Renato de Caldevilla(*):

O presente de Natal


 

O velho e ancilosado Lopes, conhecido pela vizinhança pelo “Mata-gatos”, acabara de se municiar no seu quintal de várias pedras metidas nos bolsos do casaco, para com elas alvejar os pacatos bichanos e estenderem os seus preguiçosos corpos sobre os muros das casas do bairro onde residia, ou pacificamente instalados nos parapeitos das janelas dos seus donos. Se a precária pontaria o fazia falhar o alvo, acabando por estilhaçar uns vidros ou vasos de plantas, em vez dos felinos a desaparecerem aterrorizados no momento da agressão, procurava, como qualquer criança amedrontada e asneirenta, fugir rapidamente do local da ocorrência, sem se assumir culpado e pegar os prejuízos por ele cometidos.

Tal manifestação de maldosa senilidade, irritava profundamente minha mulher, dona de um gato que eu lhe oferecera pelo aniversário, uma das vítimas marcadas pelo ódio do Lopes, apenas por que, em legítima defesa, lhe ferira um certo dia o seu cão de guarda, a ponto deste vir a falecer mais tarde, nunca se tendo esclarecido, se por causa das arranhadelas sofridas nessa altura.

Por vezes, quando nos cruzávamos na rua, entabulávamos dois dedos de conversa, surgia uma anedota que eu lhe contava e lhe provocava sonoras e estrídulas gargalhadas, relembrávamos tempos antigos, quando os dois íamos pescar ao cais da Meia-laranja, na Foz do Douro, servindo-se o Lopes daquele expediente como pretexto, para visitar uma amiga com quem mantinha uma relação extra-conjugal de longa data, e ficando eu a vigiar-lhe a abandonada cana de pesca sobre o cais até regressar, afogueado, no seu passo bambolente e largo, agradecendo-me a atenção daquele período de vigilância, durante o tempo da sua curta vítima amorosa.

Acabei por saber mais tarde, ser ele pai de um bastardo a quem baptizou com o seu próprio nome, um rapaz atrasado, por autista, que com ele acabara por vir morar após a morte da mãe.

O pobre do Néca, era uma criatura de impressionante aspecto, aleijado num dos braços mais curto do que o outro, o andar arrastado, um olhar muito fixo nas pessoas com quem procurava conversar de quando em vez, babando-se pela boca larga, aureolada por uns dentes encalavitados e amarelos.

Verdadeiramente nunca se chegou a saber, do eventual conhecimento que teriam os outros filhos do Lopes, sobre aquele meio-irmão que viera compartilhar a mesma casa com o pai e a madrasta, senhora bastante doente e que tão bem o tratava, obrigando-o a frequentar uma escola especial para aquele tipo de deficientes e apaparicando-o com guloseimas várias, conforme sempre o tinha feito com os seus próprios filhos. E fora nessa mesma escola que o Néca sofrera a sua primeira grande desilusão, por não vir a casar com a professora por quem se tinha apaixonado profundamente, depois dela lho ter prometido, caso ele cumprisse com os seus deveres escolares. O autista entrou em depressão profunda, deixou de se alimentar e de dormir, chorando continuamente e confessando o seu desgosto e a falsa promessa que lhe fora feita.

Depois de tratado por um psiquiatra através de um internamento temporário, o Néca recuperou, regressando ao convívio da família. Dentro das suas limitações, o rapaz ajudava nas lides diárias, deslocando~se à padaria e papelaria, trazendo os pães e o jornal, parando pelo caminho para tentar, entre diversos esgares e convulsões, uma conversa com qualquer vizinho que encontrasse, fazendo-lhe as perguntas mais surpreendentes e ingênuas que se pudessem imaginar, embora com uma certa coerência que a todos admirava.

A esposa do Lopes acabou por falecer após prolongada doença, tendo perdido o conhecimento a pouco e pouco, à medida que o tempo passava e lhe tomava os sentidos, transformando-a numa dorida e inconsciente criatura, a obrigar o Lopes, filhos e noras a  um trabalho de enfermagem violento e cansativo, porquanto a mísera reforma que vários anos de descontos fraudulentos efectuados pelo laboratório onde fora empregado, não lhe proporcionavam uma situação econômica desafogada, a permitir-lhe contratar profissionais para a assistência e tratamento da pobre senhora.

E enquanto o estado da mulher se foi degradando, Néca não compreendia o enfraquecimento e a falta que lhe ia fazendo a sua protectora a quem tratava carinhosamente por “mamã” e abraçava deixando-lhe um babado beijo na frente suada.

