Versiones 47

Diciembre 2002 - Enero 2003

Director: Diego Martínez Lora

la aventura de compartir las vidas, las lecturas, las expresiones...


Paulo Vicente Salvador (*):

A Índia Budista


Por entre os ágeis “tuk-tuk” e a multidão para quem a diferença entre berma e estrada é fluida, avançamos para a velha capital singalesa, Kandy. Dentro o carro, temos que ouvir e falar com o excessivamente voluntarioso guia-motorista Chandra. No seu arrevesado Inglês, ele parece mais preocupado em saber em que condições pode emigrar para Portugal do que em mostrar-nos o seu país. E em levar-nos às lojas para “turistas” (que ele apresenta como Museus) do que aos lugares que são verdadeiramente próprios do país.

O Sri Lanka, o nome actual desse país-ilha em forma de lágrima (lembram-se da Taprobana dos Lusíadas? e do Ceilão e o seu chá dos Ingleses?), faz parte da grande civilização indiana. O que o distingue do Subcontinente é a sua religião dominante. No Sri Lanka predomina o Budismo, enquanto que a Índia mantem-se fiel à sua religião original, o Hinduísmo. Outras regiões da civilização indiana também escaparam à unificação de Nova Deli devido à sua diferença religiosa (Paquistão, Bangladesh e Maldivas, todas muçulmanas e Butão, também budista ) ou ao seu ninho nas montanhas (o Nepal hinduista). Mas em todos estes países se partilha a mesma geografia e os mesmos valores e quotidianos e por isso todos fazem parte da civilização indiana. As monções descarregam as suas águas da vida em todo este espaço, sem parar perante as fronteiras, as montanhas ou o mar. De Islamabad a Colombo, são os mesmos homens e mulheres magros, atarracados de tons escuros que se vêm nas ruas. O mesmo grasnar agudo das mesmas gralhas de negro puro sinalizam a mesma manhã indiana (estas gralhas, verdadeiros ladrões do ar, são consideradas as aves mais inteligentes da Natureza pela capacidade de resistência demonstrada às várias tentativas de exterminação). Os mesmos estropiados e paralíticos e doentes mostram sem qualquer pudor  as suas excepções humanas. A mesma vida convive com a mesma morte, numa harmonia que no Ocidente já se tornou inaceitável. E a mesma tendência mística, a diluição das individualidades nos todos específicos de cada religião. E o mesmo respeito pelos homens-santos que os nossos olhos de outra civilização identificam como vagabundos. E o mesmo lixo e o mesmo pó e a mesma falta de higiene. E o mesmo desprezo pela manutenção do que quer que seja.

Foi a história que dividiu a civilização indiana em diferentes nações e estados, muito deles até irreconciliáveis (partilhando ambos armas atómicas e um insanável conflito sobre a Caxemira, a Índia e o Paquistão poderão a qualquer momento trazer ao mundo um conflito de uma dimensão nunca antes presenciada). Só a irrupção do Império Britânico conseguiu, nos séculos XIX e XX, unificar brevemente sob uma autoridade única estes imensos espaços. Mas essa unificação não conseguiu cortar com os atavismos de milénios.

O Budismo tem no Ocidente uma imagem muito positiva, pela forma como foi divulgado usando os ensinamentos desse grande sábio humanista Sidharta Gautama, que ao atingir o “nirvana” se tornou Buda e pelo prestígio que líderes actuais como o Dalai Lama souberam construir, com as suas palavras e actos cheias de paz e tranquilidade. No entanto, no Sri Lanka o Budismo dominante e dominador foi um dos causadores da violentíssima guerra civil que, desde 1983, sagra na ilha entre os singaleses budistas do Ocidente e Sul e os Tâmiles hinduístas do Norte e Leste. A ocasião faz o ladrão, diz o provérbio, e as circunstâncias fazem a tolerância, acrescento eu, e Chandra, um devoto budista, atira para os Tâmiles as responsabilidades por toda a falta de esperança.

O Budismo tem também as suas escolas, os seus cismas (tal como o Cristianismo tem entre Ortodoxia, Catolicismo e Protestantismo e o Islão entre Sunismo e Xiísmo) . O dominante no Sri Lanka é o Theravada ou Pequeno Veículo, o mais antigo, e que dá uma importância maior aos escritos dos sucessores de Buda e portanto às hierarquias religiosas. Talvez por isso o budismo cingalês tenha tendência a aliar-se ao Estado (as hierarquias religiosas têm interesses a manter) e por isso tornou-se um dos lados desta guerra.

Os Tâmiles estão acantonados para lá das províncias por onde nós circulamos, liderados pelo cruel Velupillai Pirapaharan, que não hesita em recorrer a ataques suicidas perpretados por mulheres e crianças para atingir o seu sonho de uma pátria tamil. Para nós, a guerra não passará dos breves instantes de verificação de passaportes nos numerosos postos militares plantados ao longo das estradas.

