Cap2

 

Descem anjos do Céu

 

 

Uma queda...

 

Os problemas do espírito nascem com a vida de todo o homem, enfretam-se com o auxílio insubstituível dos educadores –pais, sacerdotes e professores- e decidem-se especialmente na adolescência. A sua boa solução depende sobretudo da vitória sobre a carne: da pureza amada, defendida e robustecida pelas batalhas que se desencadeiam durante toda a vida, até à morte.

 

São para as almas puras as atitudes celeste, a alegria perpétua; para as almas manchadas a lama com a sua tristeza.

 

A mãe da Alexandrina tinha dito e repetido à filha que ela morreria de desastre. A previsão não era difícil; qualquer um a faria àquele vivíssimo azougue.

 

Aos treze anos, encarrapitada sobre um carvalho a apanhar folhas para os animais, cai pesadamente no solo, ficando por algum tempo imóvel; quando pôde mover-se, pôs-se de pé e retomou o trabalho como se nada tivesse acontecido.

 

A Alexandrina pouco antes um sonho estranho.

 

Viu-se ao pé duma escada altíssima, que levava ao Céu, mas com degraus tão estreitos que a custo se podia colocar a ponta do pé. Devia subi-la. Mas essa subida foi muito longa e difícil, tanto mais que nada havia a que pudesse apoiar-se. Aos lados da escada, durante o percurso, a jovenzinha via algumas almas que a confortavam, sem lhe poderem falar.

 

No cimo da escada, deparou-se-lhe um trono, sobre o qual se sentava o Senhor, tendo al lado a Santíssima Virgem e um céu povoado de santos. Depois de haver contemplado tudo, contra o seu desejo de regressar à terra. Desceu com facilidade, e quando chegou abaixo, tudo desapareceu. Depois do sonho, acordou.

 

Alguns meses após a queda, a Alexandrina começou a sentir fadiga no trabalho do campo; a sua saúde estava seriamente ameaçada.

 

 

... e um salto

 

A casa dos Costas está situada num flanco da aldeia, sobre o dorso duma colina chamada Calvário. É uma casinha de um só andar, sobre um rés-do-chão onde fica a adega, o armazém da lenha e o estábulo. Em volta da casa, um pequeno quintal, com vinha às latadas, uma hortazinha e pequenos canteiros; tudo cercado por alto muro, de modo que ali se vive isolado, tendo apenas o portão de entrada que dá passagem para a via pública, e só à distância de cem metros se encontram várias casas.

 

Das janelas dos três quartos situados ao norte, domina-se uma parte da povoação, disposta ao abrigo duma outra colinazinha, e entrevê-se o alto da torre da igreja.

 

Na sala da casa, onde já há anos se guardam vasos de plantas para dorno dos altares da igreja, Deolinda naquele tempo trabalhava de costureira, ajudada por algumas aprendizes.

 

A Alexandrina, ainda convalescente duma febre intestinal, passava as horas na sua companhia, ajudando-a no que podia, para enganar o tempo. Foi nessa altura que sucedeu o facto assim narrado no diário:

 

“Uma ocasião, estando eu, minha irmã e uma pequena mais velha do que nós, a trabalhar na costura, avistámos três homens: o que tinha sido meu patrão, outro casado, e um terceiro solteiro. Minha irmã, percebendo alguma coisa e vendo-os seguir o nosso caminho, mandou-me fechar a porta da sala. Instantes depois, sentimos que eles subiam as escadas que davam para a sala e bateram à porta. Falou-lhes minha irmã- o que tinha sido meu patrão mandou abrir a porta, mas como não tivesse lá obra, não lhe abrimos a porta. O meu antigo patrão conhecia bem a casa, e subiu por umas escadas pelo interior da habitação, e os outros ficaram à porta onde tinham batido.

 

Ele, não podendo entrar pelo interior, por um alcapão que estava fechado e resguardado por uma máquina de costura, pegou mun maço e deu fortes pancadas nas tábuas até rebentar o alçapão, tentando passar por aí. Minha irmã, ao ver isto, abriu a porta da sala para fugir e conseguiu escapar-se, apesar de a prenderem pela roupa. A outra pequena foi a segunda a fugir, mas essa ficou presa. E eu, ao ver tudo esto, saltei pela janela que estava aberta e que deitava para o quintal. Sofri um grande abalo, porque a janela distava do chão quatro metros. Quis levantar-me logo, mas não pude porque me deu uma forte dor na barriga. Com o salto caiu-me um anel, que usava, sem dar por ela.

