Cap1

 

NA TERRA MARCADA PELA CRUZ

 

 

Terra feliz!

 

 

“Eu chamo-me Alexandrina Maria da Costa, nasci na freguesia de Balasar, concelho da Póvoa de Varzim, distrito do Porto, a 30 de Março de 1904, numa quarta-feira santa e fui baptizada a 2 de Abril do mesmo ano, era então sábado de Aleluia.

 

Serviram de padrinhos um tio de nome Joaquim da Costa e uma senhora de Gondifelos (Famalicão), de nome Alexandrina”.

 

Começa assim as suas notas pessoais a nossa biografada.

 

Balasar, cujo nome deriva de Belisário, foi vila romana da cidade de Bagunte. Dista 15 quilómetros da Póvoa de Varzim, sede de concelho, vila debruçada sobre o Atlãntico, a 26 quilómetros do Porto.

 

Pertence também ao Minho florido, região verdejante a noroeste de Portugal, e à antiquíssima arquidiocese de Braga.

 

A freguesia de Balasar conta quase dois mil habitantes, e é formada por 22 lugares escondidos entre pinheirais dispostos em suave declive, ou como que sepultados entre altas ramadas de videiras em verdes campinas. As pequenas habitações são, ordinariamente, de pedra rústica ou pintadas com cores vivas.

 

Há ali algumas minas de lousa e cal. Os habitantes são laboriosos e bons.

 

A igreja paroquial, de não remota construção e em típico estilo português, está situado na base dum pequeno monte, na margem esquerda do ribeiro que fertiliza os campos ricos de frutos e cereais. Diante da igreja ergue-se, num pequeno vale, uma capela humilde, construída em 1832 para defesa de uma grande cruz surgida no solo, de um modo inexplicável, naquele mesmo ano.

 

Nesse modesto templo vigorou, em consequência desse acontecimento, uma Confraria que tinha por fim promover con grande solenidade a festa da Santa Cruz de Balasar.

 

As demonstrações religiosas dos primeiros tempos eram imponentes pelo número de peregrinos que afuíam dos arredores, mas depois, dissipando-se poouco a pouco a lembrança da aparição miraculosa, o culto por essa Cruz desapareceu, e a capela fechou as suas portas.

 

À distância de poucos minutos, na pequena elevaçâo chamada Calvário, viveu Alexandrina, também conhecida pelo nome de Crucificada do Calvário, ou mais vulgarmente “A Doentinha de Balasar”.

 

A fama das suas virtudes levará consigo o nome da afortunada aldeia, que o Senhor destinou para ser teatro de grandes maravilhas.

 

As ervas ruins

 

“Encontro em mim, desde a mais tenra idade, tantos, tantos defeitos e tantas, tantas maldades que como as de hoje me fazem tremer. Era meu desejo ver a minha vida logo desde o princípio cheia de encantos e de amor para com Nosso Senhor”. Assim escreveu a Alexandrina.

 

Antes dos três anos, não recorda senão qualquer mimo especial por parte daqueles que lhe são queridos. À volta dos três anos surge a primeira sombra.

 

Estando deitada com a mãe, para a sesta da tarde, descobre sobre uma mesa uma malga de gordura de aplicar no cabelo; enquanto a mãe dorme, levanta-se ligeira, agarra-se aos ferros da cama e procura lançar a mão ao boião. Mas, nesse instante, a mãe arcorda e fala severamente à filhina. A criança, amedrontada por aquele grito inesperado, deixa cair a malga que se faz em estilhas; e, perdendo o equilíbrio também ela cai, ferindo-se gravemente, no lado direito da boca.

 

A mãe, com a filha a escorrer sangue, nos braços, corre para o médico que, não tendo à mão o necessário para curar a ferida, manda mãe e filha a uma farmácia à distância de vários quilómetros.