O Lopes que, de vez em quando, ao encontrar-me, chorava copiosamente, o estado e a doença da mulher, invectivando a má sorte que sempre o perseguira na vida, acabou por ficar só, apenas com o Néca, o filho, como indesejável companhia, por virtude do seu autismo confrangedor.

O seu único divertimento, consistia em perseguir gatos, torturá-los ou matá-los, se possível fosse.

Durante o tempo em que a mulher esteve doente, o Lopes foi obrigado a transferir para um asilo o Néca, não só por imposição das noras que o tinham vindo ajudar nos cudados à doente, como pela aborrecida e perturbadora presença do autista junto da madrasta, tornando o ambiente ainda pior e insuportavelmente pesado, com o desesperado chorar e as incoerentes atitudes de ternura para com a acamada. Por essa razão foi que o deixei de ver com a frequência habitual da sua viagem diária à tabacaria e padaria da zona.

Como o Natal se aproximava, embora o luto não fosse consentâneo com a eventual família, pensando na futura passagem de ano para o tão apregoado 2000, o Lopes mostrou desejo de juntar toda a família, argumentando que talvez esta viesse a ser a última reunião, tão doente se sentia, assim como solitário e abandonado. Fizeram-lhe a vontade, e como de costume, começou a cansativa faina da compra de prendas e os planos para que fosse facultado ao velho, uma confraternização a transmitir-lhe um pouco de alegria, proporcionando-lhe uma certa paz de espírito pela recente falta da mulher, conquanto as relações entre os irmãos não fossem as melhores , no fundo, ninguém gostasse da presença do Néca, considerado, entre eles, “persona non grata”.

Lopes deslocou~se ao centro da cidade para comprar num bazar brinquedos para os netos, lembrando-se na circunstância de escolher qualquer coisa para o Néca que, pelo seu atraso mental deveria apreciar um brinquedo daqueles, quiçá um gato preto, este inofensivo por se tratar de um boneco e não um daqueles detestáveis felinos que perseguia na rua onde morava, Entre todos os presentes adquiridos, aquele que mais lhe agradou, foi o gato preto, tão perfeito a só lhe faltar o miado!

Na noite da consoada, todos se reuniram sob um ambiente pesado, a recordação da mãe ainda muito fresca na memória, os olhares tristes para o sopé da árvore de Natal onde se acumulavam os embrulhos das prendas. Custou a engolir o bacalhau cozido com batatas, ovo e penca transmontana, apreciado com um azeite de Castelo Branco, da propriedade de uma das noras do Lopes. Pouco se falava naquela mesa, os olhares fugídios cruzando-se entre si e fustigados pelas intermitentes iluminações natalícias da sala.

Com o fim da ceia chegou a altura da entrega dos presentes. Todos se precipitaram para os embrulhos, abrindo-os com ávida curiosidade.

Para alguém, o livro recente da autoria do prémio Nóbel português. Outra, ficava encantada com o jogo de toalhas de mesa e guardanapos. O Lopes exultou com uma fisga de punho de madrepérola e os desejos da dedicatória de um dos filhos para que a utilizasse com sucesso nas suas caçadas citadinas. E as prendas foram sucessivamente abertas, mesmo aquela que correspondia ao Néca que tinha ficado com ela, paralisadas as mãos, enquanto que, os olhos esbugalhados, a baba a cair-lhe pelo canto da boca, o rapaz fitava o pai que, entretanto, já se treinava com a fisga, antevendo gatos por todos os cantos da casa.

Um bramido aconteceu naquela sala de jantar. A princípio ininteligível depois, aos poucos, ganhando maior expressão e uma anormal sonoridade. Néca, positivamente espumando, erguia o gato preto nas mãos, sobre a cabeça, ululando excitadíssimo: “Atira neste, padrinho, atira neste! O gato é mau, não quero o gato! Mata este, padrinho, mata este...”

O Lopes, petrificado, olhando o filho autista, como que o interrogava sobre a razão que o levaria a sacrificar realmente aquele animal, numa noite santa como aquela, quando outrora os animais humildes do presépio aqueciam o Menino com a mansidão dos seus bafos.

Néca, a chorar, saltou-lhe ao pescoço, abraçando-o e gritando: “Padrinho, Padrinho, deixa que te chame “Papá”. Podes crer que será essa a melhor prenda de Natal que me podes dar...”

A fisga caiu-lhe das mãos e a partir dessa noite o filho deixou o  asilo e foi morar com o Lopes. Nunca mais aquele velho voltou a importunar os gatos da vizinhança.


 

(*)Renato de Caldevilla, poeta e jornalista português. Mora no Porto.




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