 

Cheia de coragem, peguei num pau e entrei pela porta do quintal para o eirado, onde estava a minha irmã a discutir com os dois casados. A outra pequena estava na sala com o solteiro. Eu aproximei-me deles e chamei-lhes “cães” e disse que ou deixavam vir a pequena ou então gritava contra eles. Aceitaram a proposta e deixaram-na sair. Foi nesta altura que dei pela falta do anel e disse-lhes de novo: -Seus cães, por vossa causa perdi o meu anel. Um deles, que trazia os dedos cheios de anéis, disse-me: -Escolhe daqui um. Mas eu, toda zangada, respondi: -No quero! Não lhes demos mais confiança. Eles retiraram-se e nós continuámos a trabalhar. De tudo isto não contámos a ninguém, mas minha mãe veio a saber tudo. Pouco  depois, comecei a sofrer mais, e toda a gente dizia que foi o salto que dei. Os médicos também afirmaram que muito concorreria para a minha doença”.

 

Nas memórias de Alexandrina, encontramos este apontamento que diz respeito ainda a um dos três homens. O acontecimento deu-se quando a jovem esstava já cravada ao leito de martírio.

 

Não bastara a enérgica repulsa da nossa heroína para extinguir num deles aquela paixão cega. Guiado talvez também por sentimentos de vingaça, tornou ao assalto, depois de haver estudado bem as circunstâncias favoráveis para o seu diaabólico intento. A Alexandrina escreve:

 

“Como gostava de ficar sozinha e principalmente aos domingos, quando havia adoração ao SS. Sacramento, dizia a todos os meus que fossem e que me deixassem a sós com Jesus. Pouco depois de todos saírem, pus-me a orar e ouvi alguém abrir a porta da rua, subir as escadinhas, mas já falando muito alto. Dizia: -Abre-me a porta. Pela voz conheci a pesssoa. Fiquei muito assustada. Ai, que seria de mim, se ela conseguisse entrar! Apertei nas minha mãos o meu tercinho, com toda a confiança, enquanto a pessoa continuava a empurrar a porta com toda a força. Apesar de não estar fechada à chave não lhe foi possível abri-la. Pensava na forma como havia de falar e, assustada, nem sequer podia respirar. Como não conseguiu abrir a porta, retirou-se deixando-me em paz. Fiquei tão cheia de medo, que não mais tornei a ficar sozinha, a não ser que me fechassem à chave. Atribuí esta graça a Jesus e à Mãezinha, que me livraram daquela má companhia...”

 

compreendemos bem com quanta verdade a Alexandrina nos falou quando, em 1944, a uma nossa interrogação, respondeu prontamente que a virtude que ela mais amava era a pureza.

 

 

“Não errando, mas obedecendo”

 

Antes de prosseguirmos a narração desta vida admirável, é necessário fazer uma pequena paragem, para colher o sentido profundo desde gesto supremo, com que a Alexandrina põe em perigo a sua vida.

 

Parece necessária esta reflexão preliminar, porque, em nossa modesta opinião, do bater de asas da menina azougada se inicia um místico voo de anjo, e é necessário perceber bem aquele gesto, se queremos tirar o sentido harmonioso desta vida.

 

Dianto do perigo da violação, temos a atitude de Luzia, que declara tranquilamente ao seu algoz que qualquer violação externa mais não faria do que redobrar-lhe a coroa das Virgens. Eis por que o Doutor Angélico diz com ela que o corpo não é manchado senão com o consentimento do espírito (II-II, q. 64, 5 ad 3).

 

E pela própria história humana, ainda que embelezada pela poesia da imaginação popular, sabemos que Lucrécia, não podendo suportar esta desonra, preferiu tirar-se a vida, pelo que pareceu que a honra duma senhora devesse prevalecer justificando até o suicídio. Mas o Doutor Angélico abertamente declara que “isto não é lícito, não devendo cometer contra si o crime máximo, que é matar-se a si mesmo, para evitar o delito menor cometido por outros”.