 

Os gritos da menina são indizíveis, inconsoláveis. Ninguem consegue acalmá-la. Nem os bons modos do farmacêutico, nem os doces que lhe oferecem, nada. A Alexandrina, mais irritada do que nervosa,não lhes poupa pontapés e arranhões. “Ora aqui está a minha primeira maldade!”. –comenta nos seus escritos.

 

Quando se zangava com a irmã Deolinda, mais velha do que ela, muitas vezes lhe arremessava o que tinha à mão, sem muitas cerimónias.

 

Quando, perto dos seis anos, começou a frequentar a catequese, manifestou o princípio doutros defeitos, de que a própria Alexandrina fala com humilde franqueza.

 

O Coadjutor do Abade, o Sr. Padre António Matias, havia fixado à nova aluna de catecismo um lugar entre as crianças da sua edade, mas a Alexandrina, que tinha sido acompanhada à igreja por algumas raparigas mais velhas, teimou em ficar na classe destas. Por mais que o sacerdote quisesse persuadi-la, com boas palavras e com a oferta de estampas, a ir para o grupo que lhe pertencia, não conseguiu convencer a teimosinha senão ao fim de alguns dias de aula.

 

A Alexandrina conta também que, na igreja, gostava muito de se entreter a contemplar as imagens dos santos especialmente a de Nossa Senhora do Rosário e a de S. José, porque ricamente adornadas. Sonhava então, acrodada, em também poder vestir-se assim. “Não sei –escreve ela nas Memórias- se seria já o princípio da manifestação da minha vaidade”. Que era vaidosa demonstra-o o seguinte episódio, narrado por ela mesma.

 

Já mais crescida, recebeu ela, como presente da mãe, um par de graciosos tamanquinhos. Delirou de alegria ao vê-los. Imediatamente fou para o quarto o vestiu a roupa do domingo, calçou-os e assim passeou feliz pela casa. Depois, ajoelhou-se no chão, sentada sobre os calcanhares, com os famosos tamancos na frente, como fazem as mulheres nas igrejas. Sentiu-se contente: havia de fazer uma linda figura.

 

Esta teimosia e vaidade, sob a acção da graça e do seu esforço pessoal, hão de vir a mudar-se em duas virtudes, que brilharão na sua vida: fortaleza de espírito, fineza e nobreza de atitudes.

 

Em 1947, dirá o Director espiritual: “Todos os meus defeitos me deram muito trabalho”.

 

“Ainda hoje, aquilo que mais me custa é impor-me o silêncio. Se vejo qualquer coisa que vá contra a consciência e percebo que uma pessoa erra, eu não posso calar, embora isso me custe.”

 

Fortaleza de espírito, que usou nas relações com os outros, mas sobretudo consigo mesma, na fidelidade ao seu programa de perfeição.

 

Que a Alexandrina tenha trabalhado em si mesma desde nova, ficou provado em mil ocasiões.

 

É eloquente quanto ela mesma me contou na presença da irmã, em 1947:

 

“No tempo da epidemia espanhola, morreu um nosso tio. A Deolinda e eu ficámos na companhia da família até ao sétimo dia da morte, para assistirmos à Santa Missa em seu sufrágio. Certa manhã, peridam me para eu ir buscar um pouco de arroz de um cartucho que estava no quarto onde o tio tinha morrido. Cheguei mesmo até à porta, mas não tive coragem de entrar. Tinha medo. Teve de lá ir a avó. Naquela mesma tarde, mandaram-me ir fechar a janela desse quarto: ao chegar à porta, senti as pernas a tremer e fiquei pregada ao chão, sem forças para prosseguir. Então, disse a mim mesma: “Devo vencer e dominar o medo”. Abri, e, de propósito, com passo lento, passei onde estivera o caixão do meu tio, até ao quarto onde morrera. Desde então, não tive mais medo: tinha-me vencido à minha custa.”

