Luís Moutinho(*):
Renasceu
de novo.
Após
todo este tempo, provou de novo a felicidade.
Afinal
era verdade.
Deus
toma conta daqueles que ama.
Agora
acreditava.
Tinha
reencontrado o amor.
Encontrou-o
onde nunca pensara.
Com
que nunca pensara.
E
quando já tinha desistido.
31 e
sem ilusões.
Olhou
para o que a sua vida tinha sido e viu uma longa lista de caras mas sem nomes.
Bem,
de algumas lembrava-se dos nomes, mas os das outras desvaneceram-se.
Algumas
das caras também.
É como
na canção.
Some of them want to use you, some of them want to get
used by you ...
Tinha
tido de tudo um pouco.
Ainda
assim nunca fora sua intenção apenas somar mais uma.
As
coisas aconteciam assim.
Elas
eram como as ondas do mar.
Ele
não podia impedi-las de virem, da mesma forma que não podia impedi-las de irem.
Esta
simplesmente ali, à espera na praia.
E as
ondas iam e vinham.
Iam e
vinham.
Algumas
tinham apenas lhe molhado os pés.
Outras
chegaram-lhe até à cintura.
Algumas
conseguiram mesmo tocar-lhe o coração.
E
apenas umas poucas conseguiram submergi-lo da cabeça aos pés.
Essas
eram as perigosas.
As que
te levam para o fundo e não te deixam respirar.
As
mesmas que te trarão de volta à superfície para respirares o ar puro.
E tu
respiras fundo e enches os pulmões com o ar mais fresco que alguma vez
respiraste.
E
renasces de novo.
Essas
eram as que o excitavam.
As que
ele realmente gostava.
As que
ele já não esperava ver de novo.
Sim,
estava apenas ali; à mercê das ondas.
Como
pode alguém parar as marés?
Ele
não, certamente.
Bem,
talvez não fosse completamente inocente neste processo.
De
facto sabia até que não era inocente.
Intimamente
sabia.
Não
existiriam ondas se não houvesse o vento.
Sorriu-se.
Ele
era o vento que soprava por detrás das ondas.
Empurrando-as
para si próprio.
-
“Então, meu jovem, tu acreditas realmente que consegues atrair raparigas apenas
com a mente?” - o psicólogo da escola nunca pensou divertir-se tanto a fazer o
seu trabalho. Esperava mais uma entrevista aborrecida com outro aluno para o
ajudar a encontrar vocação, e tropeçara neste miúdo.
-
“Bem, não é exactamente assim, mas consigo fazê-las vir até mim, sim.”
- “E
como é que achas que consegues fazer isso?”
-
“Desejo.”
-
“Desejas?” - perguntou surpreendido?
-
“Sim, desejo com muita força, e de alguma maneira as coisas concretizam-se”.
Ele olhou
para o miúdo. Ali estava ele, não mais de 15 anos, e portando-se como um
homenzinho. Acreditando na sua própria história à medida que a ia inventando.
Decidiu provocá-lo um pouco mais, só para ver quão talentoso era na realidade.
- “E
como é que fazes isso? Tens alguma lâmpada mágica contigo?”
-
“Não, claro que não. Por exemplo, se estou sentado na cantina e uma rapariga
bonita se senta na mesa ao lado eu ponho-me a pensar que gostaria que ela se
sentasse na minha mesa e falasse comigo. É tudo.”
- “É tudo?
E depois?”
-
“Bem, a seguir ela levanta-se a pergunta-me se não me importo que venha para a
minha mesa. Não faz sentido ambos comermos sozinhos quando podíamos estar a
conversar.”
-
“Estou a ver” - Ele tirava notas enquanto falava - “todos estes anos tenho
desperdiçado o meu tempo e dinheiro em jantares chiques e caixas de chocolates
e tudo o que tinha a fazer era desejar. Acho que conseguiste mudar a minha
vida, miúdo” - este estava realmente bem disposto. Muitos dos alunos pensavam
que isto era uma perda de tempo e deixavam-no bem claro. Alguns tornavam-se
desagradáveis e rudes e só diziam disparates. Este pelo menos tinha-o feito de
uma maneira suave e original - “Bem miúdo, espero que continues a querer que
elas venham ter contigo por muito tempo. Quando chegares à minha idade
provavelmente vais desejar que elas não te chateiem.”
Entregou-lhe
um papel - “Prazer em conhecer-te, rapaz. Quando saíres manda entrar o próximo,
por favor.”
Assim
fez.
Cá
fora começou a ver a avaliação.
“MENTE
BRILHANTE. ESPÍRITO REBELDE, COMUM VAIDADE. NECESSITA AVALIAÇÃO POSTERIOR EM
CASO DE MAUS RESULTADOS ESCOLARES. TEM QUE SE ESFORÇAR PARA NÃO SE TORNAR UM
INADAPTADO. SUGESTÕES: NOVELISTA, ACTOR, ESCRITOR DE FICÇÃO, ARTISTA, POETA.”
Desse
dia tomou uma decisão.
