Versiones 33

Agosto - Setiembre 2000 - Año del Dragón

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Director: Diego Martínez Lora


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Paulo Vicente Salvador:

Maldivas, outras pérolas do mar(*)


Maldivas, outras pérolas do mar

Na maneira comum de olhar sobre os países, este é quase nada, apenas destroços minúsculos de aglomerados de areia atirados aos punhados pelo Oceano Índico, longe de todo o resto do mundo, feridos pelo mar e pelo vento sempre omnipresentes.

A própria distinção entre mar e terra, tão intuitivamente óbvia para nós habitantes de massas continentais, exige aqui definição e método. Ilha é todo o espaço que apresenta vegetação, arbustos verdes viçosos ou belas palmeiras langorosas. Na prática, o número de ilhas depende da estação do ano, da altura da maré, da direcção das correntes, dos padrões de erosão e dos estragos causados pelo último furacão. É sabido que se o efeito estufa provocar um aumento do nível das águas do mar de 1,5 m,  toda a nação será engolida pela imensa massa líquida do Oceano. Bem, mas isso são conjunturas sobre um futuro sempre imprevisível e que não cabe nos limites apertados deste texto. O presente já chega para nos fazer admirar a natureza singular desta pequena nação.

Neste ano de Jesus Cristo de 2000 há oficialmente 1190 ilhas - e destas só cerca de 200 são habitadas, das quais cerca de 60 por hotéis-ilhas turísticas- quase todas constituídas por areia. A geografia estilhaçada do arquipélago permite ao Estado proceder a um bem sucedido e desapercebido "apartheid": nas ilhas onde há turistas não há povoações maldivianas e vice-versa e o contacto entre estes dois mundos é cuidadosamente planeado. Evidentemente, os locais trabalham nas ilhas-hotéis mas fazem-no com uma atitude que se semelha à da Emigração: um sítio estranho onde se passa uma temporada para melhorar a sua situação económica antes de voltarem ao lar, numa aldeia pobre numa ilha desconhecida. São gente simpática, humilde e tranquila, de pele escura indiana mas de feições caucasianas, baixos e de movimentos lentos, que falam um dialecto derivado do singalês, o "dhivehi" e professam a religião muçulmana. Inesperadamente para uma cultura islâmica, encontram-se também mulheres locais a trabalhar nos hotéis.

O milhar de ilhas das Maldivas encontra-se espalhado por uma superfície do tamanho de Portugal (90 000 km2), mas no seu conjunto tem uma superfície emersa de apenas 298 km2. Cada ilha tem portanto em média 0,25 km2 - ou seja, é um quadrado de 500 metros de lado, nada realmente capaz de cansar o mais preguiçoso dos caminhantes. E com um cálculo simples descobrimos que só 0,3% da área ocupada pelas Maldivas está emersa. E o imenso resto é mar, um mar maravilhoso, quente, excessivo de vida e de infinitas matizes de azul, transparente, mas, atenção, um mar caprichoso também - como o são todos os mares - com um poder imenso para trazer a vida e a morte ao arquipélago.

De facto, o mar ocupa nas Maldivas uma predominância impossível de encontrar em qualquer outro lugar. A sua linha horizontal está sempre presente, com maior ou menor intensidade, em todos os episódios da vida local. Toda as actividades tradicionais do arquipélago estão relacionadas com o mar. O peixe é a dieta básica do maldiviano, substituindo-se ao pão. Durante muito tempo, as conchas (utilizadas como moeda de troca pelos comerciantes muçulmanos do Índico) e as pérolas permitiram sustentar o sultanato de Malé - as Maldivas são um dos Estados mais antigos do mundo, remontando à Idade Média. O mergulho pelas pérolas ocupa um lugar importante no ritual de crescimento dos rapazes : desconhecedores da manobra de Valsalva, era requisito para se tornar um adulto a primeira hemorragia dos ouvidos dos jovens mergulhadores.