 

A menina vaidosa dirá mais tarde: “Não importa que os meus vestidos estejam remendados, contanto estejam bem remendados. Una peça velha, bem passada a ferro, é como nova. Eu não me convenço que o Menino Jesus não tivesse de ir pelo caminho da falta de limpeza. Somente iria por aí se não houvesse outro. Mas o Senhor, parece-me, não querer a falta de limpeza nem da alma nem do corpo. Pobres sim, sujos não”.

 

Na sua casinha pobre, junto ao sou leito de enferma, senti-se-ão bem as pessoas de qualquer categoria social, que aí verão associadas, harmoniosamente, a simplicidade e a distinção, a pobreza e o asseio.

 

O carácter

 

Nas reuniõnes familiares a Alexandrina era mensageira da alegria. Grande hilaridade provocavam os seus apartes. A mãe costumava dizer: “Os ricos têm os bobos nos seus palácios; eu não sou fidalga, mas também tenho em casa quem trata de nos fazer rir”.

 

Ãs frases espirituosas e às graças que lhe afloravam aos lábios, suscitando alegria no ambiente, una muitas vezes alguns gracejos próprios dum carácter cheio de vivacidade e duma singular prontidão de inteligência. A Deolinda, mais velha e, por temperamento, mais calma, era quase sempre a vítima.

 

Quando lhe parecia, a Alexandrina, de manhã, levantava-se antes da irmã, trancava a porta com dois paus para impedir de sair do quarto, ou dispunha-os no chão para ela tropeçar e cair.

 

Um dia, ergueu e deixou cair com grande estrondo a tampa da mala da roupa, pondo-se a gritar para fazer crer que tinha ficado com a mão esmagada... Deolinda, cheia de susto, correou logo para a socorrer, supondo que ela tivesse ficado com algum dedo cortado.

 

A traquinas, no mais trágico da história, desatou numa grande gargalhada.

 

Só diante do justo ressentimento da irmã é que caiu em si e notou que a brincadeira tinha sido de mau gosto.

 

Até na igreja explodiu uma vez a sua veia de brincadeiras: atou as franjas dos xailes a umas mulheres que estavam a seguir com atenção as funções. Pode imaginar-se o que sucedeu depois...

 

Algumas vezes, escondida atrás dos muros, arremessava pedras às pessoas que voltavam do sermão da igreja. Um dia, tirou à irmã uma camisa de homem que ela acabara de costurar, vestiu-a por cima da sua roupa e assim andou pela estrada a fazer rir a vizinhança...

 

Essa vivacidade de espírito manifestava-se numa irrequietude incorrigível. Nunca parava, nada parava com ela... A mãe dizia: “Era como uma cabrita, trepava para cima de tudo...”

 

Fazia todos os trabalhos como uma pequena dona de casa: cortava e rachava toda a lenha da cozinha. Quando não estava em casa, certo era que estava no rio a lavar roupa. Parecia até uma mania da pequena, a quem tanto agradava a limpeza. Se não tinha mais que lavar, lavava o avental.

 

Este excesso de energia, se não era empregado num trabalho útil, devia desafogar de qualquer modo. Daqui a série de traquinices, que lhe mereceu receber da mãe a alcunha de “Maria rapaz”, e que a fazia dominar todas as suas companheiras, mesmo as mais velhas.

 

Trepava às árvores, nunca para tirar ou destruir os ninhos, porque gostava muito das avezinhas, mas por divertimento e pela necessidade de ser expandir.

 

Preferia andar por cima dos muros a andar pelas estradas. A mãe dizia-lhe muitas vezes: “Ó pobre filha, tu qualquer dia morres de morte-macaca”. Um dia, quis atravessar um regato, e, desequilibrando-se na grossa pedra em que havia posto o pé, pouco faltou que não fosse arrastada para longe pela corrente.

 

Em Janeiro de 1911 –conta ela- para poder frequentar um pouco a escola (só fez a primeira classe) –ficou juntamente com a irmã em casa duma família conhecida, na Póvoa de Varzim, sede do concelho (1).