Chegamos a Kandy depois de visitarmos um orfanato de elefantes asiáticos em Pinnawela (menos corpulentos, de orelhas mais pequenas e mais domesticáveis que os seus primos africanos), um jardim botânico em Peradeniya (onde um grupo de morcegos na copa de uma árvore gigantesca não se encontra suficientemente afastada para que o seu odor repelente não se manifeste nas nossas narinas) e um museu (perdão, loja) de pedras preciosas (o Sri Lanka tem alguma da melhor produção mundial de safiras) e um espetáculo de Artes Populares muito ineressante  (há faquires que engolem e caminham sobre fogo). À noite atrevemo-nos a descer a pé, em pleno bréu, desde o hotel até ao centro da cidade para assistir ao famoso “Perahera”, um festival religioso em que um elefante macho previamente escolhido transporta nas suas costas a mais sagrada relíquia do Budismo, o dente de Buda. Mas chegamos atrasados para assistir à procissão e perante o assédio dos locais (inevitável quando não se está acompanhado por um local) regressamos ao hotel, cobertos pelo suor estimulado pela humidade destas latitudes.

Kandy é a porta de entrada do planalto central da ilha-lágrima, onde as tradições Budistas se refugiaram na sequência das investidas dos vários infieis que no último milénio assolaram as suas costas (primeiro os hindús do reinos da região indiana de Kerala e depois os portugueses e os holandeses). É uma terra luxuriante, capaz de sustentar tradições caras e de desenvolver várias capitais e templos que permitiram a sobrevivência do Budismo neste milénio difícil. No centro de Kandy, sobre o lago geométrico e artificial (em cujo centro o último rei mandou fazer uma ilha para o seu harém), em cujas margens os encantadores de serpentes fazem hoje o seu comércio, o Templo da Relíquia da Buda guarda aquela que é considerada a maior relíquia do sábio-santo : um dos seus dentes. Os gentios dizem que o dente é demasiado grande para ter pertencido a um homem (será de um crocodilo?), mas para um budista este é o centro do seu mundo (também tenho a certeza que se juntassem todas as relíquias “verdadeiras” da cruz onde Cristo foi pregado, conseguiríamos fazer uma escada até ao céu). Nas religiões a verdade tem que dar lugar ao valor dos símbolos. Descalços, de cabeça descoberta e de “sarong” a tapar as pernas e, após três barreiras da polícia para controlo apertado (os tamiles conseguiram fazer explodir uma bomba há dois anos no interior do templo), entramos no coração do templo. Eis uma grande demonstração de tolerância (que gentios são autorizados a entrar na Caaba em Meca?).

Há muitos pontos de interesse para visitar nesta região de Kandy. Mergulha-se verdadeiramente num mundo de exotismo, ainda não muito estragado pela ubíqua influência ocidental. As aldeias com as suas “stupa” (templo budista em foma de sino invertido), os templos escavados no cimo das montanhas com os seus budas deitados e as suas pinturas caleidoscópicas (os últimos dos redutos de sobrevivência do budismo) são preciosidades para olhares ainda não conhecedores.

Seguimos para norte, para os territórios das cidades-capitais anteriores a Kandy, cada vez mais antigas, mais arruinadas e mais exóticas. Chandra mostra-nos museus (perdão, lojas) de “Batiks” e de especiarias e convence-nos a partilhar a mais “kitsch” das experiências cingalesas : o passeio pela selva nas costas dum elefante, a simpática fêmea Monika – a selva no entanto burbulha de humanidade, crianças locais vem-nos oferecer flores com cartões escritos com os seus endereços para que lhes escrevamos (já sabemos que o objectivo é conseguirem ser convidados por um estrangeiro para emigrarem).

De manhã, somos sempre acordados pelos choros estridentes dos corvos. Na estrada andamos sempre aos ziguezagues para evitar os “tuk-tuk”. A cabeça lateja com estes gritos. Em Dambulla a galeria dos estropiados torna-se desconfortável. E é preciso ter cuidado com os macacos, capazes de se apropriarem de qualquer bem menos preso. Chandra insiste nos seus diálogos pouco profissionais. Pede-nos descaradamente para o avaliarmos positivamente (a agência entregou-nos um questionário). Mas mal o largamos, somos molestados pelos locais.  Até que uma pequena paragem na estrada, para comermos deliciosas mangas vendidas pela sorridente Mala, nos reconcilia com tudo. Podemos terminar em paz.

 

Agosto 2000


(*)Paulo V. Salvador, escritor, engenheiro e gestor português. Mora na Senhora da Hora.


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