Versiones 32
Junio/Julio 2000 - Año del Dragón
Director: Diego Martínez Lora
Luís Ferro Moutinho(*):
Intruso
Deixava-se
influenciar solenemente pelo estado de espirito dos que o rodeavam.
E
desde sempre assim fora.
Não
podia sequer dizer que era como que um contágio ou uma transmissão por
simpatia.
Era
antes uma necessidade premente de se sentir integrado onde quer que estivesse,
uma solução ardilosa para não destoar ou parecer muito diferente das outras
pessoas.
Uma
tentativa para impedir que mais uma vez olhassem para ele com aquele estranho
olhar de interrogação sobre o como ou o porquê teria vindo parar àquele
lugar em particular.
Porque
desde sempre assim fora.
Onde
quer que fosse nunca parecia encaixar naquele lugar em especial.
Por
um estranho sortilégio nunca parecia acertar com a roupa indicada ou com a
postura indicada.
E
nunca decerto com o estado de espirito indicado.
Uma
vez lá, era a velha história de ter que se adaptar rapidamente ás circunstâncias,
de absorver sabiamente e com mestria uma atitude o menos diferente possível e
principalmente um comportamento, gestos e atitudes que explicassem e fizessem
parecer lógico que era perfeitamente natural o facto de ali se encontrar, mas
que por um conjunto bastante adverso de circunstâncias se encontrava ali
sozinho e parecia não conhecer absolutamente ninguém.
A
sua presença é notada desde o primeiro instante.
Destoava.
Não
encaixava.
E
é então que começa a luta.
O
processo de integração.
A
tentativa de aceitação.
O
criar da ilusão.
Lança,
por isso, alguns olhares enfadados e intervalados no tempo para o relógio.
Um
olhar algo vago e prescutante pela sala.
Para
rematar o mais convincentemente possível, um pequeno bocejo de contrariedade,
como quem espera pacientemente por alguém.
Provavelmente
até por um grupo de pessoas.
Decerto
do mais interessante que ali se encontravam.
E
cuja presença iria decerto dar uma lógica totalmente diferente á sua
aparentemente só e desintegrada permanência no local.
Até
porque se aqui estivessem, o tal grupo de amigos que tardavam a aparecer,
pessoas alegres e joviais, ele teria oportunidade de brilhar e de mostrar o
quanto era também interessante e sociável, e apagaria de vez aquela imagem errónea
de pessoa solitária, desintegrada e sem interesse que os outros pareciam
notar-lhe.
Porque
na verdade, até nem sempre assim fora.
Tempos
houve em que tivera amigos.
Em
que por vezes, nem sempre, até conseguira brilhar.
Em
que, com eles se divertira.
Em
que tivera prazer em estar com os outros e os outros tiveram prazer em estar
consigo.
Mas
isso foram outros tempos.
Agora
tinha que se contentar com o presente.
A
água nunca passa duas vezes debaixo da mesma ponte, não é?
Tinha
que seguir o seu caminho até ao mar.
Até
atingir a foz.
Até
desaguar.
Portanto
tinha que viver no presente.
Uma
rapariga do outro lado do balcão cruza consigo o olhar.
Sorri-lhe.
Lança-lhe
um olhar cúmplice, quase convidativo.
Ele
não o interpreta ao inicio.
Vira
os olhos.
Mas
ela insiste, o sorriso mais aberto, ainda mais convidativo.
Ele
sente um aperto na garganta, um nó no coração.
Os
seus olhos fitam-na, quase suplicantes.
"Não
me faças isso.
Ainda
não.
Ainda
não estou pronto.
Eu
não posso, entendes?
Desculpa,
mas não posso.
Não
estou preparado para isso.
Sei
que nada sabes sobre mim, para ti sou apenas um estranho que viste num bar e que
achaste simpático, e com quem te apetecia conversar um pouco, mas eu nem isso
posso fazer.
Não
sou capaz.
Eu
sofri muito, entendes?
Sofri
tanto, que aquilo por que passei nunca sequer o contei a ninguém.
Nem
o poderia fazer.
Se
o contasse ninguém me acreditaria.
Diriam
que era louco ou que inventava estas histórias.
Diriam
que ninguém em seu perfeito juízo se submeteria a esse tipo de coisas.
Ou
rir-se-iam de mim
Mas
não são histórias.
São
autênticas.
São
reais.
E
eu não sou louco.
O
que fiz, fi-lo por amor.
O
que deixei que me fizessem, deixei-o por amor.
E
para que não me fizessem mais mal, fugi.
E
quando fugi fi-lo porque, pura e simplesmente, já não tinha mais amor para
dar.
Tudo
secara dentro de mim.
E
só agora, passado este tempo, sinto germinar dentro de mim as primeiras
sementes.
Mas
são somente as sementes do meu amor próprio.
Como
foi o primeiro que perdi, é apenas natural que seja também o primeiro a
renascer.
Estou
agora a reaprender a gostar de mim, entendes?
Estou
a passar tempo comigo próprio.
E
não existe espaço para absolutamente mais ninguém.
Nem
sequer para uma conversa contigo ao balcão de um bar.
Eu
estou sozinho.
E
tenho que forçosamente continuar sozinho.
Para
me reencontrar e conhecer.
Posso
dizer que estou de luto.
Estou
de luto com o mundo e solidário comigo mesmo.
Coloquei
entre mim e o mundo uma redoma de vidro de maneira a proteger-me, de maneira a
que estas frágeis sementes possam germinar sem que as afectem o vento e as
geadas das desilusões e das contrariedades das relações humanas.
