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Octubre/Noviembre 2000 - Año del Dragón

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Director: Diego Martínez Lora


la aventura de compartir la vida, las lecturas, la expresión...


 

Luís Ferro Moutinho(*):
...Uma outra história de amor: Un estudo


            A princesa era jovem e bela, combinando em si mesma, e na perfeição, uma mistura explosiva ao aparentar ser simultaneamente sexy e inocente. Quando falava ou aparecia em publico atraia para si todos os olhares e todas as atenções. Ninguém conseguia permanecer indiferente ao seu charme ou á sua beleza, e a sua presença em qualquer lugar ou acontecimento nunca passava despercebida a quem lá se encontrava. Para os efeitos deste estudo vamos tratá-la simplesmente por Eva.

            O príncipe não era assim tão jovem. Para dizer a verdade também não era assim tão belo. Fleumático e cinzentão, a sua aparência nada tinha nem de sexy nem de inocente, situando-se antes num indefinido e etéreo meio termo entre o austero e o convencional. A sua presença em qualquer acontecimento passaria aliás perfeitamente despercebida se não fosse pela importância do alto cargo que ocupava na nação, e que o retirava do anonimato da multidão em que estaria destinado a vogar se não tivesse a correr dentro das suas veias o sangue azul e real que desde há muitas gerações governava o seu pais. Para os efeitos deste estudo vamos chamar-lhe simplesmente Adão.

            A princesa não tinha nascido realmente princesa. Aliás, nunca essa ideia lhe tinha alguma vez passado pela cabeça. Conhecia o príncipe, que costumava frequentar a sua casa como amigo da família, desde criança e tinha dele a ideia dourada que todas as adolescentes têm sobre um príncipe encantado que virá para as desposar montado num belo cavalo branco, e só o facto de o então jovem herdeiro lhe dedicar alguma pouca atenção era para ela fonte de grande  alegria e de excitação.

            O príncipe recorda-se perfeitamente da surpresa que sentiu quando a menina alegre e brincalhona que conhecera, com quem brincara prazenteiramente quando era ainda um jovem cadete da marinha, e que não vira durante todos aqueles anos em que tinha cumprido o serviço militar no estrangeiro, se tinha transformado numa rapariga bonita e sensual.

            Eva não cabia em si de contente e felicidade. O príncipe, o SEU PRÍNCIPE, tinha olhado para ela, olhado realmente para ela, como uma mulher e não como uma criança. Tinha-a, a muito custo e depois de várias hesitações, convidado timidamente para sair, e ela tinha aceite imediatamente quase não o deixando acabar o complicado discurso que ele tinha usado para o efeito.

            Adão também não cabia em si de contente. Tudo na sua vida se tinha transformado como num sonho. A sua jovem mulher era a coqueluche de toda a nação e larga multidões de pessoas acotovelavam-se para a verem, para a saudarem, para lhe oferecerem flores. Ele sentia-se orgulhoso da euforia que a beleza e juventude de Eva provocavam entre os seus súbditos. O reino delirava de alegria e satisfação pelo casamento de conto de fadas a que assistia embevecido. E Adão sentia-se, acima de tudo, entusiasmado pelos sentimentos que tinha conseguido provocar naquela jovem tão bela e tão terna, tão humana e aparentemente tão perfeita.

            Entretanto o fascínio das pessoas e dos media por Eva crescia em catadupa. Elegante e fotogénica, era perseguida pelos fotógrafos em todo o lado e a todas as horas do dia, incluindo na privacidade da sua casa. Não havia qualquer separação entre a sua vida privada e a sua vida pública. Eva nunca tinha sonhado sequer com tamanha popularidade e mediatismo, e sentia-se até algo intimidada e assustada com o assédio e o interesse desmedido que as pessoas tinham por si. No entanto adorava ver a sua fotografia publicada em todos os jornais e revistas, e gostava de ler os comentários elogiosos a seu respeito.

            Adão, por seu turno, era um homem culto e educado, curioso por natureza, interessado pelo mundo que o rodeava, que lia muito e que estudava a fundo vários assuntos, e diversificava o seu interesse e a sua sede de conhecimentos pelas mais diversas áreas. Embora educado para ser uma estrela, sentia-se muito melhor nos bastidores do espectáculo.

