Versiones 32

Junio/Julio 2000 - Año del Dragón

Página principal


Director: Diego Martínez Lora


la aventura de compartir la vida, las lecturas, la expresión...


 

Conceição Miranda(*):

O jogo


1 – Geri’s game. O filme.

Há dias, o Diego desencantou um filme de animação que eu procurava, com olhos farejantes, há já algum tempo: Geri’s game de Julius Pinkava.

O filme, para quem tem a terrível desventura de não conhecer, oferece-nos, através de uma excelente animação computadorizada, o desempenho de um velhinho solitário, Geri, que empreende um estranho jogo de xadrez, onde ele próprio assume o papel de dois jogadores rivais, que apostam, como troféu, a única dentadura postiça que possuem. Assim, à nossa frente, a personagem desdobra-se em duas personalidades antagónicas: o Geri-bonzinho, de sorriso enternecido e gestos delicados e inibidos, e o Geri-mauzão, de sorriso sarcástico e gestos determinados e rápidos, ambos tensos, ambos impiedosamente competitivos, receosos de perderem a prótese dentária para o adversário umbilical.

O filme propicia momentos deliciosos e únicos, com o Geri-bonzinho a recorrer a truques desleais, revelando-se estranhamente mais perverso do que o Geri-mauzão...

(...)

Não vou revelar o final desta assanhada competição, isto é, qual dos dois Geris vai encher o seu sorriso de dentes certinhos e ofuscantes... Deixarei isso em suspense...

Quem quiser alargar o seu repertório de truques escorregadios e aproveitar a ocasião para visionar um dos filmes de animação mais premiados, aconselho-o a que procure o filme numa cassete da Disney-Pixar.

 

2 – Diego’s game. O jogador.

O Diego tropeçou no filme, por acaso, após ter comprado uma videocassete de animação para a Eva. Certamente que deu pulinhos de alegria ao imaginar todas as vantagens que conquistaria com um troféu como aquele: a minha cobiça por curtas metragens de animação é pública e a perspectiva de me ter como adversária é um factor encorajante –  jogando com outros, perco sempre.

Então o Diego estabeleceu, desta forma, os termos do jogo: dar-me-ia Geri’s game se eu lhe escrevesse um texto para Versiones! E eu hipnotizada pelo filme e apanhada de supetão, acabei cedendo – ganhou o Diego (a tradição é sempre o que era).

3 – Julius Pinkava. O realizador.

Devorei o filme Geri’s game no sofá do Diego.

Arregalada e transida.

Arregalada e transida porque tive, de súbito, a certeza de que fora vítima do programa «Big Brother», que fora ferozmente vigiada por Julius Pinkava, que disfarçava agora o resultado do seu voyeurismo indiscreto com este filme aparentemente senil, onde pormenores insignificantes tinham sido alterados para despiste das medonhas coincidências com o meu real. Não havia dúvida: lá estava eu, jogando comigo própria os meus inúmeros «faz-de-conta», temendo desesperadamente pelos meus insubstituíveis óculos( não aposto dentaduras – um dos truques dissilulantes de J. Pinkava – aposto os meus óculos, única protecção contra a miopia endógena que me marcou) e sofrendo os reveses perpetrados pela minha adversária gémea, muito mais ousada e rápida do que eu!

Está visto que aquela vida de ficção animada é minha. Está visto que fui vítima de roubo. Está visto também que não tenho o dinheiro suficiente para contratar Erin Brockvich . Porque se tivesse, era bem capaz de obter uma choruda indemnização por «apropriação de patente existencial registada e exposição danosa da mesma sem consentimento expresso da autora original» !!!!

Enfim, sinto-me espoliada e raivosa. Uma hidra vingativa apodera-se da minha mente, desta feita unida numa só personalidade contra as manipulações insidiosas da vida.

Quero vingança!!!! Quero apropriar-me e reduzir a picadinho de rissol uma outra vida alheia. Quero encontrar um garanhão que possa lutar com o filme de Pinkava e realizar assim a minha revanche.

 

4 – Adão. A minha personagem

Estando eu a espreitar omnipotentemente o catálogo dos meus contemporâneos, caio, de repente, em Adão(o catálogo, aliás, só tem Adões...)e zupa, por vingança, acabo por marcá-lo com um círculo bem fechado.