 

Porém, na história dos mártires cristãos encontram-se episódios, -como o de Apolónia, que se lança no fogo, e de Pelágia que, aos 15 anos, se atira de uma janela para fugir aos soldados, -dos quais parece legítimo e justificado o suicídio, tanto mais que a Igreja não só as considera verdadeiras mártires, mas as chama “Santas” Virgens:

 

Santo Agostinho, na Cidade de Deus (livro I, cap. 26) não ousa pronunciar-se e mantém-se pensativo diante de tais factos, que, de quando em quando, se repetem na história.

 

Ele nota que o poderão ter feito por inspiração divina. E por isso, “Não errando, mas obedeciendo” àquele impulso interior do Divino Espírito Santo, que assim as arrancava à sedução do mal.

 

Ele olha com reverente piedade para o inteligente sentido materno da Igreja: “é possível que a autoridade divina tenha persuadido a Igreja, com atestações dignas de fé, a honrar a memória destas santas”.

 

O Doutor Angélico faz seu o pensamento do Bispo de Hipona, que pergunta a si mesmo “se o martírio seja acto de virtude” e a história lhe põe diante dos olhos episódios que tais não parecem (II-II, q. 124. A. Ad 2).

 

Não pretendo antecipar-me ao juízo autorizado da Igreja e desde já o acolho com fé reverente. O modesto fim desta narração, à medida que se vai apresentando a vida da Alexandrina, é assinalar a sua gradual elevação e traçar, embora com mão incerta, a mística trajectória desde voo de anjo.

 

Parece-nos que este acontecimento inicial adquire o seu verdadeiro sentido e o seu pleno valor somente da luz ardente do coração afogueado da Alexandrina.

 

Se Jesús, seu Dilecto, é imolado sobre o “monte da mirra” no supremo Sacrifício do Calvário, e ao mesmo tempo é Ele que sobre a “colina do incenso”, como Sacerdote Eterno, consuma a obra da nossa reconciliação com Deus; a Alexandrina sobre o seu leito de dor, no “Calvário”, reflecte estes dois aspectos com a mirra da penitência e o incenso da oração.

 

O que se dirá, através desta narração, seá o harmonioso entrecho deste grande mistério de caridade com a cruz redentora de Jesus, que transfigura toda a dor no supremo testemunho de amor para com Ele.

 

Conheci pessoalmente o homem que quis fazer mal à Alexandrina numa altura em que, certamente, sobre o seu coração pairava grande tempestade, encontrando-se num período crítico da vida. A Alexandrina tornou-se sua benfeitora com generosos socorros a toda a família dele, e posso testemunhar como este homem nunca entrava naquele quarto de dor sem profunda comoção. Um dia, com as lágrimas nos olhos, disse-me: “É uma santa. E está nesta cama por minha culpa!”.

 

Podemos agora retomar o fio da nossa narração, e admirar a obra da graça naquela jovem, que, embora despedaçada no seu corpo, no seu espírito tem a fortaleza da caridade para com todos.

 

 

Paralisada para sempre

 

Aos dezanove anos, a Alexandrina recolhe ao leito para sempre.

 

Um médico do Porto, o Dr. João de Almeida, tinha-o predito à mãe, Maria Ana.

 

Desde então, Deolinda torna-se a sua enfermeira e secretária, enquanto a mãe continua a trabalhar fora de casa, para ganhar o pão de cada dia.

 

“Tive momentos de desânimo, mas nem sequer um de desespero” –deixou a Alexandrina escrito. Nada a prendia ao mundo. Tinha saudades só das suas flores e da sua igreja. Quando ali havia ensaios de canto, as duas irmãs ficavam tristes: uma porque tinha de deixar a sua enferma, a outra porque não podia ir. Mas a Alexandrina resignou-se bem depressa com a vontade de Deus, e habituou-se ao seu leito, que se tornou a sua cruz amada.

 

No começo, procurou distrair-se e pediu distracções, convidando as amigas para jogar as cartas.

 

Fez também promessas a Deus para obter a cura: dar todas as suas jóias, vestir-se de luto por toda a vida, cortar o cabelo, o que, para uma senhora daqueles lugares e daqueles tempos, era um verdadero sacrifício.

 

A mãe, a irmã, as primas fizeram novenas e promessas pela saúde da Alexandrina, que por essa altura correu sério risco, a ponto de haver recebido mais de uma vez os últimos Sacramentos.

 

Da própria medicina, a que recorrera confiante, nehhum alívio mais recebeu, a não ser de alguns calmantes.

