenius.com.br), o Aparelho (www.manguebit.org.br/aparelho/), A
Ponte (www.aponte.com.br), O Carapuceiro, do jornalista Xico Sá
(www.carapuceiro.com.br), a revista de cinema Cinemascópio
(www.cinemascopio.com.br), Acorda Povo (www.acordapovo.com.br) - site do
projeto de cultura organizado pela Nação Zumbi, pela banda punk Devotos e
pela Secretaria de Cultura do Estado -, e por aí vai...

Além de cultura, Recife também discute tecnologia pura e simples. Os dois
melhores exemplos desta face hi-tech da cidade é o Centro de Estudos Sociais
Avançados do Recife, o C.E.S.A.R., organizado pelo pensador Sílvio Meira, e
o projeto Porto Digital, idealizado pelo secretário de ciência e tecnologia
Cláudio Marinho. Ambas empreitadas colocam Recife na vanguarda do pensamento
empresarial tecnológico brasileiro, além de vislumbrar a cidade como pólo de
produção e referência nacional em alta tecnologia a médio prazo. Difícil
desvencilhá-los da aura informática da renascença cultural do mangue.

Mesma renascença que abriu os olhos do resto do Nordeste e sintonizou
diferentes cabeças na lógica eletrônica do novo século, dando margem a uma
ebulição artística e comportamental ainda difícil de ser mensurada. As raves
no interior da Bahia, o conglomerado interestadual de DJs Pragatecno, os
experimentos de vanguarda na Paraíba, o beatbox dos alagoanos Sonic Junior,
o big beat dos cearenses Forma Noise, os inúmeros projetos do Cibercultura,
na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Todos
decorrem, de alguma forma, do bumba-meu-rádio cogitado por Chico.

Cinco anos depois de sua morte, Recife está mais próxima da cidade que o
mangueboy original sonhou. Continua a musa decadente, suja e banguela que
rouba cenouras no fim de feira, mas com a mente na imensidão digital do
século 21. Habitando os circuitos de uma nova rede de informação e cultura
que cresce à medida em que sua mensagem é captada, o espírito de Chico
Science, entre zeros e uns, sorri.

    Source: geocities.com/trabalhosujo/txt

               ( geocities.com/trabalhosujo)