Versiones  41

Diciembre 2001 – Enero 2002

Director: Diego Martínez Lora

la aventura de compartir las vidas, las lecturas, las expresiones...


 

 Renato de Caldevilla(*):

Circunspecta viagem(**)


Não queria acreditar ter-se transformado em qualquer coisa semelhante a um aroma indefinido mas agradável, a ocupar a atmosfera da rua, poluída por tóxicos gases de automóveis, fumo de tabaco, cheiro a esgotos, onde a odor dos detergentes se mistura com fétidos das sanitas. Ouvia ao longe, vozes alteradas por discussões acesas sobre a culpabilidade de quem originara o acidente que sofrera, a atravessar de um passeio para o outro, para comprar cigarros. Olhou o seu corpo na calçada, semi-coberto com um lençol manchado de sangue mas, ao contrário do arrepio ou dor que sentiria noutras circunstâncias, a sensação de alívio experimentada, ultrapassava tudo quanto pudesse ter imaginado!

 

Chegou depois a ambulância, homens de bata branca a transportarem-lhe o corpo para o necrotério. Voando com facilidade, tudo acompanhou com interesse, emanando sempre aquele brando perfume. Não experimentou a entrada no túnel, nem lobrigou a tal luz branca, intensa, referida por outros à beira da morte. O intrigante fora a separação do corpo, a leveza, a imponderabilidade percebida, a confusão de ter entrado num mundo novo, mais delicado do que o anterior, onde experimentara as múltiplas amarguras da vida.

 

Julgou incomodar-se com a percepção de angústia em sua casa, o choro da mulher e dos filhos confrontados com a notícia. Curioso era o motivo que o levava a encontrar-se em todos os locais para onde deslocasse a sua vontade, ultrapassando limites até então nunca imaginados, proporcionando-lhe uma convivência espiritual quase instantânea com a família, na tentativa de lhes insuflar o seu característico aroma, talvez expressão de um amor invisível. Tentou explicar-se, a voz não saía. Procurou tocar-lhes. Sem resultados. A emoção contagiante de todos eles, sequer lhe transmitia a vontade de chorar. Contudo, estavam consigo.

 

Era tudo tão vazio, tão frio e ausente!

 

A impressão de estar a dormir de pé, como um sonâmbulo, foi interrompida pela presença de um vulto exalando um aroma diferente do seu, mais activo e acre, não conseguindo definir-lhe os contornos fisionómicos, embora a convicção de o conhecer de longa data.  Aquela estranha visão deslocara-se de um compacto grupo reunido à volta do que parecia ser uma mesa de um café, um pouco distante mas perfeitamente visível. O ambiente contaminado pelo cheiro de tabaco, assemelhava-se ao da confeitaria onde, depois do almoço, costumava ir a tomar o seu café, enquanto se desenvolviam acaloradas conversas políticas ou sobre futebol. Sentia-se observado por aquele estranho vulto cuja identidade se esforçava por descobrir. Seria o anjo da guarda? Não, faltavam-lhe as asas, era espadaúdo demais e não poderia apresentar-se com aquela habitual espontânea candura e subtileza das estampas dos santinhos, distribuídas na catequese!

 

A situação, séria e absorvente, não se prestava a especulações e, em boa verdade, que lhe interessaria estar na presença de um anjo ou de um demónio, quando a sua personalidade se sentia diminuída pela ausência de um corpo mas, estranhamente a conseguir uma força e coragem, difíceis de explicar mas provenientes, talvez, pelo seu novo estado, a procura de um lugar que não era aquele e a enrolada vontade, o imenso desejo de cigarro, a brutal necessidade de fumar, ele que não acreditava ter chegado ao fim de tal vício alcançado na juventude através dos clandestinos cigarros cujo fumo era absorvido às ocultas, nas retretes dos recreios do colégio, a fumegarem pelos postigos, como chaminés dos velhos comboios a vapor, com a desculpa ou ignorada pelo prefeito, a não querer intervir para não perder a autoridade do cargo, ou pura e simplesmente, para se não aborrecer com a situação, por ele considerada irreversível e normal, fazendo parte duma tradição de largo anos. Chegar qao céu demoraria muito e haveria ali onde comprar cigarros? Não, tabaco, só no inferno!