 

Mas o Senhor esperava-a e preparava-a para uma sublime imolação, que se transformou para a Alexandrina em vida e alegria profundas.

 

Relembrando as suas vãs tentativas de encontrar a felicidade em outras coisas, escreverá depois, e muitas vezes: “Compreendo hoje que teria feito melhor em permanecer unida a Jesus”, porque “A verdadeira vida, a verdadeira alegria é Ele”.

 

 

Vítima voluntária

 

Com a progressiva perda de forças, abandonou as inocentes distracções que procurava, para enganar o tempo;  sentiu aumentar a necessidade e o amor à oração, o desejo vivo de união com Jesus.

 

Ficava triste quando alguma visita a vinha distrair, e acusava-se, como de culpa, de nessas conversas com as criaturas se houvesse esquecido de Deus.

 

Depois começou a pedir o amor ao sofrimento.

 

O Senhor escutou esta súplica, de modo que a Alexandrina experimentava verdadeira alegria quando tinha dores para oferecer a Jesus, a fim de consolá-lo e salvar-lhe almas. Teve este dom em tal abundância que “hoje –escreve- não trocaria o sofrimento por tudo quanto há no mundo”.

 

Foi neste período que, “sem saber como”, se ofereceu a Deus como vítima pelos pecadores.

 

Em 1928, organizou-se uma peregrinação paroquial a Fátima, cuja fama já estava enchendo todo o Portugal: nasce na Alexandrina novo desejo de cura e vontade de partir com os peregrinos. O médico e o pároco opuseram-se absolutamente. Como poderia ela movimentar-se para uma tão longa viagem, se só o voltá-la ou tocar-lhe no seu pequeno leito lhe causava dores inenarráveis?

 

Teve que renunciar à peregrinação, pas esperou ainda arrancar a graça a Nossa Senhora milagrosa, de quem o pároco lhe trouxera de Fátima uma imagem.

 

Ainda se conserva essa imagem, com os sinais visíveis dos seus beijos, diante da qual fez novenas com preces es cánticos.

 

Prometeu-lhe que, uma vez curada, se faria missionária, e, levada pela fé no poder de Nossa Senhora, dizia aos vizinhos que a visitavam: “Se um dia ourvides cantar pela estrada, ficai todos a saber que soy eu a agradecer a Nossa Senhora a graça da saúde”.

 

Mas vendo que, depois de tantas orações, não obtinha o que intensamente pedia, pouco a pouco morreram neal os desejos de cura, e sentiu crescer a ânsia de amar a dor e de pensar só em Deus. Aquela que queria dar a sua vida a Deus nas Missões, embora paralisada no corpo, não ficou imóvel entre as quatro paredes dum quarto, mas correu depressa e bem longe a salvar as almas, com as suas dores indizíveis, causadas pela doença, por provas de vários géneros e pelas mortificações que se impunha.

 

 

O mês das rosas

 

Inscrita entre as Filhas de Maria em Outubro de 1934, alimentava, porém, já desde a infância, uma sentida devoção para com Nossa Senhora. O mês de Maria tinha para a Alexandrina uma importância e un encanto enormes. Dispunha-se para ele –como testemunhei- com uma preocupação, um transporte de fé e tanto amor, que impressionavam.

 

Aguardava-o como se aguarda um grande acontecimento: esperava tudo dele; passava-o como se não tivesse outro fim senão o de honrar a Mãe Celeste; fazia o seu encerramento com pena, como se tivesse acabado uma jornada feliz.

 

Lemos nas suas lembranças que, desde o princípio da sua imobilidade, gostava de o fazer sonzinha: meditava, rezava, chorava, suplicando a Nossa Senhora que a libertasse das angústias e das tribulações por que passava. Cantava o Tantum Ergo, como na igreja. Não tendo a graça de receber a bênção com o Santíssimo Sacramento, pedia a Jesus que lha mandasse do Céu e dos seus Sacrários.

 

Durante todo o mês de Maio, o pároco emprestava-lhe uma estatuazinha do Coração Imaculado de Maria, que voltava depois par a residência paroquial.

