Versiones 32
Junio/Julio 2000 - Año del Dragón
Director: Diego Martínez Lora
Luís Ferro Moutinho(*):
Vergonha?
VERGONHA
?
Hoje
li um artigo no jornal que me impressionou.
Mais
do que me impressionar, abalou a minha fé.
O
seu conteúdo era tão absurdo que me pareceu inconcebível.
Confesso
que o li duas ou três vezes, até acreditar que não me tinha enganado.
Até
nem era um artigo de destaque.
Estava
atirado para as últimas páginas, com todo o aspecto, temo dize-lo, daqueles
artigos que só são impressos quando é preciso preencher um qualquer espaço
em branco.
Mas
felizmente o branco surgiu.
E
o artigo foi impresso.
Falava
de uma cimeira religiosa, apoiada pela ONU, cujo teor passa por uma contribuição
para a paz no Mundo e para tentar reduzir as tensões religiosas que alimentam
conflitos armados nos Balcâs, no Médio- Oriente ou na Indonésia, e onde vão
estar presentes mais de 1.000 representantes de várias religiões.
Vão
assim estar presentes representantes das religiões bahai, budista, cristã,
confuciana, hindú, muçulmana, judia, sintoísta, sikh, taoista e zoroastriana.
E
a seguir rematava que, por imposição da China, tinha sido excluído da Cimeira
o Dalai-Lama, uma vez que este pais recusou que pudesse ser evocada, durante a
Cimeira, a questão do Tibete.
Como
já disse, no inicio não acreditei.
Depois
voltei a ler o artigo.
E
depois outra vez.
E
no final apoderou-se de mim algo muito mais profundo que um sentimento de
revolta.
Na
minha mente havia apenas espaço para uma única palavra, que parecia repetir-se
a si própria vezes e vezes sem conta:
Vergonha.
Consultei
o dicionário para me aperceber de todos os significados da palavra
"vergonha", e vi que podia significar "receio de desonra",
"pudor", "pejo", "algo indecoroso", mas nenhum
deles me pareceu satisfazer, nenhum preenchia por completo o vazio que o meu
coração sentia.
Nenhum
me parecia, enfim, suficientemente forte.
E
li de novo o artigo.
A
procurar significados novos para ela.
Não
ia estar presente o Dalai-Lama?
O
Dalai-Lama, ou melhor Tenzin Gyatso, é o 14º de uma linhagem de mestres
espirituais que há cerca de três séculos governam o Tibete.
É
uma das mais extraordinárias personalidades do nosso tempo, com uma inteligência
viva e um espirito brilhante, um líder espiritual universalmente respeitado e
venerado por milhões de crentes em todo o mundo, representando para os Budistas
a reincarnação do Buda da compaixão, defensor incondicional e porta-voz de
uma filosofia de não-violência e amor pelo próximo, convidado anualmente para
um sem número de colóquios e de conferências, é autor de vários livros,
trabalhando incansavelmente pela paz no Mundo. Em 1989 , e pelo seu notável
contributo, foi-lhe atribuído o Prémio Nobel da Paz.
Lembro-me
que em 1999, Albert Einstein foi eleito, e muito justamente, pela revista Times
como a "Personalidade do Século XX".
De
facto, ainda hoje estamos longe de entender, na totalidade, a verdadeira importância
do seu trabalho.
Não
me recordo se houve ou não um segundo classificado, mas se houvesse, o meu voto
iria, sem sombra de dúvidas, para Tenzin Gyatso.
Que
nos surpreende ainda, multifacetando o seu génio e criatividade por vários
ramos do conhecimento desde a Biologia, á Astronomia e á Física Quântica.
E
não ia estar presente nesta Cimeira?
Em
que o assunto é precisamente a paz mundial?
Por
imposição de um Pais onde são constantemente violados os Direitos Humanos?
Em
que iam estar presentes mil, repito, MIL congressistas, e não havia lugar para
o Dalai-Lama?
Ele
que é, a seguir ao Papa, o mais conhecido líder espiritual da actualidade?
Em
que a sua simples presença bastaria, por si só, para dar ao evento uma grande
cobertura mediática?
Ao
contrário da esmagadora maioria dos outros congressistas, que são quase todos
ilustres desconhecidos.
E,
se calhar, não será essa a intenção?
Diminuir
ao mínimo possível a visibilidade desta Cimeira?