No sítio errado, na hora errada, coitado do pobre... Mas estou irredutível. Não há fuga possível. Eu também não tive hipóteses.

Adão vai, desta forma, ser o peão que, a partir de agora, servirá  de personagem para a minha história vingativa, escrita em forma de filme animado.

 

5 – Retrato físico de Adão.

Adão é uma personagem borratada em papel canson por uma autora que não domina muito bem a técnica da aguarela(euzinha).

Ele é uma volumosa mancha de cor cinzenta, uma mancha sem forma, espraiando-se no cenário até ao infinito.

Na realidade, a definição precisa desta figura prejudicaria grandemente o traçar do seu perfil, avesso a definições claras, daí a ausência de contorno a tinta da china.

 

6 – Retrato psicológico de Adão.

Se vocês observarem Adão fora de qualquer contexto confundi-lo-ão, por certo, com uma daquelas manchas borratadas que os psicólogos utilizam nos seus testes de percepção e cujas respostas invariavelmente giram em torno das seguintes ideias:

-          cagada de bebé numa fralda.

-          nódoa de porcaria em bibe de criança.

-          pingo ressequido de sangue do primeiro austrolopiteco.

-          etc, etc

E estas interpretações subjectivas da mancha  coincidem direitinho com o que vos vai ser mostrado sobre Adão.

 

7 – Retrato social de Adão.

Adão vive em Penafiel (escusado será lembrar-vos que Penafiel está em Portugal, Portugal na Europa e a Europa no planeta azul).

Apesar de ser meu conterrâneo, viver o hic et nunc ao mesmo tempo que eu(azzzar), Adão vivencia ainda o tempo em que Eva era uma lasca de carne dura agarrada à sua costela. Por isso, sinto a obrigação de sublinhar que Adão e Eva são um santíssimo dueto, indivisível e dogmático, o que provoca  o inchamento considerável da mancha cinzenta borratada.

Com a ajuda preciosa da lasca da sua costela, este Adão  já conquistou, até hoje, inúmeros tachos bem reluzentes, com um jogo de xadrez muito personalizado. Um dia, como acontece sempre a quem já passou a meia idade, alguém, um outro Adão mais jovem, fez xeque-mate no meu Adão e empurrou-o para fora do lugar de chefia que ocupava numa instituição pública de Penafiel

(é-me difícil precisar qual – e eu que queria tanto imprimir um ar exacto ao meu filme escrito!!! -  Em Penafiel, quase todas as instituições públicas têm Adões  no comando,...É como aquela história bíblica dos raminhos de giesta em todas as portas de Nazaré para despistar os algozes do menino Jesus. Penafiel é igual. Tanta flor acabou por me despistar a mim própria!!! Não consigo acertar com o nome da instituição!)

Mas, como ia dizendo, outros Adões cobiçaram o lugar  da minha estrela cinematográfica e pum, deram-lhe um pontapé no rabo!!!!!! Felizmente(?), o rabo dele tinha gordura suficiente para amortecer o choque e Adão não sofreu qualquer dano grave (como nos desenhos animados). Pelo contrário: este pontapé aguçou, consideravelmente, o seu dote de jogador de xadrez, tendo atingido, aliás, um requinte e uma destreza assaz invulgares(por isso, o meu filme é sobre este Adão e não sobre outro qualquer - que em Penafiel é o que não falta!)

 

8 – O jogo de Adão.

Adão nunca joga  num jardim pouco frequentado socialmente como fazem o velhinho Geri e eu. Pelo contrário, escolhe espaços bem públicos, que se pareçam com uma rua de Pequim na hora de ponta. Também não aposta dentaduras ou óculos. Aposta vontades (muito mais sofisticado!)

Normalmente, senta-se em frente a um tabuleiro de xadrez, portentosamente iluminado com gigantescos holofotes, onde coloca apenas as suas peças – peões humildes, encurralados no reduzido quadriculado da vida – e joga segundo regras pré-definidas por ele próprio. Num certo ponto de vista, ganha sempre. A multidão de peões, do seu jogo, constitui uma massa maciça que o protege do contacto com outros Adões invejosos.

 

9 – Segmento sonoro do jogo de Adão, captado ao vivo.