            Já Eva não era nada assim. Provida, é certo, de grande sensibilidade e compaixão, os seus interesses imediatos eram bem mais fúteis e mundanos, não partilhando quase nenhum dos interesses e preocupações culturais do marido. Gostava do esplendor e do luxo, e era uma materialista por excelência, adaptando-se na perfeição a uma vida de estrela de cinema.

            Adão gostava de conversar longamente, trocar ideias e pontos de vista, partilhar conhecimentos, mas não encontrava em Eva uma interlocutora á altura, já que por falta de interesse ou por falta de bagagem cultural, ela se mostrava sempre indisponível. Bela, sexy e com grande sentido de humor, Eva seria seguramente uma excelente companhia para alguns encontros ocasionais e fortuitos, mas não seria nunca uma opção válida quando se escolhe alguém para compartilhar connosco o resto da vida. Mas disso, e talvez pelo pouco tempo de namoro e noivado que tiveram, Adão só se apercebeu muito mais tarde.

            Após os primeiros tempos de casamento, no entanto, os padrões de comportamento de Eva começaram a mudar radicalmente. Ela alternava períodos de grande estabilidade emocional com outros de constantes crises de choro e de bruscas alterações de humor, de uma forma perfeitamente repentina e inesperada. Ao principio estes problemas foram atribuídos ao stress da vida pública e á bulimia de que a princesa sofria, mas ao fim de seis meses era já evidente para todos de que algo de muito mais grave se passava, e o próprio Adão não conseguia esconder a sua preocupação pela saúde mental da sua mulher.

            Preocupada com este facto, a própria rainha convocou ao palácio todos os editores de todos os jornais, pedindo-lhes que respeitassem, acima de tudo, a privacidade da princesa. A mensagem ficou clara para todos: “este assunto é tabu”. O assunto nunca foi levantado.

            Adão era essencialmente um homem muito ocupado. Era o representante da sua mãe, a rainha, em muitas ocasiões e além disso era chefe de vários regimentos militares e era o presidente e patrono de outras tantas organizações. Alimentava além disso alguns hobbies como o pólo e a caça. Era por isso um homem sem muito tempo, quer para si próprio quer para a sua família, e precisava ao seu lado de uma mulher que o pudesse compreender e amar dessa maneira, alguém que, ou por ser tão ocupada como ele, ou por ter confiança nele e em si própria, não se sentisse diminuída á sua beira.

            Mas Eva tinha ciúmes de tudo e de todos. Tinha ciúmes da família de Adão, dos amigos de Adão, e do trabalho de Adão. Queria-o só e unicamente para si, a todo o tempo e a toda a hora. Desconfiada e insegura, vigiava-o e atribuía-lhe responsabilidades por tudo o que ela entendia que não corria bem na vida e na relação deles.

            Sendo um solitário por natureza, Adão necessitava por isso de alguns momentos sozinho consigo próprio, que utilizava para fazer uma introspecção pessoal e também para recarregar as suas baterias. Tinha apesar disso um grande núcleo de amigos, que tinham um papel muito importante na sua vida, e aos quais ele dava grande valor e apreço, escutando as suas opiniões com muita  atenção. Como tinha casado tarde, os seus amigos faziam parte integrante do seu núcleo central de afectos, e Adão nunca pensou que poderia vir a perde-los, ou que o casamento pudesse de alguma maneira alterar fosse o que fosse na sua rotina. Acreditava piamente que Eva gostava dos seus amigos tanto como ele, pelo menos assim o parecia, e imaginou que a única coisa que mudaria era que ao invés de vir a estar sozinho com eles, no futuro estariam ambos com eles.

            Com o tempo porém, Eva passou a revelar que afinal não gostava assim tanto dos amigos do marido, e muito menos confiava neles. Perante a surpresa e a incredulidade de Adão acusou-os de serem desleais e pouco honestos, de não gostarem dela, de a tentarem ridicularizar, e de fazerem todos os possíveis para se meterem no meio deles. Ciumenta como era afastou-os um a um, tratando-os de uma forma fria e hostil, e tentou que Adão fizesse exactamente o mesmo.

