Versiones 32
Junio/Julio 2000 - Año del Dragón
Director: Diego Martínez Lora
Ana Cecília Ferri Soares(*):
Uma Casa de amor
Nascera num lar privilegiado, se é que a isto se pode chamar privilégio:
era filha de um convencional casal de professores da escola secundária...
Muitos paradoxos rondavam a cabeça de Elsa desde os seus doze anos. Os
seus deveres e direitos, para seus pais, eram absolutamente diferentes dos de
seu único irmão. Indignava-se ainda mais, por ser a própria mãe a arquitecta
das normas tão rígidas criadas para Elsa e de outras tão liberais para seu
irmão. Elsa
não precisou rebelar-se. Possuidora de uma mente privilegiada, sabia suportar
aquelas diferenças com paciência, sabedora do momento, da oportunidade de
tomar em suas mãos as rédeas de sua própria vida. Assim compreendia a
Liberdade da Mulher, a escrever consciente o papel que desejava representar
nesta vida. Não se deixava empolgar por notícias da moda feminista, não
precisou queimar suas peças íntimas. Conquistaria as suas vitórias sem
alarde, sem precisar manifestar-se publicamente, sem guerras, sem desrespeitar
as imutáveis opiniões de seus pais. Afinal de que lhe serviria levantar
bandeiras dentro da própria casa, se tudo ali era justificado em nome do Amor,
da Religião, das melhores Tradições da Família ?
Ao terminar o Curso de Direito, preferiu não se candidatar a cargos públicos,
como lhe foi insistentemente proposto pela mãe: “São as melhores colocações
para as mulheres... temos tantas vantagens...”
Elsa não queria vantagens! Desejava exercer sua profissão da melhor e
mais honesta forma que soubesse. Só assim poderia realizar-se. Não queria
vencer ninguém, homens ou mulheres... queria vencer o desafio a que se
propusera: advogar, praticar a Justiça !
Organizou o seu próprio gabinete e passou a atender os clientes que lhe
apareceram. Tornou-se célebre, controvertida. Defendia empregados e patrões,
políticos e eleitores com a mesma lisura de critérios e especializou-se em
Violência Familiar. Defendia as mulheres ou os homens, sem falsos moralismos,
sem preconceitos, sem querer ser politicamente correcta. Visava a Paz,
especialmente para os filhos... Aprofundou-se nesta faceta tão infeliz da
sociedade que destroi dos lares mais abastados até os mais pobres, a
converter-se numa das maiores misérias humanas, que nenhuma esmola, palpite ou
oração pode resolver... Jamais perdeu uma causa!
Elsa era uma mulher madura, amadurecida pelas incoerências da própria
educação. Desprezava os padrões desta sociedade que depois de elevar as
pessoas ao Altar Público, crucifica-as
impiedosamente. Tornou-se uma mulher rara, diferente...
Não suportaria ter por marido um homem que tivesse sido educado como o
seu irmão... Elsa esperava encontrar um companheiro que já houvesse
ultrapassado esta medíocre e inconsciente fase do pensamento masculino
condicionado pela educação doméstica. Um Homem como ela: justo, simples,
consciente, de sentimentos honestos, que tivesse superado as necessidades egocêntricas
da vaidade...
Mergulhada em seu computador, registava ali todos os seus
processos, bases de dados para argumentação de suas defesas. Toda a sua
vida profissional estava ali guardada. Aquele computador era a sua própria
mente, a sua memória, um “clone” dela mesma. Este computador companheiro
lhe abriu todas as janelas do mundo para um imenso mar aberto e Elsa
“navegou” pela Internet... Frequentava grupos de estudo e discussão,
bibliotecas do mundo inteiro, jornais, tribunais, escrevia e publicava os seus
trabalhos, em páginas especializadas. Tornou-se anonimamente conhecida e
famosa, como queria... A Internet...
pensava ela, era a revolução mais moderna de seu tempo! Que maravilhoso
acesso ao conhecimento têm as pessoas hoje em dia... que possibilidades... E além
disto a Internet inverteu a ordem dos relacionamentos, ao possibilitar que as
pessoas se conheçam intelectualmente, antes de se verem... caiu por terra a
teoria da empatia, da vulgaridade da atracção física... dos padrões sexuais
que promovem os inícios dos relacionamentos entre homens e mulheres. Caiu por
terra o jogo da sedução, da aparência, dos valores materiais... Quando se
discute um tema pela Internet, as pessoas estão ali presentes para falar
daqueles assuntos que
interessam ao grupo. Não há ninguém com outras intenções, não há as salas
bem
decoradas para que as conclusões sejam forjadas, nem beberetes, nem
recepcionistas bem vestidas pelo patrocinador do evento, como é de costume
nestes colóquios e congressos convencionais. Fantástico! E além disto, por
serem pessoas de várias partes do planeta, não há o compromisso formal ou a
obrigação de se conhecerem pessoalmente... Elsa encantava-se com este mundo
maravilhoso e confiava nele. E confiava em todos os valores que a sua inteligência
e a sua sensibilidade haviam construído... A vida seria boa para ela. Elsa era
íntegra, sincera.
Certo dia, um
integrante de um dos grupos, sugeriu que todos fornecessem seus endereços
electrónicos pessoais para consultas mais específicas sobre algum assunto que
pudesse surgir. Todos concordaram. Elsa passou a receber mensagens deste colega
diariamente. Sob o pseudónimo de Scorpios, este senhor mostrava-se muito
interessado em seus trabalhos, condutas profissionais e assim foram trocando
impressões... e confidências. Elsa esperava ansiosamente pelas mensagens dele.