Está
ainda longe o tempo em que elas se transformarão numa árvore viçosa, e em que
do topo do seu tronco alto e forte os seus ramos e as suas folhas se estenderão
ao céu de maneira a enlaçar os ramos e as folhas de uma outra árvore.
Só
o facto de estar aqui já é um progresso.
Há
algum tempo atrás nem isso era possível.
Mas
não posso acelerar este processo.
É
vital que ele se desenrole por si mesmo.
Obrigado
amiga, e desculpa-me.
Obrigado
pela tua atenção.
Para
ti foi uma coisa ínfima.
Um
olhar e um sorriso.
Um
convite para um copo.
Para
mim foi uma benção.
E
desculpa-me pela minha fraqueza."
O
jovem do bar aproxima-se diligente.
Traz
uma cerveja na mão e pousa-a á sua frente.
Ao
fazê-lo inclina-se ligeiramente sobre ele e sussurra sorridente.
"-Estás
distraído, mano?
A
miúda ao fundo do bar está a manjar-te há algum tempo.
Atira-lhe
o anzol."
Levantou
os olhos para ele, impotente.
Era
tão visível a sua impotência, que não teve que dizer mais nada.
O
empregado pareceu compreender.
"-Ah!
Estás á espera de outra, não é?
Bateu-lhe
com a mão no ombro em solidariedade, e resmungou.
"-Isto
é sempre assim, mano.
Se
vimos sozinhos elas não nos ligam nenhuma.
Se
vimos acompanhados com outra, então olham todas e não nos largam.
Se
estamos sozinhos mas á espera de outra, elas parece que adivinham e lançam-nos
a corda.
Vamos
lá entender isto."
E
afastou-se ainda a filosofar sobre o sexto sentido feminino.
Ele
ficou de novo sozinho.
Olhou
para o relógio.
Aproximava-se
a hora de se ir embora.
Tinha
que jogar com o tempo.
Ficava
no local o tempo suficiente para não poder ser acusado de não dar aos seus
amigos, os tais que demoravam a chegar, um tempo de tolerância para um atraso
decerto perfeitamente justificado por um daqueles imprevistos que acontecem.
Quem
sabe até um mal-entendido na combinação do dia e da hora.
Ou
até, embora menos provável, um esquecimento.
Mas
amigos são amigos, e aos amigos perdoa-se tudo.
Até
um atraso muito prolongado ou o facto de poderem porventura até nem aparecer.
Qualquer
um dos outros presentes poderá compreender isso, até porque é normal que isto
aconteça, e alguns terão já passado por situações semelhantes.
Acontece.
Só
não acontece a quem não tem amigos.
Mas
agora tem que preparar a retirada.
Porque
também há limites para tudo.
Sozinho,
que estava ele ali a fazer?
Nada,
evidentemente.
Mas
tem que ser convincente.
O
que para ele até não é difícil.
A
perfeição alcança-se com a prática.
A
necessidade aguça o engenho.
Distribui
aos olhares mais atentos e inquisidores uma ligeira sensação de impaciência.
De
que se calhar já não vale a pena esperar mais.
Acompanha
de algumas consultas mais frequentes ao relógio, intervaladas por alguns
olhares de resignação.
Há
dias assim.
Em
que mais vale não sair de casa.
Levanta-se
enfim, simulando enfado.
Está
perfeitamente consciente de alguns olhares que o acompanham.
De
solidariedade para com a sua pouca sorte, acredita.
Pelo
menos para isso se esforçou.
Dirige-se
lentamente para a porta, com andar seguro, tentando não ruborizar.
Perfeitamente
bem vestido e integrado, se porventura este sitio fosse igual àquele outro, último,
onde tinha estado.
Se
cá voltar um dia, estará decerto melhor preparado.
Já
cá fora, esboça um sorriso triste e suspira de alivio.
Mais
uma noite se tinha passado.
Isto
é, sem estar fechado em casa e sozinho, evidentemente.
Porque
a solidão só pode conduzir a duas coisas.
Ou
leva ao conhecimento.
Ou
leva á loucura.
Mas
agora podia voltar para casa, já não estava só.
Levava
consigo algo de todas as pessoas presentes.
Nenhuma
suspeitara sequer da importância que tiveram para si.
Cada
uma tinha sido, com a sua presença, a companhia que precisava.
Com
ele tinham dialogado nas conversas que travaram entre si.
Em
si tinham confiado as confidências que trocaram.
A
cumplicidade deles era também a sua.
As
experiências deles eram também as suas.
"Obrigado,
companheiros,
obrigado,
obrigado
por tudo,
obrigado
por se rirem,
obrigado
por falarem,
obrigado
por respirarem,
obrigado
por existirem.
Ver-vos
convence-me de que não estou cego.
Ouvir-vos
convence-me de que não estou surdo.
As
poucas palavras que digo convencem-me de que não estou mudo.
Saber-vos
vivos convence-me de que ainda não estou morto."
Valera
a pena.
Valeram
a pena todos os olhares.
Valeram
a pena todos os comentários.
Trocava
a sensação de incomodidade que alguns o faziam sentir, pelo simples prazer de
estar no meio deles.
Pela
sensação de não estar sozinho no mundo.
Por
fazer parte da manada.
Por
voltar a caminhar em matilha.
Sim,
já podia voltar para casa.
Já
não estava só.
A
noite estava fria.
Era
o único a andar na rua àquela hora, mas sentia-se bem disposto.
Começou
a assobiar baixinho uma melodia de que se lembrava de há muitos anos atrás.
Um
raro momento de felicidade.
Um
passo atrás na longa caminhada para a loucura.
(*)Luís Ferro Moutinho, escritor portugués. Mora no Porto.