Porque
vivemos num Mundo onde, o que não passa na televisão, as pessoas não sabem.
Em
que o que não é noticiado, pura e simplesmente não existe.
Vergonha?
E
o Tibete?
Porque
se assustaria tanto o Grande Gigante Asiático com a questão do Tibete?
O
Tibete é uma nação unificada e independente há cerca de dois mil anos, com
uma área cinco vezes maior que a França, ocupada militarmente e anexada pela
China em 1951, e cuja ocupação dura até hoje.
Desde
essa altura tem-se verificado uma progressiva e planeada destruição de todo um
povo e da sua cultura, hoje em dia ameaçados de extinção.
A
justificação é simples, a mesma de todos os ditadores, ou seja, apesar da sua
história milenar, os Chineses conseguiram vislumbrar que o Tibete era, na
realidade, apenas mais uma província da China.
Dai
até á ocupação, foi um passo.
Com
a mesma lucidez aliás tida por Suharto no caso de Timor-Leste e por Saddam
Hussaim no caso do Kowait. Haverá
editado algures um "Manual Prático para Ditadores"?
Vergonha?
Embora
claro, para os dignos sucessores de Mao Tsé-tung a ocupação do Tibete tenha
sido na realidade a "libertação do Tibete".
E
digo sucessores, porque se sucedem dinásticamente uns aos outros no exercício
do poder.
Em
suma, tudo não passou de um regresso auspicioso e pacifico do Tibete á Terra-Mãe.
Porque
apesar de ser o último grande feudo do Marxismo, com um partido único, duro e
monolítico, onde quase um bilhão de pessoas vive no limiar da pobreza e da
escravatura humana, na China respira-se um ambiente de paz e não existe
qualquer movimento de contestação ao regime.
Aliás,
desde os jovens esmagados por tanques em Tia-Na-men, até aos lideres estudantis
executados na forca, na China tudo é pacifico.
Vergonha?
Mais
adiante o artigo, á laia de reserva moral, adiantava que os Estados Unidos já
se tinham levantado contra esta exclusão e emitido o seu protesto por esta
situação.
Nessa
altura assolou-me uma dúvida legitima.
Teria,
sem que eu o soubesse, a sede da ONU mudado recentemente as suas instalações
para Pequim?
Consultei
imediatamente a última enciclopédia que possuía.
Mas
não, ali continuava ela, em Nova York, em pleno coração do pais do Tio Sam.
Felizmente
que os Estados Unidos, país paladino da liberdade e dos valores morais, nos
proporcionaram mais uma reconfortante e inolvidável lição de Vida.
Fiquei
assim a saber que, quando o meu vizinho me quiser proibir de receber os meus
amigos, na minha própria casa, a mim me restará sempre o sacrossanto direito
de protestar.
Vergonha?
E
o que dizer da ONU?
A
ONU, organização criada para salvaguardar a paz e segurança internacional e
instituir uma cooperação económica, social e cultural entre as Nações, com
a sua habitual determinação e coragem na defesa dos direitos humanos veio,
através do seu Secretário-Geral Kofi Annan, afirmar que "teria sido
preferível que toda a gente estivesse lá".
Manifestamente
"embaraçado por esta polémica", o representante da ONU explicou que
o facto do Dalai-Lama não ter sido convidado se deveu á "sensibilidade de
alguns dos Estados membros".
Vergonha?
Mas
depois Kofi Annan apressou-se a explicar que esta Cimeira era da iniciativa de
"uma organização não-governamental" e que apenas pedira para
utilizar as instalações da ONU, isto é a grande sala da Assembleia Geral,
para o evento.
Curiosos
os jogos de poder, em que um dos "Estados membros" da ONU consegue
impor a sua vontade tirânica a uma "organização não-governamental"
que pugna pela paz mundial, em plena sede da Organização que é suposto velar
pela liberdade de todos nós, e em pleno território do "AmericanDream"
e do "Land-of-the-Free".
Vergonha?
Mas
o Sr. Secretário-Geral da ONU rematava com uma nota de optimismo,
regozijando-se com a abertura demonstrada já que, ainda assim, iriam estar
presentes na Cimeira "alguns enviados do Dalai-Lama", o que qualificou
de "progressos".
Vergonha?
Na
verdade esta é uma abertura que vejo com algumas reticências.
As
mesmas reticências com que vi a visita do meu Presidente á China alguns meses
atrás.