Nunca
mais falou a ninguém sobre o seu dom.
Com o
passar dos anos ele já não tinha a necessidade de formular o desejo.
Desenvolvera
o seu dom a um ponto em que parecia ter vida própria.
Era
tudo parte de um processo exterior a si próprio.
Como
um automatismo.
Foi o
seu companheiro de todas as horas durante a sua juventude.
O seu
mais fiel amigo.
Até
que um dia casou.
E o
dom desapareceu.
Como
muitas outras coisas na sua vida, desvaneceu-se.
No
início nem sequer reparou nisso.
Nem
sentiu muito a sua falta nessa altura.
Muitas
vezes se lembrara no psicólogo da escola - “Um dia vais desejar que elas não te
chateiem!”
De
facto ele desejava que ninguém o chateasse.
Já
tinha problemas que chegassem.
Até
que o seu casamento chegou ao fim.
Tinha
perdido a alegria e o dom.
O dom
nunca mais voltou.
-
“Então, o que é que vais fazer hoje à noite?” - perguntou ela.
- “Vou
levar-te a jantar.” - arriscou ele.
-
“Vais levar-me a jantar?” - riu-se ela.
-
“Sim, se me deixares.”
Ela
deixou-o .
Olhou-se
ao espelho.
Já não
era nenhum miúdo.
Não
que se sentisse mais velho, mas os outros faziam-no lembrar isso.
Especialmente
as miúdas novas.
Já não
lhe prestavam tanta atenção, como há alguns anos atrás.
Agora
recebia a atenção de mulheres mais velhas, senhoras, como costumava dizer.
Bem,
as senhoras são quase da sua idade, mas ainda pensa nelas como senhoras.
Olhou
para o espelho de novo.
Havia
pequenas rugas na sua testa, e os seus olhos estavam mais profundos.
Também
tinha menos cabelo.
O seu
casamento falhado tinha-lhe roubado alguns anos, sem dúvida.
Mas
era ainda um homem novo.
E
apesar de tudo, esta miúda tinha-lhe ligado e iam jantar juntos.
Não
uma rapariga qualquer.
Era a
que ele queria.
A que
ele desejava.
Sorriu
ao pensar nela.
Lá
estava ele de novo, no espelho, o miúdo a rir-se para ele.
Já não
o via há bastante tempo.
Estavam
ambos deitados na cama.
Virados
para cima.
Ela
virou a cara para olhar para ele.
A
cabeça dela estava apoiada no seu peito, o longo cabelo louro espalhado por
toda a parte.
O braço
direito dela abraçava-o, e a perna direita estava entre as suas, numa posição
quase fetal.
Respirava
muito suavemente no seu sono.
Como
um bebé.
Abraçando-o
como se isso a fizesse sentir-se segura.
Sentiu-se
seu protector.
- “Meu
Deus, pareces mesmo um anjo!” - pensou.
Ela
pareceu adivinhar-lhe os pensamentos e apertou-o com mais força.
Esperou
alguns segundos mas ela não se mexeu mais.
O sono
dela era como uma fina camada de gelo e ele receava que se pudesse quebrar e
ela acordar.
Que
mesmo os seus próprios pensamentos a pudessem perturbar.
Mas
não conseguia dormir.
Havia
demasiadas coisas na sua mente.
Tudo
acontecera como num sonho.
O
jantar fora bom.
A
conversa fora boa.
Foram
beber um copo.
E
antes que se apercebessem disso, estavam aqui.
Como
se fosse a coisa mais natural a fazer.
Coo se
não houvesse nenhum outro sítio para onde ir.
Demasiado
perfeito para ser verdade.
Mas
suficientemente verdade para ser real.
-
“Como é que eu vou lidar contigo agora, amor?” - interrogou-se.
Ela
parecia-lhe o mais indefeso ser humano à face da terra, lançando os braços à
volta dele em busca de protecção.
- “Não
te preocupes, não te vou fazer mal” - murmurou-lhe.
Ela
era tão nova.
Não
mais de 20 anos.
Ainda
na idade da apreensão.
Quando
as coisas nos podem marcar para a vida.
Ela
faria tudo para não a magoar.
Deitado
ao lado desta rapariga, não conseguia evitar lembrar-se do seu primeiro amor.
Talvez
não fosse na verdade o seu primeiro amor, mas é o primeiro que ele recorda como
tal.
O primeiro
que o marcou.
Também
ela era mais velha que ele.
Ela
tinha 24.
Ele
apenas 18.
Não
podia culpá-la de nada.
De
facto ela era uma óptima pessoa.
E
tinha tudo o que ele sonhara numa mulher.
Como
quase tudo na sua vida, aconteceu por acaso.
Ela
estava com o namorado.
Ele
estava com um amigo.
Ela
beijava o namorado.
Ele
falava com o amigo.
Viram-se.
Ela
não pôde continuar a beijar o namorado.
Ele
não conseguia ouvir nada do que o amigo dizia.
Nessa
noite souberam que estavam apaixonados.