            Os amigos de Adão tinham por ele uma grande estima pessoal e intelectual, alicerçada em anos e anos de convívio e de muito bom relacionamento. Alguns deles de facto não nutriam por Eva uma grande simpatia, e outros não gostavam mesmo dela. Achavam que ela não era a mulher que Adão precisava para ser sua companheira e para o fazer feliz. No entanto respeitaram a sua decisão, e muitos esforçaram-se mesmo por tentar integrar a princesa no seu núcleo de amigos, mas foram barrados pela sua intransigência e obstinação. Aos poucos foram percebendo que a sua presença não era desejada, e Eva tinha uma maneira muito especial e desagradável de lhes demonstrar que de facto assim era. Aperceberam-se facilmente de que Adão tinha sido completamente ultrapassado pela situação, e que a presença deles só contribuía para lhe criar maiores problemas a ele, e aumentar o clima de mau estar e de permanente clivagem em que viviam. Pese embora todo o carinho que tinham por ele, afastaram-se discretamente para não serem eles o pomo de discórdia entre ele e Eva.

            Adão era de todos o mais surpreendido. A mulher autoritária, ciumenta e possessiva que tinha diante de si, em nada se parecia com a jovem terna e afectuosa com que se tinha casado há tão pouco tempo. Optimista e apaixonado, atribuiu á juventude e imaturidade da mulher algumas das suas atitudes bruscas e irreflectidas, e pensou que com o tempo e com a confiança que o amor dele lhe daria, Eva iria compreender que de facto conviver e falar com outras pessoas para além dela, era tão indispensável para ele como comer ou respirar. Esperançado nesta hipótese, e para agradar á mulher que queria ver feliz, Adão não só se afastou dos seus companheiros de sempre, como até do núcleo duro dos seus amigos íntimos. Para a satisfazer completamente e com o coração despedaçado, Adão separou-se inclusivamente do mais fiel e antigo de todos os seus amigos, um cão labrador que Eva detestava sem nenhuma razão aparente, ou talvez por representar, também ele, uma ligação ao passado que ela não conseguia suportar.

            Eva porém nunca parecia satisfeita. A cada exigência que lhe era satisfeita, ela subia gradualmente o nível da fasquia. As vitórias que conseguia atribuía-as á sua própria força e personalidade. As cedências que Adão lhe fazia, atribuía-as á fraqueza dele. Não se apercebia que Adão recuava estrategicamente apenas para lhe dar tempo a que ela pudesse mudar o seu comportamento, compreender que não estava a agir correctamente com ele, e assim sendo ela pensava que o tinha sob o seu completo domínio e que seria apenas uma questão de tempo até o seu controle ser total e definitivo.

            Adão sempre pensou que com o tempo lhe conseguiria fazer entender que o afecto e carinho que sentia por outras pessoas em nada interferia com o amor que sentia por ela. Muitas vezes lhe tentou explicar que o amor não era algo que pudesse ser medido aos quilos como se fosse fruta, nem sequer quantificado como sendo algo de finito. Ela parecia não querer entender que os afectos são infinitos e que portanto, e ao contrário do que ela julgava, ele não tinha apenas 10 quilos de amor para distribuir por todos, e que portanto se desse 1 quilo que fosse á totalidade das outras pessoas que o rodeavam, não ficariam apenas os outros 9 quilos para lhe dar a ela.

            Eva no entanto via as coisas de uma maneira um pouco diferente. Não acreditava nada nessas histórias de partilhar afectos que Adão inventava para a enganar. Ela sabia perfeitamente que só haviam 10 quilos, e para ela só haviam portanto duas alternativas: ou tinha os 10 quilos todos para ela, ou então não queria nenhum.

            Ao longo do casamento, Eva foi vista por muitos médicos e psiquiatras, e quase todos chegaram á conclusão de que nada poderiam fazer para a ajudar. Ela sofria de sérios distúrbios de personalidade, motivados pela sua própria fraca auto-estima e consequente dificuldade de relacionamento com as outras pessoas. Os seus gritos, histerias e comentários sarcásticos tornaram-se conhecidos e temidos por todo o palácio, e era evidente para todos os que os rodeavam que Adão era tão vitima destas cenas como qualquer um dos seus empregados.

Habituado a lidar com pessoas calmas e equilibradas, Adão sentia-se completamente perdido e confundido no meio das tormentas e ciclones criados pela histeria e descontrole de Eva. Necessitava acima de tudo de estabilidade, e não suportava as oscilações diárias e ás vezes horárias de Eva, que viravam do avesso todo o seu mundo, habitualmente tão tranquilo. No entanto, preocupado pela saúde mental da mulher, deixou de a culpar por muitos dos seus actos irracionais, e preferia manter-se afastado.