Parecia-lhe um sonho... Uma
vida a buscar novos conceitos, novas soluções. Vinte
anos de profissão exercidos, coroados agora com este moderníssimo encontro...
As mensagens aumentavam de frequência como as batidas do
seu coração... Aumentavam o interesse, o carinho, a expectativa das
descobertas... sem que nenhum dos dois fizesse ainda a proposta de se conhecerem
pessoalmente. Procuravam-se, queriam conhecer a fundo a mente um do outro.
Falavam de suas emoções, de seus desejos, trocavam carícias em letras de
forma, trocavam beijos com suas bocas descritas ... trocavam flores e músicas,
sonhavam acordados por entre os desenhos animados das cachoeiras de água electrónica...
em suas cadeiras, em frente ao seus computadores, sentiam a corredeira dos rios
do sangue de suas veias misturado na tela de seus desejos... amavam-se durante a
madrugada até que
adormecessem cansados os seus sexos virtuais...
Começaram a fazer planos... Fariam
um grande site direccionado para as pessoas que sofressem violência
familiar: A Casa de Amor. A
aliar os profundos conhecimentos de Elsa ao seu grande engenho com os
computadores, como se fosse um grande arquitecto, Scorpios construiu uma
interessantíssima Casa de Amor... Elsa fornecia-lhe os nomes dos possíveis
orientadores de cada sala: psicólogos, assistentes sociais, terapeutas
familiares, juizes de menores, pessoas ligadas à grupos vulneráveis, enfim
disponibilizou todo o seu relacionamento profissional para a concepção da página,
que seria o mais completo e moderno ponto de apoio contra a violência.
Pensou muito em seus pais durante estes momentos: quantas coisas
maravilhosas poderiam ter feito juntos numa mesma
profissão, se não fossem as mesquinharias das competições, dos ciúmes, da
inveja e da falta de respeito que tinham um pelo outro... Quanto se perderam um
do outro... Quanto desperdiçaram o amor que os uniu com aqueles sentimentos
menores... Que grande pena...
Elsa, cada vez mais segura de sua forma moderna de viver pensava: tão
estamos a construir... a enfeitar cada milímetro de nosso espaço... E tão
envolvida estava com as suas actividades, agora triplicadas com a construção
da Casa que não se apercebeu de que seu computador estava com avarias.
Um dia, ao precisar de um arquivo, o ecrã mostrou-lhe um aviso: “este
programa realizou uma operação ilegal , deve ser fechado imediatamente.” Sem
saber o que fazer, consultou Scorpios sobre isto. Ele respondeu, indicando-lhe
os procedimentos para sanar o problema. Elsa não conseguia. Tentou outro
arquivo... em vão. Imaginou que não estivesse a receber mensagens das outras
pessoas por
estar com problemas no equipamento. Mas recebia as dele! Graças a Deus! Uma por
uma, perdeu as cópias de segurança de seus trabalhos... Anos
de trabalho ali dentro perdidos... todos os contactos recusavam seus E-mails. Os
trabalhos que enviasse para publicação voltavam recusados... o seu cérebro
“a realizar operações ilegais...” Ela, acusada de espalhar vírus pela
Internet... de destruir os computadores de colegas...
Scorpios enviou-lhe uma mensagem que continha, em anexo, um programa que
transformaria o computador de Elsa em “escravo” do seu. Desta forma ele
poderia averiguar de sua máquina, o que se passava com a dela. Estavam em
rede... Marcaram um horário em que os equipamentos fossem ligados juntos para
que ele fizesse os reparos necessários e ela pudesse acompanhar os
procedimentos.
Ao abrir o seu computador, Elsa percebeu que estava directamente ligada
à página da Casa de Amor e imaginou que Scorpios iria fazer-lhe grandes
surpresas...
Sem que ela precisasse tocar no rato ou no teclado, as coisas começaram
a acontecer... O primeiro compartimento que surgiu foi o das crianças... Uma
banda sonora apavorante servia de fundo às fotografias de três crianças
mortas violentamente, numa poça de um sangue que escorria em terceira dimensão...
Do lado de fora, para onde corria aquele sangue, ouviam-se os gritos
desesperados de uma mulher enlouquecida que conseguiu finalmente debruçar-se
sobre os corpos dos filhos mortos... Eram efeitos especiais sobre as cenas de um
pavoroso crime de cujo processo ela fora a advogada implacável. Naquele
mar de sangue boiavam escritos os nomes dos colegas de Elsa. No imenso luminar
que brilhava tétrico neste indescritível ambiente, os títulos dos processos
criminais que deveriam estar em seus arquivos, explodiam as
centenas de lâmpadas que se iam apagando... todas... Frases obscenas e
acusadoras assinadas por seus colegas de grupo surgia vez por outra... Elsa
assistia a tudo com os olhos esbugalhados, a mente perplexa e imóvel. A sua
grande iniciativa, a sua liberdade de agir, o seu senso de equilíbrio em nada a
ajudaram diante do horror que sentia ao perceber-se virtualmente destruída...
Nem mesmo as lágrimas a socorreram... O seu computador, que era a sua memória,
o prolongamento de sua mente estava a ser morto diante da sua impotência...
Antes que o ecrã ficasse totalmente escuro, surgiu, a mostrar um sorriso cínico,
a fotografia de um senhor
que fora seu colega de Universidade, com a seguinte mensagem:
“Destruí a tua mente, a tua memória, o teu êxito e o nosso amor...
através da minha brutal violência virtual, tão habilmente quanto destruístes
a minha carreira ao
venceres a tua única causa contra mim , em nosso primeiro encontro
profissional... há vinte anos...”
(*)Ana Cecília Ferri Soares, escritora brasileira-portuguesa. Mora em Estoril.