 

Como é natural, levou consigo o temperamento irrequieto. Ficou lá famosa pelas suas corridas atrás das carroças de cavalos, para as quais subia para se fazer conduzir por algum tempo e depois apear-se com agilidade e bravura dos garotos. Só desistiu quando os condutores a acusaram à dona da casa, e apanhou uma boa lição do marido desta.

 

Ela e outras meninas da Póvoa, organizaram, certo dia, um peditório em favor duma capela de Nossa Senhora das Dores, a que faltavam objectos para o culto. A Alexandrina, com o seu grupo, andou a bater a todas as portas das casas de uma parte da povoação. Não havendo, porém, encontrado muita generosidade, as ardentes zeladoras decidiram assaltar um campo de batatas.

 

A Alexandrina escolheu para si o trabalho mais arriscado: fazer a colheita... enquanto as amigas se colocavam em lugares estratégicos para dar o alarme, à aproximação de alguém.

 

Ainda como documentação da sua vivacidade: saiu ela um dia, assim contava, com duas primas para um passeio até a uma mata. Aconteceu encontrarem lá alguns burrinhos a pastar. A Alexandrina teve logo a ideia de aproveitar um para andar a cavalo. Mas, infelizmente, o belo jogo durou pouco. Ao fim de algumas corridas, a pequenita, decerto pela sua inexperiência, foi lançada pelo animal contra um silvado. Por sorte, o mal não foi grande, e tudo terminou com uma gargalhada inocente.

 

O ambiente

 

Um carácter assim vivo e irrequieto poderia levar a pensar que a Alexandrina fosse rebelde a toda a coacção. Irreflectida e pouco sensível tanto à voz do coração como aos bons conselhos.

 

Nada disso. Como cera mole, deixou-se modelar pelo influxo do ambiente familiar e paroquial. Do espírito de caridade da mãe –uma camponesa de coração generoso a toda prova –e do apego ao trabalho que distingue os habitantes do pobríssimo rincão, herdou um tesouro de bons hábitos, que son característicos da gente sã das aldeias portuguesas.

 

Sem dúvida, na educação da Alexandrina teve papel preponderante a irmã Deolinda que, pela sua maior idade, pelo seu temperamento, e pelo afecto terníssimo que lhe dedicava, teve sempre nas mãos o coração da irmãzinha.

 

Na base da humilde família da aldeia encontramos a prática duma sólida vida religiosa. Disto são prova eloquente as condições que a mãe impôs a um lavrador vizinho que pretendeu contratar, como criada, a Alexandrina, então só com 12 anos:

 

-Eu cedo-lhe a minha filha mas só com este contrato: mandá-la à Missa todos os domingos e à Confissão todos os meses; dar-lhe licença que venha a casa todas as tardes dos domingos, para que fique debaixo dos meus olhos, e possa ir às devoções da tarde e, finalmente, nunca deixar sair de noite, de modo nenhum.

 

O contrato, porém, acabou ainda não tinham passado cinco meses, porque o patrão, homem irascível, mostrou-se cruel com a pequena, exigindo-lhe um trabalho superior às suas forças e ainda porque, diante dela, falava uma limguagem desbocada.

 

“Uma vez –conta a Alexandrina- estive das 10 horas da noite às 4 horas da manhã, na Póvoa de Varzim, a tomar conta de quatro juntas de bois, porque o patrão e um seu amigo ausentaram-se de mim e eu, cheia de medo, lá passei aquelas horas tristíssimas da noite. Enquanto vigiava o gado, ia contemplando as estrelas que brilhavam muito e serviam de minhas companheiras... O patrão era um perfeito carrasco... Envergonhava-me sem causa, fosse diante de quem fosse, e eu sentia-me humilhada. Apesar de estar no princípio da minha mocidade, não sentia alegria com aquele triste viver.”