E é o mar também que, conjuntamente com os ventos e chuvas das monções - há duas monções, a de Sudoeste de Maio a Novembro e a de Nordeste de Dezembro a Abril- traz os ciclos, as mudanças, as histórias, o sentido da vida até, a esses quotidianos locais de outro modo infinitamente monótonos. Definitivamente, para conhecer as Maldivas é preciso ir ter com essa imensa massa líquida que sem descanso se enrola languidamente na bela areia branca das suas praias-ilhas.

É fascinante tentar apreender um mundo assim tão dependente do mar.

A primeira certeza de que se está em presença de um mar excepcional surge a bordo do hidroavião, que voando a uma altitude de 100 metros, permite uma observação nítida e cambiante deste país líquido. Surgem, bem visíveis desse ponto de observação privilegiado, estranhos anéis submarinos - onde por vezes uma ou duas sempre minúsculas ilhas se encavalitam - próximos uns dos outros num agregado único, como uma galáxia de estrelas, e depois de cruzar o profundo Oceano Índico outros anéis concêntricos num novo agregado único. Por um momento sonhamos que viajamos no espaço sideral a uma velocidade estonteante, saltando galáxias, talvez de Andrómeda para Cassiopeia (no momento a seguir admiramo-nos como ainda conseguimos sonhar neste mundo de realidades duras e, apesar do cansaço, os sorrisos desenham-se sem esforço nos rostos - bem aventurados são os viajantes que podem descobrir estas maravilhas). E são isto as Maldivas, agregados de anéis com ilhotas encavalitadas separados de outros agregados de anéis com ilhotas encavalitadas por o azul profundo do Índico.

Estes estranhos anéis submarinos são atóis e são aliás muito comuns ao longo das latitudes tropicais ("atol" é aliás a única palavra "dhivehi" que passou para o vocabulário internacional). Estes anéis são constituídos por formações calcárias feitas pelo trabalho milenar de inúmeros pólipos de coral. Sabe-se que os atóis resultam do colapso de ilhas vulcânicas devido à erosão do vento ou do mar e ao mesmo tempo que esse processo se desenrola, os recifes de coral que envolvem a ilha vão-se desenvolvendo à profundidade óptima para os pólipos (até aos 15 metros) - esta interpretação, que se provou correcta, deve-se ao mesmo Charles Darwin da "Selecção Natural". Assim, enquanto o centro mergulha no Oceano, o antigo recife que o rodeava cresce e o atol vai-se formando. Um atol é portanto basicamente um planalto de basalto rodeado por um anel calcário. O recife do anel é geralmente uma parede vertical e uniforme que mergulha até aos 50 metros do lado do mar ou até aos 30 metros do lado da laguna (a parte do atol onde ficava a antiga ilha que colapsou). Não é no entanto uma estrutura uniforme, como o descobriremos mais tarde. Quase todos os atóis tem "kandus", descontinuidades na parede por onde o mar penetra na laguna e onde a exuberância da vida assume ainda maiores proporções. E há ainda as famosas "thilas", formações de coral que não fazem parte da parede do anel, montes submarinos que se aprestam à circum-navegação, destinos preferidos pelos mergulhadores. Também descobriremos mais tarde que há mais vida no recife do lado oriental que no do ocidental porque mais protegido da violência do mar.

Os atóis são, de certa forma, estruturas vivas. São sustentados pelo mais fértil ecosistema terrestre, o recife de coral. É um privilégio poder por alguns momentos mergulhar e partilhar o recife com tal imensidão de vida concentrada neste pequeno pedaço de mar, desde o invisível pólipo de coral em simbiose com uma alga microscópica dentro do seu buraco calcário até aos grandes animais pelágicos que sempre rodeiam o recife como o tubarão-martelo, passando por toda a cadeia alimentar de infinitos elos e infinitas combinações que separam estes dois extremos num caleidoscópio de estruturas, formas, cores, hábitos, movimentos e surpresas incapaz de caber na imaginação mais prodigiosa.

O mar atinge, nas Maldivas, o seu esplendor.

 

Senhora da Hora, Outubro de 2000


(*)Paulo Vicente Salvador, engenheiro, escritor e executivo portugués. Mora na Senhora da Hora, 


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