Ética - introdução

«O que é a ética? A própria palavra é por vezes usada para referir o conjunto de regras, princípios ou modos de pensar que orientam, ou pretendem ter autoridade para orientar, as acções de um grupo particular; e por vezes designa o estudo sistemático do raciocínio sobre o modo como devemos agir. No primeiro destes sentidos, podemos questionar a ética sexual do povo das Ilhas Trobriand, ou falar do modo como a ética médica na Holanda acabou por aceitar a eutanásia voluntária. No segundo sentido, ‘ética’ é o nome de um campo de estudos, e muitas vezes de uma temática ensinada nos departamentos de filosofia das universidades. Normalmente, o contexto torna claro qual o sentido em que a palavra deve ser entendida [ ...] .

Alguns autores usam o termo ‘moral’ para o primeiro sentido, descritivo, em que eu uso o termo ‘ética’. Falam da moral dos ilhéus de Trobriand quando querem descrever o que esses ilhéus consideram correcto [ right] ou incorrecto [ wrong] . Reservam a expressão ‘ética’ (ou, por vezes, ‘filosofia moral’) para o campo de estudos ou temática ensinada nos departamentos de filosofia. Eu não adoptei este uso. Tanto ‘ética’ como ‘moral’ têm as suas raízes em palavras que significam ‘costumes’, sendo a primeira derivada do termo grego ‘ethos’ e a segunda do termo latino ‘mores’, uma palavra ainda usada por vezes para descrever os costumes de um povo. ‘Moral’ traz hoje consigo uma particular, e por vezes desapropriada, ressonância. Ela sugere um severo conjunto de deveres que requere que subordinemos os nossos desejos naturais - e os nossos desejos sexuais têm aqui um relevo particular - de maneira a obedecer à lei moral. O fracasso em cumprir o nosso dever traz consigo um pesado sentimento de culpa. Muitas vezes, a moral é considerada como tendo uma base religiosa. Estas conotações de ‘moral’ são mais características de uma concepção particular da ética, a que está ligada à tradição judaico-cristã, que uma característica inerente a qualquer sistema moral.

A ética não tem uma conexão necessária com qualquer religião em particular, nem com a religião em geral. [ ...] [ A] ética existe em todas as sociedades humanas, e talvez até entre os nossos parentes mais chegados não-humanos. Não temos necessidade de postular deuses que nos transmitem mandamentos, pois podemos considerar a ética como um fenómeno natural que surge no decurso da evolução de mamíferos de vida longa, sociais e inteligentes, que possuem a capacidade de se reconhecer entre si e de recordar o comportamento anterior dos outros. [ ...]

Se admitirmos que Darwin tinha razão quando afirmou que a ética humana se desenvolveu a partir dos instintos sociais que herdámos dos nossos antepassados não-humanos, podemos pôr de lado a hipótese de uma origem divina para a ética. Surgem então outras questões. Se virmos a ética como parte da nossa herança humana comum, então podemos esperar que haja universais éticos, princípios que, de alguma forma, estejam presentes em todas as sociedades humanas. Esta expectativa contrasta profundamente com a opinião predominante no séc. XIX e princípios do séc. XX, quando uma torrente de dados antropológicos provenientes de todo o mundo transmitiu a impressão dominante de uma interminável diversidade ética. Embora seja óbvio que sociedades distintas apresentam pontos de vista éticos diferentes em relação a muitos aspectos, é agora claro que, em alguns pontos importantes, quase todas as sociedades estão de acordo. Claro que isto não significa que devamos aceitar como correctos os pontos de vista éticos em que as sociedades estão de acordo. Até muito recentemente, um dos pontos em que virtualmente todas as sociedades estavam de acordo era que uma mulher casada deve obedecer ao seu marido; e, se recuarmos ainda mais no tempo, podemos encontrar muitos ‘universais éticos’ igualmente questionáveis. O facto de uma prática ser universal não faz com que essa prática seja correcta ou com que deva ser o mais possível desencorajada, ou até mesmo proibida. Mas, assim como a compreensão da origem da ética nos ajuda a perceber a natureza do fenómeno com que estamos a lidar, assim também a nossa compreensão é aumentada pelo conhecimento dos graus de diversidade e uniformidade dos sistemas éticos entre diferentes sociedades - e mesmo entre as sociedades humanas e as dos outros animais sociais, especialmente as dos que estão mais próximos de nós, os chimpanzés.

[ ...] Fomos sempre relutantes em reconhecer similaridades entre o nosso próprio comportamento e o dos animais não-humanos. Afirmávamos que éramos os únicos animais que usavam instrumentos até se descobrir que outros animais também os usam. Depois, fizémos uma afirmação semelhante acerca da linguagem, apenas para virmos a descobrir que os grandes símios podem aprender a comunicar connosco através de linguagem gestual. Mas, dir-se-á, seguramente que a ética, pelo menos, continua a ser um fenómeno puramente humano. Basta lembrarmo-nos da concepção kantiana do dever, baseada na nossa capacidade de seres racionais para compreender a lei moral. Em que será que a interacção existente num grupo de chimpanzés se assemelha a isso? Comparar o comportamento instintivo ou habitual dos chimpanzés com os conscienciosamente escolhidos padrões éticos dos seres humanos é, dir-se-á, degradar e insultar a nossa própria espécie.

