versiones, versiones, versiones  y versiones...renovar la aventura de compartir la vida con textos, imágenes y sonidosDirector, editor y operador: Diego Martínez Lora Número: 51 / agosto - setiembre 2003


Entrevista a Paula Margarida Pinho, com motivo da publicação do seu livro "Sistema Solar" pela Editorial 100
(por email - perguntas de DML)


1)    Qual é o sol em Sistema Solar?

 

O sol é a própria vida ou, melhor dizendo, o essencial da vida. Está no centro de um sistema – uma estrutura – cujos elementos se movimentam e giram, mas mantêm sempre o equilíbrio. É esta harmonia, este equilíbrio precário que se estabelece entre realidades diversas e mesmo antitéticas que me fascina. Na vida, coexistem sol e sombra, alegria e tristeza, encontros e desencontros, sonhos e realidades. Tentei congregar um bocadinho de tudo isso. 

 

 

2)    A poesia é um modo de desabafar ou um modo de reordenar ou arrumar o mundo do poeta?

 

O que tem de melhor a poesia é que ela é ou pode ser muitas coisas – eu quase diria todas as coisas.

 

Um modo de desabafar? Esta parece-me uma visão bastante reducionista da criação poética. Claro que quase todas as pessoas que conheço escreveram, na adolescência,  poemas que eram puro desabafo. Eu também o fiz. Mas, atingida a idade adulta, penso que é preciso transpor essa etapa: a poesia é um mundo extraordinariamente rico; não pode limitar-se a ser um reflexo do estado de espírito de quem a escreve. Não quer isto dizer que perfilhe a teoria pessoana da poesia como fingimento. Mas, quando escrevo, está lá presente o que sinto mas também o que imagino que poderia virtualmente sentir (sou propositadamente redundante). E por vezes nem há sentimentos, nem emoções: só uma visão, ou uma ideia, ou uma sugestão narrativa. Tudo isto se entrelaça. E eu não gostaria que as pessoas lessem o livro com o objectivo de procurar nos textos vestígios de mim ou ecos de circunstâncias da minha vida. Preferiria que procurassem, antes, reflexos de si próprias. Porque todos, de uma forma ou de outra, fazemos parte do mesmo sistema solar.

 

Um modo de reordenar o mundo? Embora a palavra “Sistema”, no título, pareça remeter para uma organização estrita, eu não tenho pretensões a reordenar ou arrumar o mundo – nem sequer o meu mundo, porque há sempre muitas coisas que me escapam. Porém, é verdade que um poema é a cristalização de algo importante: um pensamento, um imponderável, um breve fragmento de vida. É a corporização de momentos que passaram mas ficaram guardados nas palavras. Depois de os sentir autónomos, e consistentes, posso deixá-los para trás, e evoluir no sentido de algo de novo e diferente. Um poema é algo que faz sentido por si só. E, especialmente na nossa era, precisamos muito de coisas que façam sentido...

 

Para mim, escrever poesia é, sobretudo, uma forma de estar, uma necessidade quase irreprimível que acontece de vez em quando. Poderia citar Alberto Caeiro, o Mestre heterónimo de Fernando Pessoa: “Ser poeta não é uma ambição minha / É a minha maneira de estar sozinho”. O que não quer dizer que o processo de escrita se desenrole com naturalidade e fluidez; pelo contrário. Mas é algo que preciso de fazer, para não me descentrar de mim, para não me esquecer de viver. E reconduzir tudo ao essencial.

 

Para mim, a poesia é uma busca constante e quase obsessiva da essência das coisas e da vida.

 

3) Porquê titular os poemas?

            Ultimamente, tenho dado título aos poemas – mas nem sempre o fiz, e não garanto que continue a fazê-lo.

É difícil titular os poemas: trata-se muitas vezes de um esforço suplementar de síntese. Acontece-me ficar indecisa entre dois ou mais títulos; acontece-me não ficar plenamente satisfeita com o título que escolhi. Nesse aspecto, lembro-me por vezes de Miguel Torga, que se queixava de ser péssimo em títulos... mas continuava a titular os poemas.

De qualquer forma, neste momento, penso que o título traz algumas vantagens:  confere ao poema maior autonomia;  complementa o sentido do corpo do texto; torna-se uma chave essencial para a compreensão das ideias veiculadas; remete para aquilo que considero essencial.