 

Mentalmente apercebeu-se do outro lhe dar as boas vindas. Correspondeu, tentando afivelar um sorriso, inexistente numa face agora a atingir a frieza completa do rigor da morte, sobre a mesas da morgue!

 

A confusão em que se encontrava nem um instante de meditação para analisar as ocorrências lhe conferia. Tinha a certeza de se poder comunicar com o estranho vulto, apenas pelo pensamento. Eram inaudíveis as palavras e mesmo dispensáveis na ocasião. Apercebendo-se do novo estado de uma provável super-inteligência nova, interrogava-se sobre o alcance a que ela o poderia levar, o poder conseguido depois da morte, se é que ele existia como tudo levava a crer!

 

Se assim fosse, como intervir nas constantes injustiças da humanidade? Como fazer para que existisse mais paz e concórdia entre os seus semelhantes? Mas passava entre os viventes sem que eles pudessem decifrar os seus pensamentos, já que as palavras eram inaudíveis. Desmoronava-se qualquer herança de comunicação, impotente para intervir ficava como simples testemunha adormecida e a viver um terrível sonho a descambar em pesadelo, sem poder transmitir toda a bondade a envolver-lhe on espírito, todo o amor acorrentado a um silêncio tão profundo como o vivido em campos de concentração por trás do arame farpado!

 

Seguido agora por diversos vultos, todos eles exalando odores diferentes mas a começarem a tornar-se insuportáveis, levaram-no a pensar no inferno, estar a ser vítima de demoníacos poderes moldados no silêncio, já variadíssimos pensamentos se chocavam entre eles, impossíveis de se definirem com coerência. Tentou, sem êxito, subtrair-se a tudo aquilo, concentrar o pensamento no desejo de um cigarro, em qualquer lugar isolado, clandestino como de antigamente. Mas tudo era frio e descampado demais, tudo era tão frio e ausente e severo. O julgamento da própria consciência, essa terrível provação testemunhada por todos esses vultos que continuavam a perseguição!

 

Como num filme repetia-se-lhe a vida regressa, os bons e maus momentos em sequências avassaladoras que, em circunstâncias anteriores o teriam levado ao suicídio, coisa impossível agora de acontecer.

 

Começava a compreender a versão que em vida tinha ao simples exame de consciência, essa realidade que lhe surgia naquele momento sem poder parar, tão impetuosa como a violência do brutal acidente que o vitimara.

 

Quis recordar o nome recebido há largos anos na pia baptismal. Por muito que tentasse, uma enorme mancha, um vazio de memória apagava-lhe a identidade. Começava, isso sim, a sentir-se envolvido num líquido viscoso, ouvindo-a palpitar acelerado do seu coração e remexendo-se num espaço diminuto onde o movimentos lhe estavam limitados.

 

Mas, ao contrário da sua anterior experiência, julgava-se renascer, o pulsar do sangue, vital para si e sua mãe.

 

A sua tenuidade relativa do tempo, não era a mesma da do seu criador. Julgava começar a entender, algo de incompreensível, a actualidade de Deus que afirmara – “EU SOU AQUELE QUE É” – A relatividade do passado, presente e futuro, apenas se verificava entre humano.

 

Pareceu-lhe horrível aquela premonição do seu acidente que o vitimaria uns anos mais tarde, conquanto quisesse crer que o Ser Superior, tudo lhe apagaria da memória, como sucedera com a revelação do seu nome, é certo, ainda inexistente, assim como os terríveis acontecimentos que viriam a correr.

 

Nervosamente, remexeu-se uma vez mais no útero materno.

 


(*)Poeta, narrador e jornalista português. Mora no  Porto.

(**) Foi classificado em 1º lugar nos XXIII Jogos Florais – 2002 do Núcleo dos Antigos Alunos da escola Comercial Ferreira Borges – Lisboa.


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