Foi só
uma questão de tempo até ficarem juntos.
Foram
felizes durante algum tempo.
Ambos
viviam um sonho.
Ele
vivia a vida de um adulto.
Ela
tinha voltado à adolescência.
Ele
queria sentir as coisas que uma mulher experimentada tinha para lhe dar.
Ela
sentiu-se atraída pela falta de experiência dele.
Ainda
puro, sem vícios.
Pronto
a ser esculpido por mãos experientes.
Pronto
a ser destroçado.
Não
que pretendesse magoá-lo.
Apenas
agiu como alguém da sua idade, e ele não estava preparado para isso.
Olhou para
a rapariga ao seu lado.
Estaria
ela preparada para ele?
Passou
o braço à volta do seu corpo e puxou-a ainda mais para si.
À
medida que o fez, o cheiro do seu perfume espalhou-se no ar e desceu sobre ele.
Respirou
profundamente.
Podia
viciar-se neste cheiro.
Era o
mesmo que ela usava quando se conheceram.
Estava
a dançar com outra rapariga e um rapaz.
Era
impossível não reparar nela.
Alta,
loira e bonita.
O
cabelo quase lhe chegava à cintura.
Cara e
corpo perfeito.
Tudo
aconchegado dentro de um justíssimo vestido negro.
Pensou
em como seria bom conhecê-la e estar perto dela.
-
“Raios, não faças isto a ti próprio” - recriminou-se.
Esses
tempos tinham acabado para sempre.
Pediu
outra bebida.
Ficou
ali no bar a saborear a sua bebida, apoiando os cotovelos no balcão, de costas
para o mundo.
Foi
quando, pela primeira vez, sentiu aquele cheiro.
-
“Estavas a olhar para mim.”
Ali
estava ela, encostada a ele, fitando-o com os seus grandes olhos azuis,
curiosa.
Quase
se engasgou.
Teve
que lutar para recuperar o controle sobre si próprio.
-
“Acho que muita gente devia estar a olhar para ti, não achas?”
Ela
riu-se - “Sim, mas tu olhavas de uma maneira diferente.”
-
“Diferente como?” - começava a ficar interessado pelo assunto.
Ainda mais
interessado, se é que isso era possível.
-
“Bem, não consigo explicar. É quase como se os teus olhos me chamassem. É
estranho, não é?”
Não
respondeu imediatamente.
Seria
possível?
Teria
o seu dom voltado para si?
-
“Talvez isto não tenha sido bom ideia”- disse ela - “Agora deves pensar que me
estou a atirar a ti.”
-
“Não!” - disse ele - “Desculpa, tinha a cabeça noutro sítio. Não importa
realmente porque vieste, o que importa é que estás aqui, não é? E como estás
aqui, vamos aproveitar. Bebes alguma coisa?”
- “Rum
com cola”.
Continuaram
a falar durante bastante tempo.
Ela
estava de férias com o irmão e uma amiga.
-
“Viajar é o meu passatempo favorito” - disse ela - “Passo o ano todo à espera
das férias para poder viajar pelo mundo. Ver lugares diferentes. Conhecer
pessoas diferentes. Culturas diferentes. Comida diferente. Entendes?”
Ele
entendia.
Também
ele tinha viajado pelo mundo quando era mais novo.
Agora
já não viajava tanto como costumava.
-
“Porquê, aborreceste-te?”
-
“Não, envelheci.”
Ela
riu-se - “Então, não és assim tão venho. Não podes ter mais de 30.”
-
“Estás quase lá.”
-
“Fala-me a sério. Porque é que deixaste de viajar?”
- “Eu
não deixei realmente de viajar, sabes? Apenas viajo de maneira diferente”.
Notou
um brilho de interesse nos olhos dela.
- “Que
maneira diferente?”
- “Eu
viajo através das pessoas.”
-
“Como assim?”
-
“Bom, se pensares nisso, cada pessoa tem o seu próprio mundo. Cada um tem a sua
personalidade, os seus segredos, os seus sonhos. Cada um tem os seus gostos, a
sua família, os seus amigos. E é realmente mais difícil conhecer realmente uma
pessoa do que visitar todas as paisagens de um país inteiro.
Pode
ser mais compensador, também.
Às
vezes conheces uma pessoa durante anos a fio e ela ainda te surpreende.
É uma viajem
que nunca tem fim.
Há
sempre algo de novo a descobrir.”
Ela
não disse nada por uns segundos.
- “Não
sei o que dizer. Nunca pensei nas pessoas dessa maneira.”
-
“Devias tentar um dia. É fácil. Muitas vezes ouvimos as pessoas mas não
prestamos atenção ao que elas nos dizem. Se queres realmente conhecer uma
pessoa, tens que lhe prestar atenção. Se te descrever um local, tenta
localizar-te na cena, se te descrever uma comida tenta sentir-lhe o sabor, se
te descrever uma pessoa tenta imaginar a sua cara e figura. Tenta viajar com
ela de volta aos lugares que visitou, à comida que provou e às pessoas que
conheceu. Se conseguires fazer isso é quase como se estivesses estado lá tu
própria.”
