Versiones 47

Diciembre 2002 - Enero 2003

Director: Diego Martínez Lora

la aventura de compartir las vidas, las lecturas, las expresiones...


Miguel Osório (*):

Bombaim


Diz-se que os portugueses lhe atribuíram o nome devido à contracção de “bom” com “baía”. Bombaim, parte do dote de casamento de Catarina de Bragança com Carlos II de Inglaterra em 1661, hoje Mumbai, após mudança de nome em 1995, tornou-se motor económico e financeiro da incrível Índia. 15 milhões de habitantes, 6 dos quais sem casa, não podem passar despercebidos numa cidade onde, há 20 anos atrás, um indiano podia chegar com 10 rupias (cerca de 25 cêntimos) no bolso e tornar-se milionário pouco tempo depois.

O contraste entre riqueza e pobreza é francamente notório quando saímos do Taj um dos hotéis mais luxuosos da Ásia. Não precisamos de nos afastar muito, especialmente de noite, para sair de um paraíso de luxúria, onde mármores nos acolhem em harmonia com lindíssimas tapeçarias, água a correr e quadros magníficos, sendo atirados para o meio da infernal Bombaim.

A densidade de 996 carros por km explica-se pela ausência de retrovisores laterais...em largura, rua fora, cabe sempre mais um! O caos do trânsito urbano é digno de se apreciar. A enorme amálgama de táxis, carros, autocarros, motas e camiões, desloca-se em alguns pontos da cidade como um monstro tentacular após um enorme pasto, lento, pesado, contudo...em movimento. Em alguns locais, o ar tornou-se totalmente irrespirável, devido à poluição causada pelos fumos dos escapes dos veículos com motores gastos, misturados com o ar húmido de Bombaim. Os rickshaws (triciclos motorizados popularíssimos por toda a Ásia, Índia inclusive), estão proibidos de entrar na área metropolitana central da cidade.

 

Bombaim é fascinante em si mesma, pois é uma amostra da fantástica Índia. É uma cidade muito viva, conservando ainda monumentos Victorianos belíssimos, contendo de tudo um pouco, de bairros de luxo a ilhas paupérrimas, opulenta e chocante, mega-congestionada, possuindo, no entanto, um forte carisma. Marine Drive é uma avenida marginal que ladeia toda a baía marítima, simbolizando, sob as luzes nocturnas dos lampiões o “colar da rainha”...herança colonialista britânica. Do lado oposto, em frente ao porto, junto do Hotel Taj, foi erguido no mar o portão marítimo da Índia (India’s Gate) construído em honra da visita do rei George V.

 

A cidade é deveras cosmopolita onde, em Colaba (área onde se encontra o Taj), podemos ir tomar uma cerveja ao Leopold’s Café, muito bem decorado, apreciando-se o movimento de pessoas na rua, sendo fácil ver na mesa ao lado, desde o enfarpelado yuppie de Bombaim ao simples viajante de mochila.

 

Bombaim tem magníficos restaurantes, sendo absolutamente imperdível o Samrat, (nome de vários restaurantes pela Índia fora) com a sua especialidade – Gujarat Thali. O Thali, prato típico indiano, é vegetariano e composto por várias degustações de vegetais, molhos, caril, pickles indianos, etc., onde o arroz basmati perfumado não falta. Este restaurante é do estado do Guzerate, donde Gandhi era oriundo, entre o estado de Maharashtra, (cuja capital é  Bombaim) e Goa. O espectáculo gastronómico é interessante, pois se por um lado se apreciam os especialistas que comem com a mão, utilizando o arroz como um pão, juntando-lhe um bocado de legumes, caril, etc., por outro, temos de dizer aos empregados para não nos deitarem mais comida...que está sempre a chegar, quente, com o arroz branco a fumegar.

 

De alguns pontos altos como o bar Apollo, no vigésimo andar da torre nova do Hotel Taj, podemos apreciar a vista de toda a cidade (especialmente bonita ao entardecer e de noite); outros pontos como o Cloud Café no 9º piso do Hotel Godwin, não longe dali, apresentam um terraço onde poderemos sorver um óptimo lassi (bebida de yogurte indiano de leite de búfala) gozando o panorama de um bairro rico da cidade com lindas vivendas e luxuosos condomínios fechados com piscina, onde os residentes se encontram num mundo à parte.