Que há um imenso abismo entre o tipo de ética descrito por Kant [ 1724-1804] e aquele que é revelado pelo comportamento do chimpanzé intelectualmente mais dotado, isso é inegável; mas da existência desse abismo não se segue que não tenhamos nada a aprender acerca do nosso próprio comportamento observando o dos chimpanzés. As ideias de Kant são estranhas não só para os chimpanzés, como para a maior parte das comunidades humanas. Os sistemas filosóficos éticos são elaborações altamente sofisticadas de conceitos mais comuns que, por sua vez, evoluíram a partir do comportamento social pré-humano. Saber mais acerca das bases pré-humanas da ética será, seguramente, uma ajuda para compreender e ter acesso aos sistemas éticos que se desenvolveram a partir dessas bases; e as melhores pistas para sabermos mais ou menos como terá sido a ética pré-humana virão das observações daqueles animais com os quais partilhamos antepassados comuns relativamente próximos.

Kant e os seus seguidores poderão replicar a tudo isto que, uma vez que a lei moral é baseada na razão, quaisquer paralelismos aparentes entre a nossa ética e a dos animais não-humanos é uma coincidência meramente superficial. O comportamento dos animais tem tanto a ver com a ética quanto uma teia de aranha com uma obra de arte. Mas, neste ponto, a tradição filosófica começa a divergir. Kant representa apenas um dos lados no debate acerca do papel que a razão pode desempenhar na nossa vida prática e nas nossas decisões éticas. Se, por exemplo, aceitarmos a tese de David Hume [ 1711-1776] de que a base da ética deve ser encontrada nas nossas emoções ou, como ele lhes chama, paixões, então a razão torna-se muito menos significativa na ética, e os paralelismos entre a nossa ética e a dos animais não-humanos tornam-se, em correspondência, mais próximos. Deste modo, negar a possibilidade de uma ‘ética dos primatas’ por causa do papel desempenhado pela razão é assumir que é Kant, e não Hume, quem está correcto acerca deste ponto. Ora, esta pode muito bem ser uma suposição errada.

O debate entre Hume e Kant acerca do papel da razão na ética enquadra a temática [ ...] que nos leva ao coração da mais fundamental das questões que podem ser levantadas acerca da natureza da ética: saber se a ética é objectiva ou subjectiva. Têm sido usados diferentes termos para tratar esta questão, mas por detrás disso jaz sempre a divisão entre, por um lado, os que sustentam que, de algum modo, há uma resposta verdadeira, correcta ou mais justificada para a questão ‘O que devo fazer’, independentemente de quem faz a pergunta; e, por outro, os que sustentam que, se diferentes indivíduos ou diferentes sociedades estão em desacordo em relação a problemas éticos, então é porque não existe um padrão por meio do qual seja possível julgar uma resposta como sendo melhor do que outra.

Os filósofos nem sempre viram que este debate entre objectivistas éticos e subjectivistas éticos é, no fundo, uma questão acerca do papel que a razão desempenha na ética. A asserção kantiana de que a lei moral é uma lei da razão baseava-se na sua metafísica particular. Ele via a natureza humana como eternamente dividida. Por um lado, temos o nosso eu [ self] natural ou físico, enredado no mundo dos desejos. Por outro, temos o nosso eu intelectual ou espiritual, o qual participa do mundo da razão de que deriva a lei moral. Aqueles filósofos que querem defender a objectividade da ética, mas não aceitam o sistema filosófico de Kant, precisam de mostrar que pode haver outra maneira de conhecer o que é objectivamente correcto. Durante muito tempo, alguns defensores da objectividade ética argumentaram que os nossos juízos éticos derivavam de uma compreensão intelectual imediata de uma verdade evidente por si mesma. Deste modo, pensavam, podemos conhecer intuitivamente que uma acção é correcta, de uma forma parecida como sabemos, sem termos de pensar nisso, que um mais um é igual a dois. Por outro lado, os que argumentavam que a ética é subjectiva afirmavam - como Hume - que a ética se baseia no sentimento ou na emoção, e não em nada de objectivo ou presente algures [ out there] no universo.

Mas será que podemos conhecer alguma coisa através da intuição [ consciência imediata da verdade ou falsidade de uma dada proposição] ? Os defensores do intuicionismo ético argumentaram que havia aqui um paralelismo com o modo como conhecemos, ou podemos imediatamente compreender, as verdades básicas da matemática: por exemplo, a de que um mais um é igual a dois. Este argumento sofreu um grande abalo quando foi mostrado que a evidência [ self-evidence] das verdades básicas da matemática pode ser explicada de uma maneira diferente e mais parcimoniosa, vendo a matemática como um sistema de tautologias, cujos elementos básicos são verdadeiros em virtude do significado dos termos usados. Deste ponto de vista, agora largamente, se não mesmo universalmente, aceite, não se requer nenhuma intuição especial para estabelecer que um mais um é igual a dois - trata-se de uma verdade lógica, a qual é verdadeira em virtude do significado que atribuímos aos números inteiros ‘um’ e ‘dois’, assim como a ‘mais’ e ‘igual’.Assim, a ideia de que a intuição nos fornece algum tipo substantivo de conhecimento do que é certo e errado perde a sua única analogia.