 

A religião na educação

 

As plantas tenras não se alimentam somente através das raízes. Recebem muito da atmosfera. Assim a criança. Do ambiente, isto é, daquilo que vê e sente, ela aprende e assimila tudo, fazendo de todas as coisas a sua norma de vida.

 

Na casa dos Costas estavam bem radicados o temor de Deus e a religiosidade. Estes não se manifestavam todavia numa espiritualidade que merecesse qualquer relevo especial, mas sim numa fidelidade escrupulosa às tradicionais práticas religiosas e numa robustez moral serena e convicta.

 

A interiorização da Alexandrina, muito semelhante à da Deolinda, encontra terreno propício e ressalta subitamente com manifestações singularmente esperançosas.

 

Recordará mais tarde que um dia, com quatro anos apenas, ficara a contemplar o céu, depois de ter perguntado aos seus como é que poderia chegar até lá acima.

 

Na sua fantasia intantil julgava que, trepando casa por casa, árvore por árvore, atando carrinhos de fio e de corda, lhe seria possível fazer a escalada do firmamento. Qual não foi a sua tristeza ao ouvir que seria inútil a sua tentativa, pois a distância não seria vencida! E comentou: “Não sei o que me atraía para lá!” Naquele tempo vivia em sua casa uma tia que, sofrendo de um crancro, muitas vezes lhe pedia para rezar com ela a pedir a cura. Isto agradava muito à Alexandrina, que usou depois sempre a oração como escada para subir àquele Céu por que sua alma suspirava.

 

Por volta dos cinco anos, a mãe matriculou-a nas aulas de catecismo da paróquia. A menina não mais esquecerá quanto gostava de cantar os louvores de Nossa Senhora, conservando sempre na memória as palavras do primeiro hino que lhe foi ensinado, e quanto se entusiasmava em levar flores para Lhe ornar o altar.

 

A propósito da sua Primeira Comunhão, recebida aos sete anos, escreveu:

 

“Foi o Sr. Padre Álvaro Matos quem me perguntou a doutrina, me confessou e me deu pela primeira a Sagrada Comunhão... Quando comunguei, estava de joelhos, apesar de pequenina, e fitei a Sagrada Hóstia, que ia receber, de tal maneira que me ficou tão gravada na alma, parecendo-me unir a jesus, para nunca mais me separar d’Ele. Parece que me prendeu o coração. A alegria que eu sentia, era inexplicável... A encarregada da minha educação levava-me a comungar diariamente.

 

...No momento em que fui crismada, não sei o que senti em mim; pareceu-me ser uma graça sobrenatural, que me transformou e me uniu cada vez mais a Nosso Senhor... À medida que ia crecendo, ia aumentando em mim o desejo da oração. Tudo queria aprender. Ainda conservo as devoções que aprendi na minha infância, como: Lembrai-vos, ó piíssima Virgen Maria..., Ó Senhora minha, ó minha Mãe..., o oferecimento das obras do dia: Ofereço-vos, ó meu Deus..., a oração do Anjo da Guarda, oração a S. José e várias jaculatórias... Gostava muito de ir à igreja, e chegava-me para junto da minha catequista e rezava tudo quanto ela queria. Não deixava dia nenhum de rezar a estação ao Santíssimo meditada, quer fosse na igreja, quer em casa ou até pelos caminhos, fazendo sempre a Comunhão espiritual.”

 

Aos doze anos, nomearam-na catequista da paróquia e colocaram-na no coro das raparigas.

 

Estas, e só estas, as directrizes simples da sua vida religiosa. A mãe não podia darlhe mais, porque era analfabeta; a irmã também não, porque tinha pouquíssima instrução e era obrigada a ajudar a mãe a ganhar o escasso pão para a casa.

 

Leituras especiais não as fez, além, de qualquer folheto de meditações populares e de poucos opúsculos sobre a vida de alguma santa. A pregação –aquela que é tradicional fazer-se nas paróquias da província- era ainda o alimento mais substancia, a que ainda hoje não deixam de acorrer as boas pessoas do campo, nas aldeias sãs.