(Nota sobre a música de fundo: ainda não decidi se vai ser um hino nacional de alguma república das Bananeiras ou o hino de um clube de futebol. Ainda não fiz as audições necessárias para proceder à opção mais expressiva. Sei apenas que quero algo de épico e formal).

No filme, Adão fala com a Conceição(eu).

Falar é um modo de dizer... Na verdade, eu não passo de um dos peões do seu vasto tabuleiro, uma das inúmeras peças que ele supõe movimentar. E movimenta.

Ele fala assim:

- Sabe, Conceição, ontem fui convidado para dar aulas na Faculdade dos Cabeçudos. Estão mortos por mim lá... Pelam-se por mim... É que eu, quando faço qualquer coisa, faço bem. Sou bom no que faço! Eu é que não tenho tempo. Veja Conceição, trabalho aqui e no Instituto Papa-Tachos e ainda faço o meu doutoramento na Universidade de Barrancos. É demais para mim. Não tenho tempo. Mas que os Cabeçudos se pelam por mim, isso é uma verdade. Tenho que pensar bem no caso, mas acho que não vou poder... O doutoramento ainda me rouba um tempito. Preciso de fazer a minha tese...

Por falar em tese, a Conceição não terá lá  por casa um trabalho sobre «Como dar aulas sem ensinar nada?» Dava-me jeito um trabalho já elaborado. Uma coisa que fosse só fotocopiar, pôr o meu nome e pronto, está feito. A Conceição não tem, não? O meu cunhado tem um textozito sobre este tema. É um tema interessante, não é? O meu cunhado defendeu, no texto dele, que já que os alunos deturpam tudo o que se lhes diz, é mais seguro não lhes ensinar nada. Temos que acautelar a nossa posição. Temos que nos segurar. Olhe, Conceição, eu já sigo esta regra de ouro há muito tempo. Por isso, acho o tema interessante... Eu queria fazer um trabalho longo, de fôlego... mas precisava de um já feito... Precisava até de vários... Então a Conceição não tem? É pena.

Ó Maria do Carmo, ainda bem que a vejo. Olhe estava mesmo a pensar em si... Eu sei que você tem computador há já algum tempo. Sei também que faz umas coisas bem feitas. Que tem jeito. Olhe, passa-me um inquérito que eu tenho lá em casa? Faça  lá isso. Você é boa pequena. Tem jeito para gráficos. Passe-me lá o trabalho. Depois pago-lhe um café, tá? Olhe, queria que utilizasse todas as cores possíveis nos gráficos. Ponha aquilo catita. Que pelo menos meta vista... Depois falo consigo, Maria do Carmo.

Pois então a Conceição não tem nenhum trabalho sobre o tema. É um tema interessante. Mas precisava de conseguir um já feito...

Vou falar com a Isaura. Boa pequena. Fez estágio há pouco, pode ser que ela tenha qualquer coisa.

(...)

E a lengalenga auto-insuflante continua. Inevitavelmente, enquanto ouço esta melopeia, recordo outra, mais ruidosa e mais feroz, aquela provocada pelo ruído do pontapé que lhe foi aplicado há um ano atrás. Relembro como, nessa altura, ecoou pela cidade uma detonação looooooooonga, com detalhes relativos à corrupção insidiosa tecida por Adão, aos favores trocados, às vantagens auferidas, aos desvios disfarçados, aos telefonemas eróticos frequentes, tudo à custa dos dinheiros públicos...

Na altura, dada a malvadez dos comentários, tenho bem presente os meus pensamentos escatológicos acerca do final da carreira de Adão. Mas hoje, comprovo que estava errada. Olhando demoradamente para a cena e arredores, acho que vou compreendendo o segredo desta fénix que não chega sequer a morrer: Adão é «primus inter pares»...

 

10 – Ficha técnica do filme O jogo de Adão.

Realizadora ilustre: Conceição.

Manipulador principal: Diego Lora.

Vice-Manipulador : Conceição.

Personagens manipuladas: Julius Pinkava, Adão, Conceição e Diego.

Troféu ganho: o silêncio de Diego

Nota importante: qualquer coincidência com a vida real é resultado de um aturado trabalho de decalque da realidade.

 


(*)Conceição Miranda,  escritora portuguesa. Mora em Penafiel.


Ir al Índice de Versiones 32