Mas pode dar-se o caso de que a intuição ética, de um modo excepcional em relação a outras formas de intuição, seja uma fonte de conhecimento genuíno. No entanto, há outro e mais sério problema que se levanta à defesa da objectividade da ética por esta via. O problema reside no facto de que os juízos éticos são supostos levarem à acção. Porque se conhecer o que é correcto não implicar a tendência para nos motivar a fazer o que é correcto, então parece que a ética perde a sua razão de ser. A ética seria então um sistema de conduta, algo como hoje é a etiqueta para a maior parte das pessoas. Eu posso saber que não é delicado começar a comer antes de todos os outros convidados terem sido servidos, mas se não me importar com o que os outros consideram ser boas maneiras, e preferir a minha comida bem quentinha, então não tenho nenhuma razão para esperar. Os que defendem que os juízos éticos são um tipo especial de intuição não pretendem relegar a ética para o estatuto da etiqueta. Pretendem dizer que, se eu souber que alguma coisa é errada, tenho uma razão para não a fazer, quer me preocupe ou não com a ética. Sendo assim, têm de mostrar que o conhecimento obtido através da intuição nos dá uma razão que nos pode motivar a fazer o que vemos ser correcto.

Todavia, há algo de obscuro acerca de como pode, por si só, qualquer tipo de conhecimento motivar-nos necessariamente a agir. Claro que se alguém me disser que há um formigueiro no sítio onde estou prestes a sentar-me, isso habitualmente dá-me uma boa razão para escolher outro local para o meu piquenique. Podemos pressupor que nenhuma pessoa normal prefere ser mordida por formigas, e assim esta informação fornece a qualquer pessoa normal uma razão para agir; mas só funciona como uma razão porque é relevante para as nossas preferências. Se, depois de ter considerado cuidadosamente todas as consequências, decidir que, apesar de tudo, prefiro ser mordido a sentar-me noutro lugar, o conhecimento da localização das formigas deixa de ser uma razão para eu alterar os meus planos.

Kant referiu-se aos imperativos dependentes dos desejos dos indivíduos como sendo ‘imperativos hipotéticos’. ‘Se não quiseres ser mordido senta-te noutro sítio’ é um exemplo de um imperativo hipotético. A discussão entre Hume e Kant pode então ser enquadrada pela pergunta acerca de se todos os imperativos serão hipotéticos. Haverá alguns imperativos que sejam, como Kant os chamou, ‘categóricos’ - isto é, imperativos válidos para todos os seres racionais, independentemente dos seus desejos? Kant pensava que se a ética não é uma ilusão deve haver imperativos categóricos - pois não será verdade que a moralidade nos diz que devemos fazer o que está certo, independentemente dos nossos desejos? Para os intuicionistas conseguirem mostrar que obtemos conhecimento de verdades éticas objectivas através da intuição, têm de mostrar que esse conhecimento dá origem a imperativos categóricos. Eis porque a questão crucial entre os intuicionistas e os seus oponentes subjectivistas acaba por ser a mesma que entre Hume e Kant: haverá razões objectivas para a acção, independentes dos nossos desejos?

A este respeito, os dois séculos que passaram depois de Hume e Kant não resolveram a disputa entre estas duas posições básicas que eles estabeleceram. [ ...] No entanto, embora a disputa não tenha sido resolvida, entendemos agora os problemas melhor que anteriormente, e até há alguns sinais de convergência. Os objectivistas já não procuram estranhos factos morais conhecidos unicamente através da intuição, mas tentam antes estabelecer as razões para agir que aceitaríamos se raciocinássemos sob certas condições ideais - por exemplo, se estivéssemos completamente informados, não influenciados pelos nossos interesses, e pudéssemos imaginar como seria estar na posição de todos os outros que fossem afectados pela nossa acção. Os subjectivistas já raramente mantêm que a ética é inteiramente uma questão de sentimentos ou desejos; reconhecendo a necessidade de conceder um espaço para o desacordo e para a argumentação racional acerca da ética. Assim, embora continuem a defender o ponto de vista de que os nossos juízos éticos se baseiam nos nossos desejos, não defendem que qualquer desejo pode formar essa base. Pelo contrário, concedem que, para serem considerados éticos, os desejos devem passar por uma filtragem que exclua aqueles que não satisfaçam determinadas condições de imparcialidade e razoabilidade. Por conseguinte, o debate actual ganhou outra precisão, nomeadamente a respeito do tipo de limites que devemos estabelecer para os desejos que podem ser considerados éticos, e da possibilidade desses limites nos permitirem chegar - em princípio, se não na prática - a um acordo acerca do que devemos fazer.»

SINGER, Peter (ed.), Ethics, "Introduction", Oxford University Press, 1994, pp. 4-10 (tradução minha).