 

A este propósito, a Alexandrina conta um episódio gracioso, sucedido quando, aos nove anos, fez a sua primeira confissão geral com Frei Manuel das Chagas:

 

“Fui eu, a Deolinda e a minha prima Olívia a Gondifelos, onde Sua Rev.a se encontrava, e lá nos confessámos todas três. Levámos merenda e ficámos para de tarde, à espera do sermão. Esperámos algumas horas, e recordo-me que não saímos da igreja para brincar. Tomámos o nosso lugar junto do altar do Sagrado Coração de Jesus, e eu pus os meus sòquinhos dentro das grades do altar. A pregação desta tarde foi sobre o inferno. Escutei com muita atenção todas as palavras de Sua Rev.a mas, a certa altura, ele convidou-nos a ir ao inferno em espírito. Como não compreendesse o sentido das suas palavras, e ouvia dizer que o Sr. Frei Manuel era santo, julgava que íamos todos ao inferno ver o que por lá ia. Para mim mesma disse: Ao inferno é que eu não vou. Quando todos se dirigem para lá, eu vou embora. E tratei de pegar nos sòquinhos. Como não vi ninguém sair, fiquei também, não largando mais os sòquinhos.”

 

 

A religião como temor de Deus

 

A religiosidade é sincera e sólida quando se torna para o cristão norma de vida. Assim na casa dos Costas.

 

A primeira lei desta divina sabedoria é a fuga prudente e pronta do pecado, o único inimigo de Deus.

 

“Uma ocasião (conta a Alexandrina, de quando estava na Póvoa de Varzim) a minha irmã pediu-lhe licença (à senhora, em cuja casa estavam hospedadas) para ir estudar à casa duma colega, que morava perto de nós, e eu também queria ir. Como ela não me deixasse, chorei e, por fim, chamei-lhe <poveira>; estaba zangada. Não me castigou, mas dise-me que não podia confessar-me, sem lhe pedir perdão. Minha irmã disse-me o mesmo. Isto fez-me muita repugnância, e como quisesse confessar-me e comungar, venci o meu orgulho. Pus-me de joelhos e, de maõs erguidas, pedi-lhe perdão. Ela comoveu-se até às lágrimas, e perdoou-me. Senti uma grande alegria por já poder, no dia seguinte, confessar-me e receber a Jesus”.

 

Um índice seguro da religiosidade duma alma é o respeito por aqueles que têm a missão de pregar e manter vivo o sentido de Deus entre os homens: os sacerdotes do Senhor. A Alexandrina sentiu por eles, sempre, respeito e veneração. Assim escreve nas suas memórias:

 

“Lembro-me que tinha muito respeito pelos sacerdotes. Quando estava sentada à porta da rua (isto na Póvoa de Varzim) só ou com minha irmã e primas, levantava-me sempre à sua passagem, e eles correspondiam, tirando o chapéu, se era de longe, ou dando-me a bênção, se passavam junto de mim.

 

Observei algumas vezes que várias pessoas reparavam nisto, e eu gostava, e até chegava a sentar-me, propositadamente, para ter ocasião de me levantar, no momento em que passavam por mim, só para ter o gosto de mostrar a minha dedicação e respeito pelos ministros do Senhor”.

 

Estas sólidas convicções, próprias dum espírito iluminado, tornaram-se naturalmente muito fecundas, orientando para o bem toda a vida da Alexandrina. De facto, podia afirmar: “Indignava-me se me acontecia estar presente a alguma cena pouco decente. No trabalho, eu ameaçava sempre que me ia embora, se não houvesse correcção nas palavras e nas atitudes. Mas conversas nunca as consentia nem sequer aos outros. Um dia, lembro-me de ter sentido muita vergonha e humilhação por precisar de confessar que tinha escapado a palavra “diabo”.

