versiones, versiones y versiones...renovar la aventura de compartir la vida con textos, imágenes y sonidosDirector, editor y operador: Diego Martínez Lora    Número: 50 junho/julho 2003


antónio maga(*):

da amiga


alguma inquietação nestes raros encontros. a sua fuga das minhas palavras-centro: dor e morte, exaspera-me um pouco. refugia-se logo num caudal de histórias de colegas doentes, alunos promissores, de tias e sobrinhas, duma criança vizinha...

 

se nos víssemos com mais frequência, talvez conseguisse sacudir esta compressão que sinto ao falar... tenho medo de a magoar. sei-lhe a fragilidade. tenho que manter uma atenção extrema. usar outro alfabeto, que não o do meu teatrinho quotidiano. esforço-me por não usar expressões obscenas, não usar a brusquidão habitual, quando me apetece acabar uma conversa e ficar sozinho...

 

é a pessoa por quem senti, talvez sinta ainda, algo de genuíno e profundo, uma comunhão sincera, nesta caminhada ácida que é a minha vida.

 

mas estou mais degradado. receio que a impaciência transborde e magoe quem tanto gosta de mim... por outro lado, tão viciado nas minhas feridas abertas, ciosamente abertas por uma lucidez que as mantém infectadas e me fazem estar quase sempre sozinho, temo que a emoção e o calor que sinto perto dela me paralisam numa quase imobilidade de animal espancado...

 

e o medo de rebentar numa crise de choro, perto dela...

 

assim, cuidadoso, falo pouco. mas falo do que falo sempre: negro, vazio, gelo, morte, solidão. não sei falar de mais nada, quando estou com ela. tento falar de forma não dramática, pois é assim que as sinto. são velhas companheiras de sempre. e ela, pela enésima vez, apesar da sua imensa inteligência e sensibilidade, não aceita. que não, que há momentos de felicidade redentora, que há pessoas que vale a pena conhecer, que quer alguma cor nos meus dias escuros, alguma emoção...

 

e eu digo que tenho os meus momentos felizes, os meus prazeres. os livros. a música. o cinema. longos passeios solitários perto do mar. que isso me basta... que o contacto com as pessoas, em geral, me causa uma mal disfarçada aversão...

 

e separámo-nos com a tristeza de sempre... ambos sabemos que o próximo encontro será muito tempo depois...

 

e agora, no meu quarto, escrevo. tento dissipar essa tristeza. e apetece-me escrever tudo o que não consigo dizer-lhe. tudo. que estou farto desta europa cancerosa e hipócrita. farto destas catedrais bafientas. farto destes canais de televisão de merda. farto destas vidinhas de porcos sobre nutridos cretinos.

 

dizer-lhe que quero espaço. mais espaço. espaço para conseguir o silêncio. um ligeiro cheiro a jasmim. redescobrir a sábia lentidão do tempo, ler um poema de rilke e deixá-lo ressoar no meu corpo como pancadas de coração...ouvir música de bach e deixar cair as lágrimas com um alívio de bálsamo...

 

que eu só quero apagar todos os néons destas noites profanas de boémia. fugir para um campo verde, reencontrar a noite, olhos nos olhos, afogar os olhos nas estrelas, até esvaziar o cérebro de toda a merda, até que só fique a emoção religiosa de estar vivo...

 

mas o silêncio nunca dura, aparece sempre uma voz gritada, luzes, há sempre o imenso ruído das pessoas, puta que as pariu!... e eu não quero nada com as pessoas, foram elas que me foderam todo, que me prenderam numa rede de memórias de pesadelo, e quanto mais esbracejo, mais sufoco, tenho que estar imóvel, numa imobilidade de camaleão, ser cinza no cinzento, passar despercebido, deixá-las passar, deixá-las ir nas suas azáfamas de insecto...

 

pelo menos, estou a escrever. e é bom escrever. faz-me bem ao corpo.

escrevo sempre a mesma coisa, só pequenas variantes, sempre o mesmo gemido, sempre o mesmo discurso egocêntrico, patético de auto-comiseração... não me interessa! escrever é bom! e eu sou o centro do mundo! claro que sou! do meu mundo...

 

também há as armadilhas, sempre à espreita. distrais-te um segundo e pronto, já está!... olho os olhos de uma criança maltratada e sinto toda a dor que dilacera o seu corpo inocente... sinto o quanto há de pérfido, repugnante, na gentalha que rasga as infâncias de tantas formas... e volta-me a raiva de fera. e agrada-me esta raiva. é uma raiva que quer sangue, tenho que ter cuidado, eu sei, mas reconforta-me. e reconforta-me saber que vou morrer sem filhos, que nunca teria a sádica ousadia de lançar uma criança neste mundo de monstros...

 

e reconforta-me saber que nunca verei um documentário sobre a fome, miséria e dor deste planeta maldito, sem que a vergonha me assalte. que nunca vou proferir comentários compungidos, de circunstância, de teatrinho das sensibilidades... nunca! perante essas realidades, só há duas reacções aceitáveis: o silêncio, o silêncio como um manto negro de opróbrio; e o vómito. vomitar-lhes tudo, tudo, nas gravatas pesporrentas de europeus, no seu ridículo etnocentrismo de super civilização de farsa, racistas de merda, xenófobos filhos de uma grande puta europeia...

 

quando é que alguém vai ter os tomates de reescrever a história deste milénio, numa lucidez desassombrada, e chamar à europa o que ela foi, o que ela é: o cancro incurável que infectou o mundo de ganância e morte, em cruzadas de rapina despudorada, em nome de um deus conveniente, em nome de uma civilização superior... e deu no que deu! olhemos à nossa volta. e deu no que deu. será preciso dizer mais? deu no que deu...

 

e eu sou um filho desta puta-europa. amo os seus poetas. amo os seus músicos. amo e amarei até morrer. amo como nunca amei ninguém!...

 

mas, a imensa dor das crianças!! a ignomínia...


 (*)antónio maga, poeta português. Mora em Vila Nova de Gaia. Da amiga pertence a "o livro do gelo", publicado pela editorial 100 - Outubro 2003


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