 

Começou a amealhar os tostões, privando-se de várias coisitas: algumas pessoas ajudaram-na e uma ofereceu-lhe duas frangas. Deolinda tratou delas até que deram os ovos suficientes para as despesas: uma imagenzinha da Virgem de Fátima, a redoma e uma mesinha em forma de pequenino altar. (1)

 

Durante todo o mês mariano, sobre aquele altarzinho, ao lado do seu leito, havia um verdadeiro jardim de flores, e, quando os recursos permitiam, juntava também velas. Mas esforçava-se sempre por ser ela mesma a flor mais bela de Maria, praticando a flor espiritual que desde o princípio tirava de uma caixinha.

 

Mais tarde, escrevia por sua mão as florinhas do mês: consistiam num propósito de oferecer todo o dia segundo intenções particulares: abraçava nelas todas as categorias de pessoas e as várias necessidades abrangidas, desde a sua paróquia até aos últimos confins da terra (2).

 

No fim do mês reunia os bilhetinhos, escrevia uma afectuosa cartinha a Nossa Senhora e depunha tudo aos pés da imagem. Depois, carta e florinhas iam acabar no fogo. Salvei do fogo algumas ainda, pouquíssimas, entre estas, uma de 1936, que aqui transcrevo integralmente:

 

“Mãezinha: eu venho humildemente aos Vossos santíssimos pés depor as flores espirituais que durante o mês colhi. Estou envergonhada e confundida. Que pobreza, em que estado Vo-las entrego! Estão tão murchas, tão desfolhadas! Mas Vós, ó querida Mãezinha celestial, podeis transformá-las. Reverdescei-as, abrilhantai-as e ide consolar e perfumar com elas a Jesus, por mim. Falai-Lhe das minhas penas e das minhas aflições. Bem sabeis tudo o que me faz estar atribulada. Fazei-Lhe comigo, de novo, todos os meus pedidos, e despachai Vós em nome de Jesus, Vo-lo peço, as pobres flores por quem foram oferecidas. Fazei, dum modo particular, que com todas elas eu faça um belo ramalhete para oferecer ao Santo Padre, neste dia do seu aniversário. Querida Mãezinha, neste último dia do Vosso mês bendito, como despedida, já que nada mais tenho para Vos dar, dou-Vos todo o meu corpo e Vos peço, por quem sois, que mo guardeis e me tomeis para sempre nos Vossos santíssimos braços, como Vossa filha muito querida. Abençoai-me, pedi a Jesus Sacramentado que me abençoe também e toda a SS. Trindade. Adeus, Mãezinha, perdoai-me tudo.”

 

O seu primeiro Director conservou-nos este acto de consagração que, desde 1935, a doente todos os meses de Maio fazia a Nossa Senhora.

 

“Mãe de Jesus e Mãe minha, ouvi a minha oração: eu Vos consagro o meu corpo e todo o meu coração. Purificai-mo, Mãe Santíssima, enchei-mo do vosso santo amor. Colocai-o mesmo Vós junto a Jesus, nos sacrários, para Lhe servir de lâmpada enquanto o mundo durar... Abençoai-me, santificai-me, ó minha querida Mãezinha do Céu.”

 

Esta devoção mariana, fundamenta-se na reza do Terço que em casa dos Costas era tradicional. À noite, depois de um dia cheio e fatigante, recolhiam-se junto do leito da doente, acendiam duas velas diante da pequenina imagem de Nossa Senhora, e rezavam-nos de joelhos, seguido das orações da noite.

 

Este afecto para com a Mãe do Céu acendia-se de um amor novo e manifestava-se todos os anos com delicadeza filial no dia da sua Natividade, enchendo-se, depois, de vivo reconhecimento no dia da Anunciação, em que a Virgem da aceitou a divina Maternidade que A tornou Mãe dos homens.

 

 

Lâmpada dos sacrários

 

Sem querer precipitar a narração dos acontecimentos, parece-me necessário, no entanto, salientar já como era bem orientada a espiritualidade da Alexandrina. Na base, como se viu, encontramos Nossa Senhora, invocada, amada, imitada.

 

Por Maria y com Maria vem Jesus às almas, necessariamente: Jesus alimento, Jesus modelo, Jesus Mestre no Sacramento do seu Amor.

 

Depois do recurso filial, mas sem o desejado efeito de cura, a Nossa Senhora de Fátima, a Alexandrina conta que um dia, encontrando-se sonzinha e lembrando-se de Jesus Sacramentado, disse_lhe assim:

 

“Meu bom Jesus, Vós preso e eu também. Estamos presos os dois, Vós preso para meu bem, e eu presa das vossas mãos. Sois Rei e Senhor de tudo e eu um verme da terra. Deixei-Vos ao abandono, só pensando neste mundo que é das almas a perdição. Agora, arrependida de todo o meu coração, quero o que Vós quiserdes e sofrer com resignação. Não me falteis, bom Jesus, com a Vossa protecção”.