 

 

A religião como caridade

 

“Quem diz amar a Deus e não ama o próximo, é mentiroso”. Eis a grande exigência do Evangelho. Foi a lição que os santos preferiram e se impuseram como ideal. As famílias verdadeiramente cristãs reconhecem todo o seu peso.

 

A Alexandrina aprendera-o não tanto das palavras como dos exemplos do seu lar. Neste, a caridade floresceu do modo mais rutilante.

 

Não há obra de misericórdia espiritual e corporal que não tenha praticado. Na sua morte, a dor de toda a aldeia em luto traduzia-se nestas expressões: “Morreu a mãe de Balasar! Morreu a mãe dos pobres!”

 

Poucos traços da sua autobiografia bastam para revelar o seu coração, o bom coração que ela tinha, embora a um observador superficial ele pudesse ficar escondido pela sua vivacidade exuberante e pela série de brincadeiras que todos os dias desencadeava.

 

“Não quero pensar quanto sofri –diz ela- com a separação da minha família, (quando com a Deolinda fora mandada para a Póvoa de Varzim para frequentar a escola). Chorei muito e durante muito tempo. Distraíam-me, acariavam-me, faziam-me todas as vontades e, depois de algum tempo, resignei-me”.

 

A família!... Eis o mundo dos pequeninos que também o foi para a Alexandrina. Foi-o durante toda a vida, mas com esta característica: àquela humilde casinha milhares de pessoas acorriam para se temperarem nas chamas là acesas pelo grande coração daquela menina excepcional.

 

O início desde poema de caridade encontramo-lo nas primeiras páaginas das suas lembraças, das quais respigamos breves acenos:

 

“Lembro-me de que, nesta idade (4 anos), tinha em casa uma tia doente, que morreu de um cancro e me chamava para ir embalar um filhinho, primeiro fruto do seu matrimónio, serviço que eu fazia com toda a prontidão, quer de dia quer de noite”. Na Póvoa de Varzim, afeiçoou-se muito à dona da pensão. A este propósito, escreve: “Era muito dedicada à mulherzinha e, quando me davam qualquer coisa boa, como frutas, doces, etc.; repartia com ela, que ficava toda satisfeita. Eu procedia assim, porque o meu coração assim o queria, apesar de ser muito má”. Também este pormenor é eloquente. Revela que a Alexandrina, reconhecendo embora os seus defeitos, tinha porém um coração de oiro e, sobretudo, sabia exprimir uma imperativa e justa deferência para com quem tinha autoridade sobre ela, calando todo o instinto de paixão para fazer triunfar sempre a bondade. Também aos velhos e aos doentes ela amava muito! Quando sabia que alguém tinha precisão de roupas contra o frio, ou de outras coisas, corria logo a pedi-lo à mãe, que, não podendo fazer mais, emprestava o necessário. Alexandrina voltava contente para junto dos pobrezinhos, permanecendo muitas vezes junto deles para os consolar com a sua companhia.

 

“Algumas vezes, chorava com pena deles e por não lhes poder valer em todas as suas necessidades. A minha maior satisfação era dar-lhes daquilo que tinha para comer, privando-me assim do meu alimento. Quantas vezes fiz isto!...

 

Apesar de muito criança ainda, dei muitas vezes bons conselhos a pessoas de bastante idade, evitando que praticassem até crimes horrendos, e guardava absoluto segredo... Presenciei e soube de vários casos que, por caridade, não contei. Quanto me julgo reconhecida a Nosso Senhor por ter procedido assim: era a Sua graça e não a minha virtude”.

 

Se é tão bela a descrição desta florescência de caridade, a conclusão com que a Alexandrina a encerra é duma tal delicadeza, que só a sabedoria cristã a pode inspirar.