- “De
certeza que sai mais barato, mas funciona?”
-
“Bem, não vais de certeza ficar com um lindo bronzeado ou ter um romance de
Verão, mas isso também não é o mais importante. O que te disse até agora é
apenas o princípio de viagem. É a fase em que permitimos que a outra pessoa nos
leve onde ela nos quer levar, nos mostre o que nos quer mostrar. Mas nesta
altura, ainda não chegaste a conhecê-la. Apenas a podes conhecer quando
começares a viagem interior.
Quando
ela remover a máscara.
Quando
o actor já não estiver no palco.
Quando
retirar toda a maquilhagem em frente ao espelho.
É
então que vês a sua verdadeira cara.
Vulnerável
e frágil, como nunca.
Um
pouco assustada.
Mas
verdadeira.
É
quando tu sabes que fizeste um amigo.”
Mais
uma vez ela ficou calada durante uns segundos, sustendo o fôlego.
-
“Estou espantada” - disse ela - “A sério, estou mesmo. Adoro a ideia.”
-
“Ainda bem que gostaste.”
-
“Achas que temos estado a viajar juntos, agora mesmo?”
-
“Demos os primeiros passos, sim.” - riu-se ele.
-
“Sabes, eu nem sempre sigo os meus instintos. Ainda bem que desta vez o fiz.”
- “O
que queres dizer?”
- “Vir
falar contigo. De repente os meus instintos disseram-me que devia vir falar
contigo, e vim.”
-
“Olha, a cada minuto que passa gosto mais dos teus instintos.”
Ele
deu-lhe o seu número de telefone.
-
“Podia-mos ir jantar um destes dias.”
-
“Sim, isso seria bom.”
E
seguiram os seus caminhos.
No dia
seguinte e no próximo esperou pela chamada dela.
Sempre
que o telefone tocava pensava que era ela.
Mas
ela não ligou.
Os
dias sucederam-se.
Duas
semanas passaram-se.
Ele tinha-se
já esquecido dela.
Mas um
dia, enquanto conduzia, o telemóvel tocou e a voz dela surgiu do outro lado:
-
“Então, o que vais fazer hoje à noite?”
-
“Tenho uma coisa para te dizer.” - disse ela.
- “O
quê?”
Estavam
a jantar num belo restaurante italiano.
-
“Tens que me prometer que não vais ficar chateado comigo.”
Havia
um brilho nos olhos dele sempre que olhava para ele.
Tinha
estado assim o dia inteiro.
Estava
obviamente muito satisfeita consigo própria.
Como
alguém que alcançara algo de precioso.
Ele
sabia que tinha algo a ver consigo devido àquele brilho estranho nos olhos
dela.
Esta
teria sido a maneira com que Eva olhara Adão depois de ele morder a maçã ...
-
“Porquê?” - Estava bem disposto - “O que é que fizeste de tão errado?”
-
“Promete.”
- “Está
bem, prometo. Não vou ficar chateado contigo. Satisfeita?”
-
“Sim.”
- “E
agora?”
-
“Agora, não vou poder passar contigo os próximos dias.”
-
“Porquê? Vais passear?”
-
“Não, o meu namorado chega amanhã.”
Ele
ficou calado bastante tempo.
As
palavras ecoavam na sua mente uma e outra vez.
Falou
finalmente após alguns minutos.
-
“Estás a falar a sério, não estás?”
-
“Estou.”
Ficou
calado de novo.
Apenas
remexia nalgum macaroni com o garfo.
- “Tu
tens um namorado?”
-
“Tenho.”
- “E
agora ele vem aí?”
- “Receio
que sim.”
-
“Então, isto é o fim?”
- “Não
precisa de ser o fim. Eu não quero que seja. Tu queres?”
Ele
não disse nada. Ainda estava a tentar familiarizar-se com a ideia de que o seu
anjo podia ter outro homem.
-
“Olha,” - insistiu ela - “Tinha sido mais fácil para mim inventar uma mentira
qualquer, mas não quero isso. Tenciono ser honesta contigo.”
-
“Bem, não achas que já é um bocado tarde para isso agora?”
- “O
que queres dizer?”
- “O
que quero dizer é que é a primeira fez que estou a ouvir falar acerca de um
namorado. Mas o que eu gostava de saber foi o que aconteceu nos últimos dias.
Eu julgava que estávamos a ter uma relação.”
- “Nós
estamos a ter uma relação.”
-
“Então porque é que nunca me falaste acerca desse namorado que tens? Não
tiveste tempo?”
Foi a
vez dela ficar em silêncio alguns segundos.
- “Eu
não quis estragar o que tínhamos. Estava assustada e confusa e não sabia como é
que ias reagir. Tens que compreender isso.”
-
“Então decidiste enfrentar o problema apenas quando não podias fugir mais dele,
não foi?”
-
“Sim.”
-
“Quando nós nos envolvemos tu já sabias que ele viria?”
-
“Sim.”