 

Numas das visitas a Balasar em 1945, vindo-me às mãos um livro antigo, encadernado numa velha capa, sobre ela decifrei estas palavras, escritas pela Alexandrina (3).

 

“Em espírito aos Sacrários. Ó meu querido Jesus, queria-Vos ir visitar aos vossos Sacrários, mas não posso, porque a minha doença me obriga a estar retida  no meu querido leito de dor. Faça-se a Vossa vontade, Senhor; mas, ou menos, meu Jesus, permiti que nem um momento passe sem que eu vá sem espírito dizer-Vos pelos pecadores e pelas almas do Purgatório” (Maio de 1930).

 

Como Jesus vem às almas por Maria, assim as almas, que entendem bem o Cristianismo, esforçam-se por ir por Maria a Jesus. É o caminho mais seguro e mais eficaz. A Alexandrina compreendeu-o por aquela graça que o Espírito Santo dá àqueles que Lhe são fiéis. De facto, encontrei escrito numa folha:

 

“Ó Suave Melodia (Maria Santíssima), conforto dos pecadores, levai a minha alma a Jesus pelas vossas dores.

 

Ó Virgem bendita, sede graça, sede cura, sede minha Mãe e Mãe de Jesus. Ó minha amada Mãe do Céu, vinde apresentar ao Vosso e meu Jesus nos Seus Sacrários, as minhas orações e tornai mais eficazes os meus pedidos.

 

Ó Refúgio dos pecadores, dizei a Jesus que quero ser santa.”

 

No Norte de Portugal floresce a associação religiosa “Maria dos Sacrários” a que corresponde, na Itália, a das “Lâmpadas Vivas”. Às duas associações, portuguesa e italiana, a Alexandrina deu, contente, o seu nome para ser, com as almas devotas espalhadas no mundo, a lâmpada, a sentinela, a reparadora de Jesus-Eucaristia.

 

Não resisto à  tentação de transcrever, em parte, a oração que rezava todas as manhãs e que ela mesma havia composto:

 

“Ó Jesus, cá está a Mãezinha; escutai-A; é Ela quem Vos vai falar por mim. Ó querida Mãezinha do Céu, ide dar beijinhos aos Sacrários, beijos sem conta, abraços sem conta, mimos sem conta, carícias sem conta, tudo para Jesus Sacramentado, tudo para a Santíssima Trindade, tudo para Vós! Multiplicai-os muito, e dai-os de um puro e santo amor, de um amor que não possa mais amar, cheios de umas santas saudades, por não poder ir eu beijar e abraçar a Jesus Sacramentado, a Santíssima Trindade, e a Vós, minha mãe querida...

 

Ó meu Jesus, eu quero que cada dor que sentir, cada palpitação do meu coração, cada vez que respirar, cada segundo das horas que passar, sejam

actos de amor para os vossos Sacrários.

 

Eu quero que cada movimento dos meus pés, das minhas mãos, dos meus lábios, da minha língua, cada vez que abrir os meus olhos ou os fechar, cada lágrima, cada sorriso, cada alegria, cada tristeza, cada atribulação, cada distracçào, contrariedades ou desgostos, sejam

actos de amor para os vossos Sacrários.

 

Eu quero que cada letra das orações que reze, ou oiça rezar, cada palavra que pronuncie ou oiça pronunciar, que leia ou oiça ler, que escreva ou veja escrever, que conte ou oiça contar, sejam

actos de amor para os vossos Sacrários.

 

Eu quero que cada beijinho que Vos der nas vossas santas imagens, ou da vossa e minha querida Mãezinha, nos vossos santos ou santas, sejam

actos de amor para os vossos Sacrários.

 

Ó Jesus, eu quero que cada gotinha de chuva que cai do céu para a terra, toda a água que o mundo encerra, oferecida às gotas, todas as areias do mar e tudo o que o mar contém, sejam

actos de amor para os vossos Sacrários.

