Texto publicado originalmente na revista Play número 2, fevereiro de 2002
Tudo a ver
Reality shows, webcams, blogs, TV digital, sistemas de segurança: ver e ser
visto é uma mania mundial
Alexandre Matias
A menos que você esteja na cada vez mais distante ilha deserta, você está
sendo observado. Alguém em uma janela lhe vê caminhar pela rua. Sua vizinha
arriscas espiadelas discretas através espelho do elevador. A central de
segurança do banco. Os guardas no trânsito. Sua movimentação bancária. A
câmera do radar. A luz que se acende repentinamente, na calçada. O contador
de page-views de qualquer página na internet. Impostos. O clique no
decodificador da TV paga. O porteiro por trás do vidro fumê. O histórico no
seu browser. Documento fotografado para pegar crachá de visitante em prédio
executivo. Seu currículo online. A tecnologia disponível permitiu que a
civilização moderna se transformasse uma rede de cessão e aquisição de
informação e que o nível de complexidade destes dados transformasse qualquer
centímetro das vidas pessoais em bem precioso - seja para pesquisas de
opinião, índices de audiência, segurança pública, burocracia ou mera
bisbilhotice. Agressores diferentes de algo cada vez mais escasso:
privacidade.
Mas quem quer ser anônimo? Na sociedade capitalista, ninguém. É uma troca:
cede-se a privacidade em troca da fama. E encontramos atores ensaiando
discursos de agradecimento, meninas desfilando para câmeras imaginárias,
advogados praticando diferentes versões da mesma fala no espelho, cientistas
imaginando as grandes entrevistas que poderiam dar, políticos discursando
asneiras no banheiro, um segundinho no retrovisor pra arrumar o cabelo,
provadores em loja de departamento que tornam-se verdadeiros camarins de
ilusão. Todo mundo está preocupado com a aparência, para caso seja
"descoberto" repentinamente. Todo mundo acha que tem talento em alguma área
e que este talento pode se perder, caso não dêem a devida atenção. Todo
mundo quer ser visto, ouvido, lido e falado. Ser discutido e comentado.
É o que faz milhões de pessoas subirem a audiência de uma emissora de TV com
um programa que vigia a convivência de estranhos em uma situação extrema. É
o que vende revistas de celebridades, gera milhares de novos blogs por dia,
aumenta a popularidade de webcams, fomenta um mercado de fofocas e uma rede
de detetives profissionais, grampeadores de telefone e arapongas de primeira
hora, transforma jornalistas em espiões, fotógrafos em caçadores, zés manés
em celebridades, programas de P2P em traficantes de dados. O jogo entre a
fama, a curiosidade e a vaidade alimenta uma cadeia de interrelações que
geram produtos pop com um aspecto cyberpunk - tecnológico e decadente:
reality shows, peep-sites, aparelhos de escuta à distância, blogs,
microcâmeras, programas, revistas e sites de fofoca, celulares craqueados,
papparazzi... A mistura de homem, máquina e curiosidade gera esta rede de
intercâmbio de intimidades que transforma qualquer transeunte em voyeur.
A internet tem papel fundamental no crescimento deste datatráfego, afinal
foi o primeiro veículo de massas a permitir, em sua concepção, a contramão
do fluxo de dados, dando ao espectador condições de enviar a sua cota de
informações diária. Entre os diversos tópicos eleitos por milhões de
internautas como seu conteúdo básico, falar sobre si mesmo tornou-se um dos
itens mais populares. Subproduto do sonho americano, esta compulsão por
expor sua intimidade extrapolou as toscas Fulano's Page que, cheias de gifs
animados, cores berrantes e tons em midi, transformavam o Geocities em um
favelão virtual. Hoje, a internet serve de cabide para variadas webcams,
diários diversos, álbuns de fotos, vídeos contrabandeados de circuitos
internos de TV - todos criando celebridades minúsculas, figurantes sorrindo
sobre os ombros das estrelas de primeira grandeza, todos à espera de sua
vez. Vidas inteiras contadas para quem quiser ver, ler ou ouvir.
Em contrapartida, a paranóia de segurança arma câmeras em todas as brechas,
permite a vigília 24 horas e abre mão da privacidade para entregar-se ao
estado. Seja para encontrar terroristas, guerrilheiros, seqüestradores,
vândalos ou suspeitos em potencial. Ao mesmo tempo, empresas diversas
perguntam constantemente consumidores quem é ele e quais seus hábitos. O Big
Brother de verdade, como imaginado por Orwell, faz parte da rotina e nos
olha sorrindo como Mickey Mouse. Estamos constantemente vigiados, cientes
disso e concordando - afinal, dizem, é para o nosso bem.
Se hoje é assim, que dizer como será daqui a alguns anos? Com a convergência
de mídias, vamos criar nossos canais de televisão como botamos sites no ar,
trocar filmes pelo celular, publicar fotografias indiscretas em tempo real,
espionar a vida do vizinho até mesmo quando estivermos viajando. A
tecnologia vai permitir uma fragmentação ainda maior das personalidades das
pessoas, que vão se expor cada vez mais. E vão assistir cada vez mais os
outros e a si mesmos.
Mas quem irá vigiar esta quantidade de informação? Empresas e governos têm
pessoal para acompanhar o fluxo de informação que vaza pela internet? Seria
esta a saída para o desemprego em massa do começo do século? Espionar será a
profissão do futuro? Contrabando de informações vai deixar de ser uma força
de expressão? Quem está vigiando quem?
               (
geocities.com/trabalhosujo)