- “E
mesmo assim deixaste as coisas chegar a este ponto?”
-
“Sim.”
As
cartas estavam todas na mesa.
Ele
não olhava para ela à medida que a questionava.
Sabia
as respostas às suas perguntas ainda antes de ela as dizer.
Só
queria ouvi-las da boca dela.
Finalmente
parou de remexer com o garfo.
-
“Porque é que não me contas a história toda desde o princípio?”
- “O
que é que queres saber?”
-
“Tenho que te dizer?”
- “Não.”
- fez uma pausa - “Queres saber como é a minha relação, não é?”
Ele
assentiu.
Parecia
algo macabro de perguntar, mas sentia necessidade de compreender.
-
“Bem, eu e o Hassan estamos juntos há um par de anos.”
-
“Hassan?” - perguntou surpreendido.
- “Sim”
- ela estava surpreendida com a surpresa dele - “Hassan é o meu namorado. Ele é
turco.”
-
“Turco???” - agora quase gritara.
-
“Sim. Ele vive na Europa desde muito novo. Tenho uma fotografia dele aqui.”
Mostrou-lhe
uma foto de um tipo de trinta e muitos, cara redonda e longo cabelo negro. Não
conseguiu ver nada de atraente nele.
Talvez
fosse da foto.
Talvez
fosse dos ciúmes.
De
qualquer maneira não conseguia imaginar o seu anjo com este tipo.
Ainda
assim, sabia que não havia regras quando o amor está envolvido.
Mais
uma vez já sabia a resposta à sua pergunta.
- “Tu
ama-lo, não amas?”
-
“Sim, amo-o muito. Como pessoa ele não é muito diferente de ti, aliás.”
- “Ele
não podia vir contigo logo de início?”
-
“Não, ele viaja com os amigos dele e eu com os meus. Em cada lugar que
visitamos ficamos juntos alguns dias e depois cada um segue a sua rota. Mais
tarde encontramo-nos noutro lugar diferente.”
- “Já
entendi.”
- “É
assim que nos relacionamos. Temos uma relação muito livre e aberta. Não
precisamos de andar sempre colados um ao outro.”
- “Ele
sabe de nós?”
-
“Não.”
-
“Alguma vez saberá?”
-
“Não?”
-
“Porque não? Isso seria uma verdadeira relação aberta.”
-
“Porque é tudo muito bonito dito em palavras mas na vida real é apenas um monte
de tretas. Eu sei que o magoaria muito se alguma vez viesse a saber. Mas o que
não sabe não o pode magoar, pois não?”
-
“Achas que ele está a fazer o mesmo?”
-
“Não” - riu-se ela - “Claro que não. Não é o estilo dele. Além disso ama-me
demais. Morreria por minha causa se fosse preciso.”
- “E
isso não te faz sentir mal?” - disse ele amargamente.
Ela
não respondeu imediatamente.
-
“Estás a julgar-me, não estás?” - baixou os olhos como se receasse a resposta.
-
“Não, eu não julgo ninguém. Só estou a perguntar.”
-
“Não, não me sinto mal.” - disse ela - “Eu amo-o, e acredita-me que não faria
nada que o prejudicasse ou comprometesse a nossa relação. Nem por sonhos. Mas
fora disso nunca deixo de fazer nada que me apeteça por causa dele.” - Ele
estava surpreendido com a firmeza no seu olhar - “Nada.”
Ele
não tinha nada a dizer.
Nada a
criticar também.
Estava
espantado com a maneira como ela se apresentara.
Era
obviamente uma vencedora.
Uma
sobrevivente.
Sabia
o que queria e ia buscá-lo.
Não
para magoar alguém.
Apenas
para satisfazer-se a si própria.
Parecia
quase lógico dito por ela.
A
música ecoava mais alto dentro da sua cabeça.
Some of them want to use you, some of them want to get
used by you ...
- “Eu
tenho que viver a minha própria vida, sabes?” Além disso, nunca me poderia
sentir mal por estar contigo” - continuou ela - “Acho que também me apaixonei
por ti.”
Ele
riu-se bastante alto.
Nesta
altura já conseguia rir-se.
Um
riso nervoso, mas mesmo assim, um riso.
- “Tu
és uma rapariga de muitas paixões, não és?”
- “Não”
- protestou - “Não sou.”
-
“Olha que disfarças muito bem.” - ele estava cada vez mais amargo.
Arrependeu-se
das palavras logo depois de as ter dito.
Mas
agora era tarde.
Ela
olhava para ele fixamente, como se tentando adivinhar o que ele pensava.
- “Tu
achas que eu sou uma puta, não achas?”
Ele
não disse nada.
Ela
estava calma e falava muito calmamente mas o brilho fugidio de uma lágrima
reluziu nos seus olhos, traindo-a
- “É isso que tu pensas, não é? Que eu sou uma puta reles.”
Ele
nunca pensou que ela pudesse chorar.
Tinha
um lado fraco afinal.
Nada
como o cubo de gelo de alguns minutos atrás.