Confesso
que foi com grande desgosto que assisti a isso.
Ainda
por cima o mesmo Presidente que, pouco tempo antes, tinha recusado receber no
seu próprio Pais, fazendo disso estandarte, o líder da UNITA, alegando que
esse movimento não respeitava as regras de um regime democrático.
Sem
discussão, embora esse movimento ainda tenha do seu lado uma parte da população
Angolana e do outro lado exista um governo que se perpetua a si mesmo no poder,
por decisão legislativa da sua própria maioria parlamentar.
Mas
o argumento do meu Presidente era incontestável: a abertura que a China queria
mostrar ao Ocidente.
E
de facto a China tinha acabado de, com infinita generosidade, concedido em
comutar a sentença de alguns jovens lideres estudantis contestatários ao
regime, de pena de morte para prisão perpétua.
E
o facto de um jovem de 22 anos ir passar o resto da sua vida atrás das grades
por defender a Liberdade, pareceu de alguma maneira satisfazer e tranquilizar o
meu Presidente, que já viu nisso abertura suficiente.
Vergonha?
Talvez
esquecido que ele próprio foi jovem, e lutou pela Liberdade, e esteve preso.
E
que porventura, alguns de nós se orgulham desse seu passado de combatente pela
Liberdade.
E
assim sendo, esquecido de tudo isso, saudou efusivamente, um por um, todos os
lideres Chineses, apertando calorosamente as suas mãos ensanguentadas com o
sangue de jovens inocentes.
Vergonha?
E
assim aos poucos fui construindo o meu próprio dicionário de sinónimos e de
significados para a palavra "vergonha".
Vergonha
é o Opressor ter o poder para conseguir silenciar o Oprimido.
Vergonha
é nós acreditarmos que ele tem o Poder para fazer isso.
Vergonha
é não lhe mostrarmos que já não acreditamos que ele tem esse Poder.
Vergonha
é tentar desculpar aquilo que não tem desculpa.
Vergonha
é tentar justificar o que não tem justificação.
Vergonha
é tentar consolar a família da vitima recordando-lhe o prémio a receber do
seguro.
Vergonha
é seleccionarmos os assassinos com quem nos relacionamos.
Vergonha
é votarmos ao ostracismo o assassino que está na Oposição e apertarmos a mão
ao assassino que está no Poder.
Vergonha
é termos ter-mos sempre as melhores razões e as melhores intenções para o
fazer.
Vergonha
é não assumirmos em pleno as nossas responsabilidades.
Vergonha
á escondermo-nos por detrás das acções dos outros.
Vergonha
é não acreditarmos que podemos fazer algo para mudar isso.
Vergonha
é assistirmos impassíveis.
Vergonha
é acreditarmos que somos impotentes.
Vergonha
é não fazer absolutamente nada, ainda que seja pegar numa caneta e escrever.
Vergonha
é o que eu senti ao ler este artigo.
Vergonha
é, sentirmo-nos envergonhados por sentir vergonha.
Vergonha
é, não nos sentirmos envergonhados por não sentirmos vergonha.
A
mesma vergonha que não senti quando assisti a muitas outras injustiças.
Á
situação desesperada do povo Mexicano, que se vê obrigado a mendigar por uma
gorjeta para conseguir subsistir, perante a desresponsabilização e alheamento
do seu Governo que atirou essa obrigação para cima dos turistas, instituindo
uma gorjeta obrigatória para todos os serviços, desde comprar uma camisa até
pedir um copo de água.
Ao
contraste extremo da realidade Brasileira, onde separados por poucos metros
convivem a mais luxuriante riqueza e a mais degradante pobreza.
Á
mais inimaginável falta de recursos do povo Cubano, ao qual tirando a Saúde e
Educação, falta absolutamente tudo, e ainda assim nos comovem com a sua
contagiante força e alegria de viver.
A
mesma alegria e hospitalidade que tem o povo da República Dominicana, e que não
conseguimos explicar depois de, incrédulos, assistirmos com os nossos próprios
olhos ás condições em que vivem, ou devo dizer, sobrevivem.
Mas
na altura tudo isso foi visto através dos olhos românticos e idílicos de um
turista, mais preocupado com o gozo pleno das suas férias e com o seu próprio
bem estar.
Sem
tempo para sentir vergonha.
Vergonha?
(*)Luís Ferro Moutinho, escritor portugués. Mora no Porto.