 

4) Qual a importância do EU na tua poesia?

            Não sei avaliar a importância do EU na minha poesia. Talvez possa fazer apenas algumas aproximações à questão.

Já Sá de Miranda se lamentava porque, apesar de zangado consigo mesmo, não conseguia viver sem si próprio – e encarava esta situação como uma espécie de condenação. Eu não estou zangada comigo, mas também tenho aguda consciência desta obrigatoriedade de viver sempre comigo: tudo o que vejo, sou eu quem vê; tudo o que sinto, sou eu quem sente; tudo o que imagino, sou eu quem imagina; tudo o que sou, sou eu quem é; tudo o que vivo, sou eu quem vive. E, como qualquer pessoa, empresto a minha subjectividade à realidade.

Tenho consciência da presença linguística muito frequente dos pronomes de primeira pessoa, nos meus poemas. Mas não quer dizer que essa primeira pessoa gramatical corresponda à minha pessoa real. E há textos em que falo de um “nós”, ou me dirijo a um “tu”, ou descrevo uma realidade alheia de mim, que não são por isso menos subjectivos.

Dito isto, quero salientar que, mesmo correndo o risco de ser tradicionalista, encaro o texto poético como intimista por natureza. Mesmo que esse intimismo seja recriado.

 

5) Que dizer sobre a presença da natureza para reflectir os sentimentos?

            A natureza é uma das coisas realmente boas que nos resta. E, porque temos consciência de que está ameaçada e de que vivemos cada vez mais afastados dela, reveste-se de uma aura quase mítica. A natureza é equilíbrio, harmonia, liberdade, apaziguamento. Mas pode ser também o contrário de tudo isso, nas suas forças mais selvagens.

Penso que precisamos de lembrar constantemente o facto de nós, seres humanos, fazermos parte do mundo natural. Só assim a nossa vida faz sentido, porque percebemos que comungamos de um todo, juntamente com as aves, as flores, as ondas do mar, as estrelas...

 

6) Se as palavras quebram o encantamento, porquê a poesia?

“A linguagem é fonte de mal-entendidos” – dizia a raposa ao Principezinho, de Saint‑Éxupéry. O ideal talvez fosse a ausência de linguagem. Ou, se quisermos, segundo a terminologia de Roland Barthes, o grau zero da escrita. Ou ainda, como em Sophia de Mello Breyner, as palavras concretas, que passariam a ser o real, em vez de o nomearem. Nos momentos breves de maior comunhão, dispensamos as palavras. E, mesmo correndo o risco de contraditória ou incoerente, assumo que, para mim, esse seria o ideal. Mas tudo isto é uma utopia: a comunicação serve-se de palavras frágeis e por isso é frágil também.

Porém, a poesia não é feita só de palavras: é feita de silêncios; de intervalos entre palavras; de páginas parcialmente brancas, que deixam o poema respirar. A poesia é feita de palavras muito mais leves que as da prosa – esta última compacta e densa. Por isso a palavra poética se aproxima da ausência de palavras. Às vezes, é mais música que linguagem. É mais imagem pictórica que referente. E gera encantamento, em vez de o quebrar – como acontece com a larga maioria de palavras que nos impõem no dia a dia.

 

7) A vida não é "vida" sem  poesia?

            Podemos viver sem poesia, podemos viver sem literatura, e sem música, e sem qualquer forma de arte. Podemos viver sem beleza. Mas, para mim, talvez isso seja mais sobreviver que viver. A arte – qualquer forma de arte – alarga os nossos horizontes limitados de seres finitos, projecta-nos para fora do nosso circulozinho fechado e rotineiro. Dá luz e cor à vida, porque gera beleza. E a beleza é uma necessidade e um valor em si mesma, num mundo em que há tanta fealdade tão valorizada.

       ...E pronto! Já me obrigaram a fazer aquilo que eu não queria: analisar a minha própria escrita. Como professora de Português, analiso os textos dos outros e tento ajudar os jovens a compreenderem-nos e a apreciarem-nos. Em relação aos meus, preferia não ter que arcar com esta duplicidade. Preferia escrevê-los espontaneamente, sem pensar nos processos que inconscientemente desenvolvo. Escrever e reflectir sobre a escrita gera uma duplicidade muito desgastante...


(*)Paula Margarida Pinho, portuguesa, poeta e professora. Nasceu e mora actualmente em Vale de Cambra.


 

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