Podia
deixar as coisas como estavam.
Mas
agora queria fazê-la sofrer.
Fazê-la pagar.
Como
um tubarão seguiu o cheiro de sangue.
- “À
falta de melhor palavra ...”
Ela
começou a chorar em silêncio.
Não
disse uma palavra nem moveu um músculo.
Apenas
chorou.
As
lágrimas correram pela face até ao queixo, algumas entrando na sua boca.
Ele
não fez nenhuma tentativa para a impedir.
Ele
teve a sensação de sentir o seu sabor salgado na sua própria boca.
Sentiu-se
aliviado.
Também
ele sentira a necessidade de chorar.
Chorar
de dor.
Chorar
de frustração pelo seu amor perdido.
A
necessidade premente de sofrer para apaziguar a dor.
Ou de
impor sofrimentos.
Para
apaziguar a mesma dor.
Estava
bastante satisfeito com a segunda escolha.
Ela
ainda tentava explicar-se.
- “Eu
mereço. Eu sei que sim. Muita gente pensaria o mesmo. Mas não sou eu. Só tenho
que viver a minha vida.”
-
“Está tudo bem, menina?” - perguntou o empregado. Não tinham reparado na sua
chegada.
- “Hã?
Sim, obrigada. Entrou-me qualquer coisa nos olhos. Já fico bem.” - disse ela.
Aquilo
acordou-o
Aqui
estava ele, agindo como um imbecil, feliz por a fazer chorar.
Feliz por
a fazer sentir-se culpada de algo que ele próprio já tinha feito no passado.
Pronto
a atirar a primeira pedra.
Esta
era a mesma rapariga que apenas há alguns minutos atrás ele diria inegávelmente
que amava.
A
mesma que tinha passado com ele momentos maravilhosos.
Que o
fizera sentir coisas que ele julgara perdidas para sempre.
E
agora sentia-se feliz por a fazer sofrer.
Só
porque ela não correspondera às suas expectativas.
Respirou
profundamente e olhou para ela.
A cara
dela estava um horror.
Lembrou-se
da primeira noite juntos.
Um
anjo indefeso lançando os braços à volta dele.
Sentiu
realmente compaixão dela.
Por
debaixo da dor e da raiva, o amor dele por ela subia lentamente à superfície.
- “Sou
um imbecil” - disse ele.
Estiveram
em silêncio quase um minuto.
Ela
sabia que este era o único pedido de desculpas que obteria.
Ele
não sentia necessidade de dizer mais nada.
Ela
finalmente falou.
- “Não
faço isto muitas vezes, sabes? Não é a primeira vez que tenho um romance, mas
não é muito vulgar. Tem que ser com alguém que eu ache mesmo especial.”
-
“Muito obrigado.” - ele estava muito mais calmo agora - “Mas nunca pensaste
como eu me ia sentir? Nunca pensaste que me poderia envolver seriamente?”
-
“Pensei, mas foi um risco que tive que correr.”
-
“Bem, eu nunca tive opção, pois não? Alguma vez me perguntaste se estava
disposto a correr esse risco?”
-
“Desculpa.” - ele podia sentir que estava a ser sincera. - “Eu fui apanhada na
minha própria armadilha, acredita-me. Nunca pensei que me fosse apaixonar tão
intensamente por ti.”
Olhou
para ela.
Pensou
que não era nenhum favor que ela se sentisse intensamente apaixonada por ele.
Intensamente
não era uma palavra suficientemente forte para descrever o amor dele. Ele
estava mais intensamente, profundamente, perdidamente apaixonado. “O que é que
vai ser de nós dois, miúda?” - pensou.
- “Não
consigo explicar isto. Eu não deixar de amar o Hassan. Só acontece que vos amo
aos dois. Não é de doidos?”
- “Não
preciso de te dizer o que sinto por ti, pois não?”
-
“Não.” - pôde ver um pequeno sorriso por entre as lágrimas - “eu sei que me
amas.”
- “E
como é que tencionas resolver isto?”
Ele
esperou uns segundos antes de responder.
-
“Tenciono passar a próxima semana com o Hassan, enquanto ele cá estiver. Depois
isso ele vai para França e eu fico aqui mais duas semanas. E tenciono passá-las
contigo.” - fez uma pausa e olhou-o com olhar de cumplicidade - “isto é, se me
deixares.”
Ela
não precisava de lhe perguntar.
Sabia
com antecedência a resposta.
Sabia
que ele a deixaria.
Ainda
assim insistiu, sorriso aberto na cara, quase secas as lágrimas, alma renovada
- “Então, deixas-me?”
Ele
não disse nada.
Inclinou-se
sobre a mesma e beijou-a com a língua.
Ela
devolveu-lhe o beijo.
-
“Amo-te.”
- “Eu
também te amo.”
- “Vão
desejar sobremesa?” - perguntou o empregado, com ar grave.
Nenhum
deles quis.
Pagaram
a conta e saíram do restaurante.
Atravessaram
a rua e estavam à beira-mar.