Mas Eva, entretanto, parecia ter entrado numa espiral de violência. Por várias vezes, após discutirem, Eva pegava em objectos cortantes e mutilava-se a si própria, ou arrancava o cabelo com as próprias mãos enquanto berrava compulsivamente, em actos perfeitamente animalescos e irracionais. Já habituado aos seus gritos, Adão tinha criado uma couraça dentro de si próprio, e as tentativas irracionais de Eva para chamar a sua atenção, apenas o afastavam dela cada vez mais.

Então, e como retaliação, começaram as infidelidades. Adão não era um marido minimamente ciumento, e dava portanto a Eva toda a liberdade de se movimentar. Mas quando ocasionalmente os seus conselheiros e amigos lhe comunicavam que determinada pessoa deveria ser dispensada, fosse ele um motorista ou um guarda-costas, Adão não fazia qualquer tipo de perguntas. Afinal, era apenas mais um dos affairs de Eva de que ele só muito mais tarde tomava conhecimento.

            Nesta história, e em como quase todas as histórias de amor existe ainda uma terceira pessoa. Esta pessoa era uma mulher, uma antiga amiga e namorada de Adão, a quem ele não via nem falava há já vários anos, e durante todo o seu casamento, mas a quem recorreu numa hora de dificuldade e de desespero, e que quando ele estava á beira do abismo o escutou e lhe estendeu um ombro amigo. Para os efeitos deste estudo vamos chamá-la simplesmente Madalena.

            Eva depressa se apercebeu da existência de Madalena. Despeitada por o marido a ter trocado por uma mulher muito mais velha e mais feia, embora já não o amasse, decidiu vingar-se deles, e defender simultaneamente a sua posição. Hábil e manipuladora, e fazendo-se valer da imagem imaculada que as pessoas tinham de si criada pelos media, e ainda da sua capacidade inata de perceber aquilo que tocava as pessoas e o que deveria dizer para as fazer sentir-se bem, criou uma autêntica cortina de fumo sobre o assunto, ajudada ainda e sempre pelos media que pretendiam continuar a aproveitar a sua imagem de princesa infeliz para ganhar dinheiro. Ficou conhecida no que a esta história diz respeito como sendo a «vitima».

            Adão encontrou finalmente, longe de Eva e ao lado de Madalena, a tranquilidade e felicidade de que necessitava. A sua atitude foi criticada por todos e foi ridicularizado nos jornais e na opinião pública por trocar uma princesa tão jovem e tão bela, tão admirada e tão amada por todos, por alguém tão antipática e tão pouco apropriada para si como Madalena. Abnegado e com grande sentido de estado, Adão sofreu em silêncio todas as humilhações, e nem uma única vez tentou defender-se de todas as acusações e insultos que lhe dirigiram, ou sequer atacar Eva. Acima de tudo era a mãe dos seus filhos e fora a sua mulher, e tinha que defender a sua imagem quer pessoal quer como símbolo que fora da família real. E além disso a sua própria felicidade estava ali ao virar da esquina, na pessoa de Madalena. Mas no âmbito deste estudo ficou para sempre conhecido como o «vilão».

            Madalena era uma mulher de meia idade, feia e de aspecto antipático, com um casamento anterior e filhos desse mesmo casamento. Tinha sido namorada de Adão há muitos anos atrás, mas o romance não tinha tido seguimento porque foi considerada pela família real como sendo pouco apropriada para consorte do príncipe herdeiro. Mas apesar do seu aspecto, era de facto uma pessoa muito sensível e carinhosa, e os seus sentimentos por Adão eram genuínos. Também ela foi acusada, gozada e ridicularizada nos jornais e na opinião pública, e foi usada como estereotipo da mulher megera, interesseira e infiel. Também ela nunca falou nem se defendeu. Mas o seu papel ficará para sempre conhecido nesta história como sendo o da «vaca».

            Eva acabou por falecer num acidente infeliz, na companhia de um dos seus namorados. Por ironia tentando escapar dos seus eternos inimigos e aliados, os repórteres. A sua enorme fama e popularidade enquanto viva, acabou por a transformar num mito depois de morta. Figurará daqui a muitos anos ao lado de figuras míticas como James Dean, Marilyn Monroe ou Jim Morrison. A sua imagem continua a ser um exemplo de amor e de dedicação.

            Adão e Madalena continuam a ser o «vilão» e a «vaca».

  


(*)Luís Ferro Moutinho, Escritor portugués. Mora no Porto. 


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