Fontes do conhecimento

1.

«[ ...] Crê-se habitualmente que a existência de erros de percepção mostra que os nossos sentidos são falíveis, mas seria mais exacto dizer que o nosso juízo é falível. Na realidade os nossos sentidos não nos enganam: somos induzidos (com base nas nossas percepções sensoriais) a emitir juízos que posteriormente verificamos serem falsos; se tivéssemos suspendido o juízo - se não tivéssemos tomado o burro por um cavalo - não teria havido erro. O erro vem sempre do juízo, não da sensação. Tudo o que os sentidos podem fazer é dar-nos experiências que, por vezes, classificamos erradamente. Também é interessante observar que, quando cometemos um erro de percepção por causa de experiências sensoriais incompletas ou fragmentárias, são sempre as experiências sensoriais posteriores que nos levam a descobrir o erro. [ ...] Assim, o facto de existirem erros baseados em experiências sensoriais não mostra que temos de recorrer a algo que esteja para além da experiência sensorial; só mostra que necessitamos de mais experiência sensorial, e que se tivéssemos aguardado por ela não teríamos emitido o juízo errado.

Antes de poder ser considerada conhecimento, toda a experiência sensorial requer o juízo. As experiências sensoriais que se têm num certo momento não constituem conhecimento; primeiro tem que se julgar [ efectuar um juízo] que isto é uma cadeira, que isto é um livro, e assim sucessivamente. E é a proposição que é considerada verdadeira ou falsa; a experiência sensorial em si mesma não é verdadeira nem falsa: tem-se ou não se tem. Fornece a base para um juízo de percepção, mas por si mesma não é suficiente para constituir tal juízo. O papel do juízo na percepção passa facilmente depercebido porque em muitos casos só usamos conceitos como "cadeira" e "árvore", tão familiares que parece, quando efectuamos o juízo, que estamos somente a receber uma informação da experiência sensorial sem incorporar nenhum conceito. Mas pode-se mostrar facilmente que isto é falso quando temos casos um pouco mais complexos: "Oiço um Lincoln Continental que vem pela colina", pode alguém dizer; e outra pessoa com a mesma (ou muito semelhante) experiência acústica pode não a reconhecer como o som de um Lincoln Continental: não interpreta a sua experiência auditiva como experiência de um Lincoln Continental. Assim, para emitirmos juízos de percepção, não só temos de ser capazes de percepcionar, mas também de saber o significado das palavras e como aplicá-las ao que percepcionamos.

Até agora temos estado a falar só dos chamados "sentidos externos", aqueles através dos quais obtemos informação do mundo exterior. Mas também existem os "sentidos internos", que nos colocam em relação com os nossos estados internos (sentimentos, atitudes, disposições, dores e prazeres), assim como com as nossas próprias operações mentais como pensar, crer, perguntar. Nestes casos não possuímos órgãos dos sentidos; no entanto, estamos capacitados para enunciar certas proposições. Mas as únicas proposições que estamos capacitados para emitir são aquelas que versam sobre os nossos próprios estados internos: por exemplo, tenho uma dor de dentes, tenho sono, sinto-me doente esta manhã, estou a pensar nas férias do próximo verão, etc. Em todos estes casos, o facto de estarmos a sofrer a experiência em questão é a única garantia que possuímos ou necessitamos da verdade da proposição. Se tiver uma dor de cabeça, isso é tudo o que preciso para tornar verdadeira a proposição "tenho uma dor de cabeça". A proposição "tenho uma dor de cabeça" não versa sobre nada mais que a minha experiência actual, de modo que possuir a experiência é suficiente para tornar a proposição verdadeira. [ ...] »

 

2.

«[ ...] Mas a experiência dos sentidos não é a nossa única fonte de conhecimento. Se alguém nos perguntar "como sabe que 74 mais 89 é igual a 163?", não responderemos "olhei e vi", mas sim "fiz a conta". Recorremos ao cálculo, não à visão, à audição ou ao tacto. Chegámos à resposta por meio de raciocínio. O raciocínio é uma fonte de conhecimento, embora [ ...] "raciocínio" não seja o único sentido do termo "razão".

Uma pessoa raciocina quando utiliza certos enunciados como base para produzir outro enunciado ou outros enunciados mais; ou, por outras palavras, quando utiliza um ou mais enunciados, chamados premissas de um argumento, para inferir outro enunciado, chamado conclusão do argumento. Assim, usamos os enunciados "tenho mil e duzentos escudos no bolso" como base para inferir o enunciado "tenho menos de dois contos no bolso".

[ ...] O tipo de raciocínio mais familiar, que com frequência se toma como modelo de todo o raciocínio, é o dedutivo. Num argumento dedutivo a conclusão deve seguir-se logicamente das premissas; ou, por outras palavras, se as premissas do argumento forem verdadeiras, a conclusão deverá ser verdadeira. [ ...] A conclusão [ ...] está contida nas premissas no sentido de que é deduzível das premissas.

[ ...] Mas nem todo o raciocínio é dedutivo. Também argumentamos indutivamente: podemos conhecer a verdade das premissas, mas não saber ainda que a conclusão é verdadeira; as premissas proporcionam elementos de juízo para a conclusão, mas não elementos de juízo completos. Ou, por outras palavras, mesmo que as premissas sejam verdadeiras, não tornam a conclusão certa, mas somente provável, em maior ou menor grau.

[ ...] O raciocínio indutivo não passa sempre de "um, dois, três..." para "todos". Por vezes a conclusão não é acerca de todas as coisas de certo tipo, mas acerca de uma só coisa, ou desta coisa. Podemos argumentar:

Foi encontrado sangue da Susana nas roupas da Isabel.

Viu-se a Isabel entrar na casa da Susana poucos minutos antes da morte desta.

Encontrou-se a Susana com uma ferida de navalha no coração.

Depois encontrou-se sangue da Susana na navalha da Isabel.

Uma hora depois viu-se a Isabel a tentar evitar a polícia. Etc.

Logo, a Isabel matou a Susana.

Esta conclusão tem uma certa probabilidade com base nos elementos de juízo apresentados nas premissas. Mas pode não ser verdadeira: os dados são circunstanciais e todas as pistas podem ter sido colocadas por outra pessoa. Mesmo que a Isabel confesse o crime, não podemos ter a certeza de que é culpada, pois pode ter feito uma confissão falsa. Habitualmente, os jurados têm de dar o seu veredicto baseando-se na probabilidade; só desejam que o grau de probabilidade seja o maior possível (em casos de crime, " para além de qualquer dúvida razoável"). Mas, no entanto, a probabilidade não é certeza, e é muito difícil encontrar a certeza nestas coisas. Podia-se formular a questão de forma diferente e dizer que uma certeza, mas a proposição que é certa não é a de que a Isabel matou a Susana, mas sim a de que é provável, com base nos indícios disponíveis, que a Isabel tenha matado a Susana. Sem dúvida que a probabilidade é preferível à ausência total de elementos de juízo, e em inumeráveis situações da vida diária ela é tudo o que temos.

Que é que faz com que as proposições das premissas tornem provável a conclusão? Se uma das premissas fosse "a Isabel vestia um fato negro", isso não contaria como elemento de juízo em nenhum sentido, a menos que a pessoa que saiu de casa da Susana depois do assassinato tivesse sido vista com um fato negro. No argumento indutivo apoiamo-nos em certas leis da natureza. [ ...] As leis da natureza formulam certas uniformidades recorrentes no decurso da nossa experiência.»

JOHN HOSPERS, Introducción al análisis filosófico (tradução minha a partir do castelhano)