-
“Nunca me disseste porque vieste ter comigo de início.”
- “Eu
disse-te. Foi o meu instinto.”
-
“Não, não dessa vez. Da segunda vez, quando me telefonaste.”
- “Eu
tentei resistir a ligar-te. Tens que me dar crédito por isso.”
-
“Devia era castigar-te por isso. Então porque é que mudaste de ideias?”
-
“Porque tu eras bom demais para deixar ir.”
- “O
quê?”
- “Verdade.
Impressionaste-me naquela noite. Eu queria ligar-te mais cedo mas tive dúvidas.
Até que uma noite pensei - “Tenho a vida toda para estar com o Hassan e apenas
alguns dias para estar com este tipo. E liguei-te. Além disso, o timing era
perfeito.
- “Qual
timing?”
- “O
Hassan ia chegar passados alguns dias.”
- “E
então?”
-
“Então, se nós não nos entendêssemos eu simplesmente ia-me embora e não
ouvirias mais falar de mim. Mas nós entendemo-nos até bem demais.” - e riu-se.
- “Queres
dizer ... eu estava a ser ... como se fosse um teste? Uma avaliação?” - Ele
tropeçava nas palavras.
-
“Podes por as coisas dessa maneira, sim. Eu gosto de provar o que como, antes.”
-
“Bem, falem-me de emancipação!” - estava espantado com o espírito dela.
Apetecia-lhe rir mas tinha que aparentar estar chocado - “Qualquer dia as
mulheres vão para um bar gabar-se dos homens que levam para a cama. É
escandaloso!”
- “Não
é nada.” - ela riu-se e beijou-o na face.” - “Vá lá, não fiques assim.
Anima-te. Tu apanhaste-me, não apanhaste?”
-
“Sim, mas agora vou deixar-te ir embora e perder-te, não vou?”
-
“Não, seu tolo.” - segurou-lhe a cabeça e beijou-o na boca - “Não vais. Eu vou voltar, prometo.
Esperarás por mim?”
-
“Esperarei por ti.”
Tinham
caminhado pela areia e agora estavam à beira do mar, de mãos dadas.
-
“Tenho outra coisa para te dizer.”
- “O
quê? Não quero ouvir mais nada de ti hoje.”
- “Não
tenhas medo. Não é nada de mau.”
-
“Isso era bom, para variar.”
-
“Queres saber outra das razões que me levou até ti?”
-
“Claro.”
-
“Aquela história que me constaste sobre viajar através das pessoas. Aquilo
tocou-me. Fiquei fascinada. A maneira como falaste e como o descreveste. Não
conseguia deixar de pensar em ti e de pensar nisso. Estava na minha cabeça o
tempo todo. Tinha que experimentar. Mas não sabia como ou onde começar. Então
pensei que tinha que ser contigo.”
-
“Porquê eu?”
Bem,
para começar porque tu és o especialista nisto.”
- “Faz
sentido.”
-
“Depois tive o pressentimento que haveria sempre algo mais para descobrir em
ti.”
- “Já
estás a ganhar 2-0, miúda.”
- “E
finalmente porque te queria mostrar que estavas errado.”
-
“Estás a perder terreno, miúda.” - brincou ele - “Este é o meu jogo. Eu nunca
me engano.”
-
“Desta vez estavas enganado.”
-
“Porquê?”
-
“Bem, porque estando contigo não só viajei através de ti, como fiquei com um
lindo bronzeado e tive um romance de Verão!”
O riso
veio do mais fundo do seu ser. Explodiu como uma rolha de champanhe. Libertando
toda a tensão.
Abraçou-a
com força.
-
“Miúda maluca.”
Eles
caminharam e falaram durante muito tempo.
Às
vezes falavam a sério.
Às
vezes só diziam disparates.
Depois
fizeram amor.
Fizeram
amor como se não houvesse amanhã.
Como
se fosse o juízo final.
E
viajaram, viajaram e viajaram.
Perderam-se
e acharam-se.
Estavam
descobertos.
Expostos.
Despidos.
- “Esperarás por mím?”
-
“Esperarei por ti.”
Quando
a manhã os encontrou ambos sabiam que tinham feito um amigo.
Ela
foi-se embora.
Ficou
fora uma semana..
Ele
nunca pensou nela enquanto ela esteve fora.
Nunca
se permitiu a si próprio pensar nela.
De que
serviria?
Ela
estava fora do seu alcance agora.
Como
prometido, ela voltou.
Ele
não contava com ela.
Nunca
contara os dias.
Ela
estava muito feliz.
- “Eu
vim um dia mais cedo, reparaste?”
-
“Reparei.”
Ele
mentia.
-
“Disse ao Hassan que tinha uma coisa planeada com o meu irmão.”
Riu-se.
-
“Menti.”
Foi
essa a última vez que falaram sobre esse assunto.
Recomeçaram
de onde tinham ficado.
Como se
o tempo em que estiveram separados simplesmente não tivesse existido.
Como
se apenas ontem tivessem prometido esperar um pelo outro.