 

A cidade tem livrarias muito boas, onde se encontra de tudo um pouco. A do Hotel Taj é moderna e actual, mas outras há, espalhadas pela urbe, com arquitectura Victoriana, verdadeiramente charmosas. Algumas dentre elas transmitem-nos a sensação de voltarmos atrás no tempo, mantendo ainda o mobiliário colonial de outrora, porventura tão interessante quanto os livros que nelas se encontram. Recordei-me das magníficas livrarias de Londres, e continuando a explorar a cidade deparei com as livrarias de rua, muito no tipo das de Paris ao longo do Sena. Para quem gosta de ler, as oportunidades de boa literatura, indiana e estrangeira, a preço da chuva, não faltam.

À parte os livros, as compras são obviamente outro ponto forte de Bombaim, onde temos desde mercados muçulmanos como o Chor Bazaar – do prego ferrugento aos antigos instrumentos de medição antigos passando pelos gramofones a funcionar, tudo se vende!!! – até aos lindíssimos “empórios” com artesanato de todas as regiões da Índia, alguns só para os bolsos de sheiks alojados com as suas numerosas famílias no Taj.

 

Como em qualquer outra cidade da Índia, a vida passa-se na rua, e é andando, falando e vendo que se sente e absorve o ambiente indiano.

 

Para a viagem de 30 km até ao aeroporto, no regresso, negociamos o preço com um taxista Sikh, simpático, com longa barba e bigodes grisalhos, e o sempre presente turbante, onde os Sikhs enrolam os seus compridos cabelos. A corrida começou e saímos do centro, mostrando-se o taxista um verdadeiro conversador. Tentei abrir o vidro, mas não havia maçaneta do meu lado. O meu companheiro de viagem conseguiu abrir um terço da sua janela, (o vidro não descia mais) dado que o calor húmido era forte. O taxista falava olhando para trás, à medida que conduzia por avenidas com trânsito sempre infernal, apesar de nos irmos afastando da cidade. Manobras de fechar os olhos e suster a respiração, umas atrás das outras, começaram a assustar o meu amigo, apesar de ser uma pessoa viajada. Disse-me de repente para eu me calar e não responder ao taxista, de modo a que este olhasse mais em frente e menos para nós. O taxista, sem perceber, com um ar de embriagado (drogado?), continuava o seu repertório de estórias e descrições sobre Bombaim e Índia, mesmo sem qualquer resposta nossa às suas considerações. Curiosamente nenhum de nós se lembrava desta estrada, teoricamente era a estrada que tínhamos feito à chegada, embora de noite.

O ambiente começou rapidamente a tornar-se intimidativo; o meu amigo estarrecido com a condução do Sikh, os camiões grandes e pesados em sentido contrário, numa estrada sem qualquer divisão ou sinalética, que pareciam vir para cima do táxi, com gente a atravessar saída do nada, veículos a inverter o sentido no meio da estrada, a velocidade do nosso taxista a aumentar sem qualquer paragem na sua interminável narração sobre os factos do seu país, e a chegada do entardecer com o lusco-fusco que ensombrava ainda mais o ambiente. Deveríamos já ter chegado ao aeroporto, mas ainda estávamos talvez a meio do caminho, caminho esse ladeado por verdadeiras ilhas onde abundavam lojinhas terceiro-mundistas à face da estrada.

Apesar de não ser a minha primeira vez nestas andanças, confesso que não me sentia muito seguro, mas não havia grande coisa a fazer. O meu amigo, desesperado disse-me para fazer parar o taxista, de modo a apanharmos outro táxi, mas chamei-o à realidade quando lhe disse para olhar para fora...apesar de tudo, a sensação de segurança era superior dentro do táxi, fora, com o ambiente hostil  que pairava na estrada e sem táxi, longe da cidade...não sei como terminaríamos. Tentei controlar-me, para não aumentar o pânico do meu amigo.

 

Uma hora e quinze minutos após a nossa partida do centro da cidade, começámos a avistar a torre de controlo do aeroporto; o meu amigo ficou aliviado. Pouco depois, chegávamos finalmente ao aeroporto, e ao fim da viagem mais longa da nossa estadia pelo sub-continente indiano. Se não nos tínhamos apercebido ainda da grandeza populacional de Bombaim, estes 30 km entre a cidade e o aeroporto internacional, ladeados ininterruptamente por bairros de lata, eram sem dúvida uma boa amostra...


(*)Miguel Osório, gestor e escritor português. Mora em Matosinhos.


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