 

Narra ainda que, quando tinha catorze anos, chegou-lhe um dia a notícia de que o pai de uma sua amiga estava a morrer. Correu imediatamente e encontrou-o envolvido em um monte de farrapos. Voltou logo à mãe, que lhe entregou toda a roupa para uma cama, por empréstito, bem entendido. O moribundo viveu ainda doze dias, e a Alexandrina ficou lá até ao fim, a fazer companhia às filhas angustiadas pela desgraça.

 

Uma outra vez, -é ainda a Alexandrina quem conta- uma vizinha informara que uma velhinha estava no leito moribunda. A Deolinda pegou no livro das orações e na água benta e salu. Foram com ela as duas alunas da costura. A Alexandrina seguiu-as. À porta, encontrou uma neta da doente, que não tinha coragem de assistir, embora fosse sua avó. A Deolinda começou a ler as orações da agonia. A Alexandrina, que estava ao lado, percebeu, pelas franjas do xaile, que a irmã tremia como uma folha. Quando acabou de ler, apareceu a filha da moribunda, mas a velhinha exalou o último suspiro sem a tornar a reconhecer.

 

A Deolinda, despindo-se  a toda pressa, disse: -Fiz o que pude, não tive coragem para mais.

 

Ao ver a filha naquela angústia extrema, a Alexandrina não teve coração para a deixar só. Resolveu, sem mais, ficar e ajudou-a a lavar e vestir o cadáver, que estava coberto de chagas. Que cheiro sentiu quando a levantou para vestir. Teve a sensação de que caía desmaiada. Não disse nada; mas uma pessoa deu por ela e foi buscar um ramo de alecrim para que o cheirasse. Agradeceu reconhecida sem suspender o seu trabalho. E saiu, somente depos que a defunta ficou composta na sua câmara ardente.

 

Episódios como estes conhecem-se às dezenas: somente a sabedoria do povo soube definir o coração da sua protagonista, quando lhe chamou “Mãe de Balasar, Mãe dos doentes e dos pobres”.

 

 

A religião como luta

 

O pecado condenou-nos à luta penosa pela vida: é o trabalho. Lançou a desordem na própria naturaleza do homem, pelo que se impõe o dever de combater, para submeter todo o instinto desregrado: é a virtude.

 

Luta pela existência do corpo, luta pela vida da alma. Desde a educação famíliar, a Alexandrina foi treinada neste duplo combate.

 

De família pobre, mas de exuberantes energias físicas, cedo abraçou o trabalho. Habituada aos serviços domésticos desde pequena, bem depressa foi também obrigada aos duros trabalhos do campo. Aos treze ou catorze anos, trabalhava na agricultura tão bem que recebia o mesmo salário que a mãe.

 

Tinha força para dar e vender. Erguia do chão um saco de cereal como um homem. A mesma energia se manifestou bem cedo na sua vontade e a usou na defesa da virtude e da correcção dos seus defeitos.

 

Ainda jovenzinha, só com 13 anos, deu um solene bofetão a um homem casado que lhe queria dirigir uma expressão inconveniente; volteu as costas bruscamente a um jovem rico, que a esperava em um lugar solitário para falar-lhe de namoro.

 

Não se sentindo inclinada ao casamento, desatou numa franca gargalhada diante do Pároco, que lhe propunha um jovem de óptima família.

 

A si mesma tinha posto o problema da vocação ao matrimónio e tinha-o considerado na sua luz brilhantíssima: “... Se um dia tivesse de me casar, oh, como meu desejaria educar bem os meus filhos!... Mas sentia que outro era o caminho pelo qual Deus a chamava.

 

E por Deus deixava tudo: sem choros nem fraquezas.

 

 

NOTAS

 

(1) As duas irmãs foram colocadas em casa do carpinteiro Pedro Teixeira Novo, na rau Junqueira. Frequentaram a escola “Mónica Cardia”, e foi sua professora a Sr.a D. Emilia Rosa de Freitas Álvares, que habitava na dua de Almirante Reis.