Como
se cada segundo contasse.
Mais
uma vez nunca contou os dias.
De que
serviria?
O
tempo correria por si próprio.
Tudo
acaba e tudo morre.
Ele
também morreria um dia.
Mas
nem por isso se levanta de manhã a pensar nisso.
Da
mesma maneira nunca perdeu um segundo a pensar que um dia ela iria embora.
Cada
segundo contava enquanto estavam juntos.
Viver
depressa e morrer jovem, epitáfio perfeito para o seu amor.
Até
que um dia ela lhe disse - “Vou-me embora hoje.”
-
“Levas-me ao aeroporto?”
-
“Claro.” - disse ele.
O
irmão e a amiga já estavam lá à espera dela.
-
“Voltarás um dia?”
- “Vou
tentar voltar para o ano.”
Ela
apeteceu dizer-lhe - “Esperarás por mim?”
Ele
apeteceu dizer-lhe - “Esperarei por ti.”
Nenhum
deles disse nada.
Ela
deu-lhe um longo beijo de despedida.
-
“Tempo de dizer adeus.” - disseram ambos ao mesmo tempo.
Riram-se.
Ainda
havia algum tempo para sentir felicidade.
Cada
segundo contava.
Ela
pensou que os olhos dele diziam - “Fica comigo.”
Ele
pensou que os olhos dela diziam - “Vem comigo.”
Ambos
olharam para o chão.
Os
outros aproximaram-se deles, sorrindo.
- “O
avião está quase a partir.” - disse o irmão - “Queres ir à boleia para casa?”
-
“Não, já vamos.” - disse ela rindo.
Despediram-se
todos.
- “Sê
feliz” - disse-lhe ele.
-
“Continua feliz” - disse-lhe ela.
E
separaram-se.
De
vez.
Ela
tinha ido embora há alguns dias.
Ele
não sentia a dor que esperava sentir.
Nunca
pensava que a tinha perdido.
Pensava
que fora feliz em tê-la por algum tempo.
Eles
eram linhas oblíquas.
Destinados
a cruzaram-se mas não a permanecer juntos.
Ela
era especial.
Tão
especial que o acordara do seu longo sono.
Estava
a pensar nisso sentado numa mesa de café.
Começou
a ler o jornal.
Às
vezes levantava a cabeça e olhava à volta.
Algumas
mesas à sua esquerda uma rapariga lia uma revista.
Chamou-lhe
imediatamente a atenção.
Devia
ter vinte e poucos anos.
A sua
cara era extremamente bonita, um certo toque africano.
A pele
era bronzeada e tinha cabelo escuro, puxado para trás com gel.
Usa
óculos de aro preto muito fino.
Parecia
saída de um anúncio de televisão.
Daqueles
em que uma jovem bela de aspecto intelectual anuncia anti-sépticos.
Ela
devia ter pressentido o olhar dele e levantou a cabeça.
Ele
desviou imediatamente a cabeça.
Ambos
voltaram à leitura.
Uns
segundos depois ele sentiu uma sensação de ardor na face.
Levantou
a cabeça mesmo a tempo de a ver desviar a dela.
Ambos
voltaram de novo à leitura.
-
“Posso sentar-me aqui?”
Ambos
sentiram o coração bater mais rápido.
Ambos
levantaram apressadamente os olhos.
-
“Faça favor.”
O
homem sentou-se numa mesa próxima e deu dois beijos à mulher que já lá estava
há algum tempo.
A mesa
ficava no meio deles, mas não o suficiente para os encobrir um do outro.
Os
seus olhos cruzaram-se por um segundo.
Ambos
estavam ainda um pouco pálidos.
Ela
sorriu um sorriso escondido.
Ele
devolveu-lhe o sorriso.
Ambos
retomaram a leitura.
Ele
parecia-lhe cada vez mais difícil continuar a ler.
Ela
parecera-lhe farta da revista e passou-a a um cano da mesa.
Tirou
os óculos.
Os
seus olhos cruzaram-se outra vez.
Ambos
sorriram antes de desviarem o olhar.
Um
sorriso mais aberto.
Ele
abanou a cabeça, coçou a sua pequena barba de mosqueteiro e pôs o jornal de
lado.
Ela
voltou a colocar os óculos e estendeu o braço para a revista mas parou a meio.
A sua
mão ficou suspensa por um segundo e voltou para trás.
Tirou
de novo os óculos.
Tinha definitivamente
desistido da leitura.
Ela
deu-lhe um olhar mais intenso.
Pela
terceira vez os seus olhos cruzaram-se.
Pela
terceira vez sorriram um ao outro antes de desviaram o olhar.
Ela
fitou o tampo da mesa por uns segundos e também abanou a cabeça.
Sorria
quando ergueu de novo os olhos para ele, confiante.
Ele
olhou para o tecto por um segundo.
Os
seus pulmões estavam cheios de ar puro.
Ali
estava ele, aquele velho vento tempestuoso.
Soprando
de novo.
(*)Luís Moutinho, escritor portugués.
Mora no Porto.