 

Eu Vos ofereço as folhas das árvores, todos os frutos que elas possam ter, as florzinhas oferecidas pétala por pétala, todos os grãozinhos de sementes e cereais que possa haver no mundo, e tudo o que contêm os jardins, campos, prados e montes, ofereço tudo como

actos de amor para os vossos Sacrários.

 

Ó Jesus, eu ofereço as penas das avezinhas, o gorjeio das mesmas, os pêlos e as vozes de todos os animais, como actos de amor para os vossos Sacrários.

 

Ó Jesus, eu Vos ofereço o dia e a noite, o calor e o frio, o vento, a neve, a lua, o luar, o sol, a escuridão, as estrelas do firmamento, o meu dormir, o meu sonhar, como

actos de amor para os vossos Sacrários.

 

Ó Jesus, tudo o que o mundo encerra, todas as grandezas, riquezas, e tesouros do mundo, tudo quanto se passar em mim, tudo quanto tenho costume de oferecer-Vos, tudo quanto se possa imaginar, como

actos de amor para os vossos Sacrários.

 

Ó Jesus, aceitai o Céu, a terra, o mar, tudo, tudo quanto neles se encerra, como se esse tudo fosse meu e de tudo pudesse dispor e oferecer-Vos como

actos de amor para os vossos Sacrários.

 

Não se sabe  verdadeiramente que mais admirar no escrito desta jovem analfabeta, que não conhecia os salmos: se o ardor de uma alma contemplativa, se a riqueza e profundidade de pensamento ou a poética frescura da linguagem.

 

Sem dúvida, quanto escreveu revela de modo sensível a obra da Graça que abre a esta mártir da Pureza, e precisamente por isso, os caminhos sublimes da mais alta oração.

 

Ela, efectivamente, contou que, enquanto fazia estas ofertas, começou a sentir um calor abrasador, uma força inexplicável que a elevava acima da terra, enquanto qualquer coisa a comprimia interiormente, deixando-a exausta.

 

Não soube nunca explicar, assim me dizia, a causa daquele calor, em contraste com os dias de frio intenso daquele período invernoso.

 

Não se lembrava bem, mas parecia-lhe que fora numa dessas ocasiões que sentira como um forte convite do Senhor: SOFRER, AMAR, REPARAR!

 

Alvorecia o ano de 1931.

 

Três anos volvidos, en 1934, pelos lábios do próprio Jesus, será revelado à Alexandrina e a nós, o porquê da sua misteriosa atracção, pela Eucaristia, origem e fim daquele fogo que a consumia, o significado daquele poderoso convite à imolação, ao amor, à reparação.

 

É o programa de uma vida inteira e ultrapassará até os seus limites. Dir-lhe-á Jesus: “A missão que Eu te confiei são os meus Sacrãrios e os pecadores: e fui Eu a elevar-te a tão alto grau. Foi o meu Amor!” (20-12-1934)

 

 

Notas

 

(1) Em 1945, ao Padre Humberto, Salesiano, que a dirigia em substituição do seu primeiro Director, ausente havia três anos, disse ela, vendo-lhe no breviário uma imagem de N.a S.a Auxiliadora: “Que linda Mãezinha! Gosto tanto do título de Auxilio dos Cristãos!... O religioso, julgando dar-lhe gosto, ofereceu-lhe uma artística estátua em madeira e, assim, N.a S.a Auxiliadora tomou o lugar da outra estátua de gesso. Sem dificuldade, a Alexandrina a trocou pela sua, embora esta lhe recordasse “muitas coisas bastante queridas”.

 

(2) Conservamos a série das florinhas de vários anos. São um documento precioso do seu coração apostólico e caritativo, que sabia descobrir as necessidades da humanidade, pela qual oferecia os vários dias do mês que tão querido lhe era. Os pequenos bilhetinhos escondia-os cuidadosamente para depois rasgá-los. Com seu evidente sacrifício, pude apoderar-me de algumas séries.

 

(3) Convém frisar que a Alexandrina, em certos momentos, sentia uma forte necessidade de escrever, embora lhe fosse muito doloroso conservar a pena nas mãos. Mas nem sempre, por motivos económicos, tinha papel à disposição; então escrevia sobre o primeiro papel que encontrava ou até em folhas de limoeiro, que mandava apanhar da árvore que ficava perto da janela do corredor da entrada. Depois pedia para destruirem tudo. Sabendo isto, encarreguei a Deolinda de conservar cuidadosamente todos os escritos.